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Dia das Mães: histórias costuradas pela arte, pelo afeto e pela maternidade
Vida & Arte

Dia das Mães: histórias costuradas pela arte, pelo afeto e pela maternidade

Seja pela dança, pela literatura ou pela palhaçaria, a arte permeia histórias de mães - de diferentes origens e idades - em vários momentos; hoje, o Vida&Arte destaca algumas delas
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MARACANAÚ, CEARÁ, BRASIL, 07-05-2025: Vida & Arte sobre como a arte atravessa histórias de mães, com a artista cearense Jordana Nascimento e sua filha Malu na Praça Waldemar de Alcântara. (Foto: Samuel Setubal/ O Povo) (Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal MARACANAÚ, CEARÁ, BRASIL, 07-05-2025: Vida & Arte sobre como a arte atravessa histórias de mães, com a artista cearense Jordana Nascimento e sua filha Malu na Praça Waldemar de Alcântara. (Foto: Samuel Setubal/ O Povo)

Às vezes, basta um giro no ar. Um lápis que desliza suavemente pelo papel ou dedos que teclam para transbordar palavras. Ou então um riso, uma brincadeira. Gestos que se expandem para além do abraço, do afago na cabeça ou do beijo na testa, que se juntam e transmitem a mesma mensagem: afeto.

Essas características podem construir a ponte de conexão entre mães e filhos, principalmente se vierem de quem desenvolveu também o apreço pela arte. Seja pela dança, pela literatura ou pela palhaçaria, ela também permeia histórias de mães, desde as que estão com ela entrelaçadas desde o início ou as que passaram a ter contato recentemente.

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Neste Dia das Mães, o Vida&Arte destaca histórias de mães de diferentes origens e idades, mas unidas por um fio comum: de algum modo, são atingidas pela arte e observam as consequências dessa conexão, seja nas compreensões sobre si ou nas relações com os familiares. Conhecê-las é oportunidade também de entender como linguagens artísticas podem ser aproveitadas das mais diversas formas.

Jordana Nascimento

Aos 8 anos, a pequena Malu já é uma artista. Desenha, brinca de reisado e já tem o entendimento de que a arte também é uma profissão. Esses traços não vieram do acaso: há bastante influência de seus pais — com destaque para sua mãe, Jordana Nascimento. Ela sempre fez arte e se viu como artista.

Sua trajetória é múltipla, não apenas pelos trabalhos artísticos, mas também pelos locais por onde passou. Natural de Viçosa do Ceará (a 349,92 km de Fortaleza), atravessou duas décadas de sua vida escutando que “não era possível viver de arte”, que o que fazia “era bonito, mas precisava encontrar outro ramo” para conseguir sobreviver.

Há mais de dez anos reside em Maracanaú, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF). Foi ao entrar em contato com o Grupo Garajal, atuante há mais de duas décadas no município, que passou a enxergar a arte como uma profissão. Hoje, Jordana ocupa várias vertentes, como produção cultural, mas também expande seus laços na palhaçaria (com o espetáculo “Número Um”, por exemplo), nas artes visuais e na literatura.

Integrante do Bota o Teu (coletivo de arte e cultura periférica em Maracanaú) desde 2017, produz o Sarau Bota o Teu, evento cultural independente. Jordana tem o estudo sobre o feminino como principal ferramenta para a construção de suas produções. Uma característica é o uso da arte também como plataforma crítica.

Outro aspecto é a maternidade: “A sensação que eu tenho é que ela me atravessa em todos os meus trabalhos”. Ela também faz aquarelas com sangue menstrual. Seus textos tratam de seus sentimentos “enquanto mulher e mãe na sociedade”, com dificuldades, desejos e raivas. Ao recitar seus textos em saraus, percebeu a identificação de outras mulheres e como era importante transmitir suas mensagens.

Jordana se fortaleceu tanto como artista como mãe. Ela pontua como às vezes a maternidade pode ser “cruel”: “Escutamos a vida inteira que precisamos ser mãe. Quando nos tornamos, somos excluídas e cobradas em vários sentidos. Se trabalhamos tendo um filho, vamos ser criticadas. Se não trabalhamos, também. Todo mundo vai opinar sempre”.

