Apenas uma edição depois, o Ceará volta a um dos principais festivais de cinema do mundo: o Festival de Cannes. Depois da disputa da Palma de Ouro em 2024, chegou a vez de participar com curtas-metragens a serem exibidos na abertura da Quinzena de Cineastas, importante mostra paralela do evento.
A presença ocorre por meio do Directors' Factory Ceará-Brasil 2025, programa que enfatiza a formação profissional de jovens realizadores em perspectiva de internacionalização da produção audiovisual regional. Com o diretor cearense Karim Aïnouz como colaborador e também ocupando papel de tutor, o projeto retornou à América Latina após dez anos.
Ao todo, quatro curtas foram produzidos no programa, todos realizados em Fortaleza, com jovens duplas que roteirizaram e dirigiram as obras. As duplas foram formadas por cineastas de Alagoas, Amazonas e Ceará em parceria com nomes de Israel, Cuba, Portugal e França.
Na Quinzena, os diretores também participam de um evento de pitching (apresentação de projeto para atrair investidores) e de reuniões de coprodução apresentando seus projetos de longas-metragens. A Quinzena dos Cineastas é realizada entre 14 e 24 de maio em Cannes.
Após a disputa da Palma de Ouro por "Motel Destino" em 2024, Karim Aïnouz retorna ao festival, mas desta vez como colaborador do Directors' Factory Ceará. Para ele, a volta ao festival é muito interessante pela possibilidade do encontro entre diferentes grupos de realizadores em um contexto de exibição de curtas-metragens e reuniões com produtores para maior exposição no mercado internacional.
Karim destaca a importância desse intercâmbio e ressalta como o projeto conseguiu promover boas trocas de experiências entre diferentes profissionais do audiovisual. Ele cita instruções sobre como melhorar roteiros, dirigir atores e levar outros olhares para as versões de montagem. O processo, enfatiza, não foi hierárquico, mas "uma troca de igual para igual".
Nesse encontro de mundos, em que cineastas de diferentes países colocaram projetos de pé, chamou sua atenção como "duas pessoas que vêm de lugares e de histórias tão díspares conseguem conversar, se entender e filmar juntas". Outro aspecto foi poder "pensar em projetos que já terão uma vida".
Quanto à Quinzena de Cineastas, celebra a oportunidade em Cannes, mas ressalta a importância de não se deslumbrar inteiramente: "Mais interessante do que o Festival de Cannes é a vida de um filme. O festival é uma vitrine. Depois ele coloca a obra em outro lugar. É importante essa conversa, porque há uma espécie de 'fantasia' dos festivais em jovens realizadores. Eles são como um fórum. O que mais importa é a vida do filme depois disso".
Um projeto como o Directors' Factory contribui para a internacionalização de produções audiovisuais e também para a valorização de nomes do ramo. Com a movimentação a partir da iniciativa no Ceará, mais de 100 profissionais estiveram envolvidos, entre roteiristas, diretores, diretores de arte, produtores, fotógrafos e montadores.
Para Aïnouz, essa experiência ajuda a fortalecer o audiovisual cearense e contribui para a autoestima local, principalmente de um estado que há 30 anos tinha ritmo reduzido de produções na linguagem artística. Ele ressalta, porém, que tudo isso é resultado de um trabalho coletivo e de um processo contínuo, incluindo a abertura do Laboratório de Cinema Cena 15 em 2013.
"Não é um evento acidental na perspectiva do audiovisual nordestino e cearense. É um processo de continuidade. Estamos ocupando espaços, tendo visibilidade, então é muito importante pensar que isso faz parte de uma trajetória de longo prazo", avalia.
Um dos curtas produzidos foi "Ponto Cego", da cearense Luciana Vieira e do cubano Marcel Beltrán. A obra narra a história de Marta, engenheira de sistemas que trabalha no Porto de Fortaleza e é responsável pela checagem técnica das câmeras de segurança. O espectador acompanha um dia de sua rotina em um ambiente essencialmente masculino e cheio de ruídos, o que a põe em situações de vulnerabilidade diante desses homens.
Ela compreende não poder abaixar a cabeça nem ficar em silêncio diante de abusos morais que sofre. As filmagens foram feitas no próprio Porto, a partir de articulação política e governamental, como relata a co-diretora Luciana Vieira. Antes da escrita do roteiro, houve grande pesquisa sobre o funcionamento do espaço, incluindo entrevistas com funcionários.
Os desafios elencados por Luciana vão desde o pouco tempo para a escrita da história ao alinhamento de desejos estéticos junto aos parceiros de criação. Nesse sentido, destaca como foi interessante o contato com o cubano Marcel Beltrán em uma jornada de partilhas não somente técnicas, mas também culturais.
"O que mais me chamou a atenção nessa parceria internacional foi alinhar e perceber as diferenças culturais. A cultura aparece não só nos temas que abordamos, mas na forma de trabalhar, de se expressar, ao saber o que agrada o outro em termos de estilísticos e de funcionamento de processo. Em uma parceria internacional, acho que é um tempero a mais, porque a experiência cultural de uma pessoa determina muito fortemente algumas coisas de ordem subjetiva", aponta.
Para Luciana, que também co-dirigiu a série "Meninas do Benfica" e foi diretora assistente de Karim Aïnouz em "Motel Destino", o principal aprendizado do Directors' Factory foi "escutar o outro". "Estávamos fazendo um filme que era, de certa forma, coletivo. Tínhamos que passar por muitas instâncias, escutar o outro, respeitar a intuição do outro. Confiar nisso foi a coisa mais bonita e é o aprendizado que levo", ressalta.
Luciana destaca o sonho de estar em Cannes. Ela pondera sobre as expectativas para o evento: "Espero que reverbere nas nossas caminhadas pessoais e profissionais, mas também na produção cultural do Ceará, no sentido de que as pessoas percebam que somos capazes de produzir muita coisa boa. Conseguimos fazer relações de coprodução internacional. Nosso cinema é forte".
Curtas do Director's Factory Ceará
O POVO em Cannes
O Festival de Cannes será acompanhado pelas plataformas do Vida&Arte. Além do caderno, haverá conteúdo no Portal O POVO e no Instagram. O jornalista e crítico de cinema Arthur Gadelha é o responsável pela cobertura e estará presente em Cannes. É o segundo ano consecutivo de cobertura dele no festival. Mas a relação do O POVO com o evento não é de agora. Em edições anteriores, colaboradores que estiveram credenciados enviaram materiais de repercussão para as páginas do Jornal.