Ela também recorda: “Existe um abismo entre a maternidade e a sociedade. Somos excluídas de muita coisa. Eu estava em um contexto no qual precisei voltar para o Interior durante a gravidez. Foi uma volta muito dolorosa, porque volto a não fazer mais nada de arte porque era um lugar onde esse era o cenário. Passo esse período de gestação afastada de tudo que estava produzindo”.

Para a multiartista, “voltar a fazer arte depois da Malu” é um lugar totalmente diferente: “Tenho a impressão de que sou outra pessoa. Nasci de novo - sem romantização da maternidade, porque, para mim, isso nunca existiu. Renasci no sentido de que, se antes já me via nesse lugar de fazer arte para criticar, incomodar ou questionar, depois da Malu intensifiquei dez vezes mais esse lugar”.

Em sua visão, ser mãe e artista é um ato de resistência, porque não há o tempo de “maturar o trabalho” como outros artistas - que não são pais - têm. Conciliar esses dois lados, então, não é fácil. Mas é possível — e, no caso de Jordana, a parceria com Malu vai além da maternidade: é uma conexão também pelas veias artísticas que nela pulsam.

Jordana também é brincante do Reisado do Garajal e é responsável pela ornamentação de cenário, adereços e figurinos. Malu a acompanha desde 1 ano e 8 meses. Começou como guerreira do Reisado e depois se tornou “princesinha do Reisado”. Entretanto, quando viu uma criança vestida de Mateus e usando a cafuringa (chapéu em formato de cone), bateu o pé e decidiu: queria ser Mateus. Aliás, Mateus, não: Mateuza.

Assim, há cerca de cinco anos Malu incorpora Mateuza. A ideia culminou na criação da Casa Mateuza, espaço mantido por mãe e filha para oficinas formativas, eventos e o que mais abranger a arte e a cultura popular. “Eu acabo aprendendo mais com ela do que ensinando para ela”, brinca Jordana.

Para a artista, a maternidade a transformou no sentido de passar a valorizar mais o que está ao seu redor. No seu trabalho de palhaçaria, em vez de usar referências masculinas e europeias que eram colocadas no seu curso - em um período no qual “ainda era muito forte a questão de piadas machistas e homofóbicas no picadeiro -, passou a se questionar sobre seu processo.

“A maternidade está me atravessando o tempo todo. Quando chegava em casa e via a Malu, ainda bebê, pintar um caderno e de repente se pintar inteira, para mim era naturalmente cômico. Começo a entender que essa comicidade não está em outro país ou em outra figura com a qual não me relaciono. Ela está perto de mim, da minha filha, de mulheres que compartilham a rotina comigo”, argumenta.

FORTALEZA-CE, BRASIL, 02.05.2025: Marina Gomes , escritora. Dia das Mães Arte e Maternidade. (Foto: Fabio Lima/ OPOVO)
FORTALEZA-CE, BRASIL, 02.05.2025: Marina Gomes , escritora. Dia das Mães Arte e Maternidade. (Foto: Fabio Lima/ OPOVO)

Marina Gomes

Entre tantos autores que lançaram livros pela primeira vez na Bienal Internacional do Livro do Ceará deste ano, Marina Gomes, 77, foi uma delas. “Eu nunca pensei de estar lá apresentando o meu trabalho. Todos os anos de Bienal vou para o evento, mas para visitar os estandes. Desta vez, eu estava lá, do outro lado. Foi um momento muito bom para mim. Fiquei muito feliz também quando vi colegas aparecendo lá para me prestigiar”, compartilha.

No evento, exibiu ao público seu primeiro livro solo, intitulado “Ao Entardecer da Vida”. A obra é uma compilação dos textos produzidos nas coletâneas das quais participou. Professora e Orientadora Educacional aposentada, foi apenas há alguns anos que passou a se dedicar à literatura, participando de várias antologias a partir de 2019.

O envolvimento de Marina Gomes com a literatura aconteceu após sua aposentadoria. Hoje, integra o curso de Criação Literária no Sesc e instituições como Academia de Letras e Artes de Fortaleza (Alaf) e a Academia Feminina de Letras do Ceará (Afelce). Sua estreia foi na “Antologia dos Mandamentos em Prosa e Verso” (2019). Ao longo dos anos, suas participações só aumentaram. Há alguns anos, fez um livro infantil com uma colega, no qual ambas escreveram uma história cada. Na de Marina, se baseou em sua infância e usou seus netos como personagens.

É apenas um exemplo da ligação com sua família - inclusive, chegou a ser motivada a escrever uma história que envolva mais familiares. Para Marina, a maternidade “foi um grande presente de Deus” e faz questão de passar tempo com seus filhos e netos.

“Os meus filhos são as coisas mais importantes da minha vida. Eu estou fazendo um curso de pós-graduação em Psicanálise. Houve um sábado em que eu tinha aula, reunião do grupo literário e o aniversário do meu terceiro filho. Eu assisti à aula só pela manhã, vim para casa para almoçar com ele e meus outros filhos, não assisti à aula à tarde e cheguei no finalzinho do encontro literário. Priorizei ficar com eles. Uma das melhores coisas é quando consigo reunir todos eles”, afirma.

Ela lembra com carinho de quando lançou seu primeiro livro solo em 2023. Filhos e netos não só compareceram, como também participaram da apresentação da obra. Cada um leu um trecho do livro.

A escritora destaca a importância da literatura e afirma que a arte “preenche muito sua vida”. Na sua rotina, produz textos toda semana no curso de criação literária. “A literatura está sendo uma coisa muito boa para mim”, pontua.

FORTALEZA,CEARÁ, BRASIL,05-05-2025: Dia das Mães a partir do tema
FORTALEZA,CEARÁ, BRASIL,05-05-2025: Dia das Mães a partir do tema "mães que se redescobrem através da arte" Helena Sampaio, dança no Círculo Militar. (Foto: Samuel Setubal/ O Povo)

Dança que liberta

Helena Sampaio sempre foi muito afeita à dança. Apesar de não ter tido tantas oportunidades de praticá-la ao longo da infância, passou a se entrelaçar mais com a arte na fase adulta, com seu marido, em bailes no Náutico Atlético Cearense. Como lembra, ele tinha "todo o empenho de levá-la" para se divertirem, pois via o quanto gostava de dançar. Esse hábito continuou pelo "resto da existência com ele", como afirma. Mesmo com os filhos "já criados", eles iam constantemente ao clube Círculo Militar de Fortaleza. "A dança é uma coisa que faz bem, alegra a gente, a nossa vida, e faz a gente pertencer a esse tipo de diversão", destaca. Com a morte do seu marido há seis anos, porém, passou um período sem praticar a atividade. O retorno foi recente, há cerca de um ano. "Para mim, foi um refúgio, porque a viuvez é muito dura e muito sofrida, mas eu me via às sextas-feiras sempre com alegria no Círculo Militar. Lembrava-me com muita satisfação do tempo em que meu marido fazia parte dessa minha diversão. Essas idas ao Círculo Militar representavam um canal de escape", pontua. Professora durante quase 50 anos, Helena se alternava entre seu ofício e o empenho na criação dos filhos. Para ela, a maternidade "preenche tudo": "Ela é primordial, é essencial, e eu acho que na época em que a gente se dedica aos filhos não existe coisa melhor na vida. Ela substitui a dança, passeios, lazer. A maternidade é encantadora". Com os filhos já adultos, com seus lares e responsabilidades, o reencontro com a dança foi inevitável: "A dança é uma coisa que liberta. Envolve música, desempenho do corpo, conexão entre o que você está dança e o que está ouvindo… Tudo isso faz parte dessa manifestação. Tudo isso é arte". Ela também exalta outra paixão: a maternidade. "Quando uma pessoa consegue ter filhos, ela é agraciada. Enobrece a existência de qualquer mãe, porque é a maternidade é a coisa mais bonita, singela e gratificante que existe. Coisas que antes você tinha como importantes passam a ser secundárias. O ideal na sua vida é ser a mãe, se dedicar aos filhos, dar carinho e amá-los… Esse se torna o verdadeiro objetivo da gente". 

 

FORTALEZA-CE, BRASIL, 30-04-2025: Arte e maternidade. Na foto, Márcia Sampaio, que pratica dança desde sua infância. (Foto: Fernanda Barros/ O Povo)
FORTALEZA-CE, BRASIL, 30-04-2025: Arte e maternidade. Na foto, Márcia Sampaio, que pratica dança desde sua infância. (Foto: Fernanda Barros/ O Povo)

Dançar para a vida e todos os dias

Quando a designer de moda Márcia Sampaio dançou pela primeira vez, tinha quatro anos. Como recorda, era considerada "muito danada" por sua família, pela sua agitação para sair para dançar. Com 14 anos começou a ir para danceterias. Os únicos momentos em que parou de dançar estão relacionados a períodos específicos quando esteve grávida.

Ao olhar para sua jornada, vê uma trajetória artística múltipla, passando pelo teatro, pela moda e, claro, pela dança. "Ela sempre serviu como terapia. A dança sempre salva", diz Márcia. "Mesmo grávida pela segunda vez, fiz faculdade de moda. Parei seis meses para amamentar, mas voltei e concluí. Nunca deixei de dançar ou fazer outras coisas. Filhos nunca atrapalharam eu fazer nada. Tenho 54 anos, mas a minha alma é jovem, sou bem 'gata garota'".

Márcia é mãe de duas filhas, uma com 28 anos e outra com 18 anos. Mesmo que a rotina fosse puxada, ela se "reinventava" para conciliar a maternidade e atividades artísticas. "Sempre me reinventei. Quando passei da fase de 'dar de mamar', voltei a dançar. Nunca foi impossível. Respeitei o repouso dos primeiros meses, sempre respeitei meu corpo", indica.

Crescidas, as filhas incentivam a mãe nas suas práticas artísticas. Ela lembra de um episódio: "Eu fiz teatro por 20 anos. Quando minha filha mais velha era mais nova e foi assistir a uma peça minha - 'Branca de Neve' -, ela escutou a minha voz e começou a chorar, porque sabia que era eu, de tantos ensaios em casa".

Márcia costuma publicar vídeos de dança em seu perfil no Instagram e participa de eventos de Fit Dance há pelo menos seis anos. Sem dúvidas, a dança ocupa um posto muito importante em sua vida: "Sou hipertensa. Acho que, se não fosse a dança, talvez eu tivesse morrido (risos)".

 

FORTALEZA-CE BRASIL, 30-10-2024   Bate-papo sobre o livro
FORTALEZA-CE BRASIL, 30-10-2024 Bate-papo sobre o livro "Memória das coisas", com a autora Marília Lovatel (Foto Joao Filho Tavares O Povo)

A maternidade e o trabalho invisível das arpilleras

De certo modo, somos todas arpilleras quando, por meio das palavras ou de outras matérias, expressões, tecituras, compomos um mesmo corpo artístico, grávido de esperança a nos dilatar por um mundo melhor.

Surgidas na década de 1960, durante a ditadura de Augusto Pinochet, as produções dessas mulheres são protestos contra as violações aos direitos humanos. As histórias de dor estão nas paredes do Museu de Arte de São Paulo (Masp), que exibem como a violência atravessa as vidas femininas, altera os destinos das mães, com o represamento da água e a força das inundações.

"Mulheres atingidas por barragens: bordando direitos" é o nome dessa exposição que visitei no Masp. Trata-se de uma mostra de artesãs brasileiras, inspiradas nas arpilleras chilenas e em suas obras têxteis emocionantes.

Em Belo Monte, Brumadinho, em Mariana, na região de Tapajós, no Tocantins, em Rondônia, no Espírito Santo, na Bahia, no Ceará, essa manufatura é denúncia. Algo que inverte, toca a alma de quem contempla na distância, contendo o desejo infantil de ver com os dedos.

A maternidade, a ocupação com as crianças e os afazeres domésticos correspondem ao "trabalho invisível", título dado pelas artistas de Mulunguzinho, Jatobá, Alegre, Bom Jardim e Sítio Novo, localidades cearenses, à aplicação de retalhos costurados em tela de fibra de juta. Na firmeza improvável das linhas, reconhecemos a coragem de desafiar a ordem vigente, de se insurgir contra salários injustos, inferiores aos dos homens. Suas agulhas furam o tecido, incomodam os que determinam o padrão das tramas sociais. E a arte vence a indiferença às mães, que vertem nas lágrimas as águas guardadas.

 Ponto de vista da escritora Marília Lovatel

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