Numa pesquisa rápida sobre autoficção, vejo um recorte de um bate-papo com um escritor sudestino bem renomado. Os dois homens comentam a autoficção como "um pouco da viagem ao redor do umbigo". Um deles pergunta: "Cê num acha que isso também é um pé no saco?". O outro responde: "Não leio, simplesmente não leio, porque eu termino de ler esse livro e ele não me dá nada". Por coincidência, reli um livro desse autor há poucos meses. Inclusive, adorei. Adivinha do que se trata? De uma autoficção. Purinha. Ainda bem que não dependemos de leitores como esses para sermos lidas.
Escrevo no plural e no feminino porque reconheço que a minha escrita e a de inúmeras mulheres se aproxima do que se tem chamado de autoficção. Se há alguma novidade nisso, com certeza não está na mistura de elementos biográficos e inventados, mas na dinâmica coletiva de mulheres, em sua grande maioria, narrando suas vidas, escrevendo, publicando, lendo e impulsionando umas às outras.
É de se esperar que isso não seja mesmo do interesse de grandes escritores, que nem cogitam dividir o espaço da sagrada literatura com gente de qualquer tipo. Ignoram a escrita pulsante de Lorena Portela e como mulheres se salvam todos os dias.
Como diz Gloria Anzaldúa, numa carta às mulheres escritoras do terceiro mundo: "Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim". Imagina quantas mulheres contaram suas histórias nessa última Bienal do Livro do Ceará? O tema foi "Das fogueiras ao fogo das palavras: mulheres, resistência e literatura". Participei em dois momentos com meu primeiro livro, "A Boca do Peixe", lançado em 2024 pela Editora Substânsia. Não vou fingir costume.
Fiquei morta de feliz. Encontrei escritoras que eu super admiro, troquei livro com a Glória Diógenes e a Argentina Castro e meu livro vendeu bem que só. Acabei não vendo nenhuma atração de fora, mas vi pela internet um trechinho da participação de Andrea del Fuego dizendo que, historicamente, faz pouco tempo que nós, mulheres, começamos a escrever. Tem muito mais a ser dito, a ser elaborado. E isso não se faz só.
Percebi que podia contar minha história do jeito que eu sabia após ler "Claviculário", da Anna K. Lima. Quando li "Boca de Cachorro Louco", da Kah Dantas, confirmei que ainda me falta coragem para contar algumas histórias. As duas autoras são cearenses. Me entendi capaz na minha medida.
Outra escritora que me movimentou por dentro: Conceição Evaristo. Conceição pega a gente pela palavra. Ela diz que a escrita de mulheres negras revela experiências coletivas. É o que ela chama de escrevivência.
A autoficção pode chegar quase como um chamado, uma urgência. Aconteceu com uma amiga que passou recentemente por um término. Sentiu uma descontrolada vontade de escrever sua versão das coisas e já planeja mudar nomes e detalhes para compartilhar com mais gente. Eu fiz isso no "A Boca do Peixe". Troquei o nome de uma amiga da adolescência por Leidyellen. Assim que uma conterrânea de Boa Viagem leu o livro, me mandou um áudio com um pedido: "Por favor, me diz quem é a Leidyellen". Eu não disse, mas revelei quem era o aspirante a pastor que cito em outro texto. Ela se contentou mais ou menos.
Nesse processo de organização do primeiro livro, conferi algumas histórias com a mainha. Ela fez correções certeiras. Assumir minha escrita como uma autoficção me desobriga de seguir alguma verdade no que conto. Dá até um alívio.
Tem um livro da Elena Ferrante, chamado "As margens e o ditado", em que ela diz assim: "Com maior ou menor habilidade, fabricamos ficções não para que o falso pareça verdadeiro, mas para conseguirmos dizer o verdadeiro mais indizível, com absoluta fidelidade, por meio das ficções". Comigo, muito da escrita quem decide é o tempo. Vou dar um exemplo. Estou escrevendo outro livro.
Dessa vez, não são textos independentes. É uma história só. Um romance. Um dos personagens é baseado em um ex-namorado meu. Na primeira escrita, não mudei nada. Quando juntei esse pedaço ao resto da história, mudei nome, características e lugares, além de acrescentar detalhes que nunca aconteceram. Mesmo assim, se esse ex-namorado chegar a ler o livro, vai se reconhecer. Como essa história já tem muito tempo, não me importo mais.
A escrita de autoficção me permite dar destino às memórias e mexer com as palavras que me narram. É que nem diz a Gloria Anzaldúa: "Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva da complacência que me amedronta. Porque não tenho escolha. Porque devo manter vivo o espírito de minha revolta e a mim mesma também".
Tuyra Andrade
Natural de Boa Viagem, Tuyra Andrade é professora da rede pública estadual e ministra a disciplina Literatura Marginal para estudantes do Ensino Médio. É autora do livro "A Boca do Peixe" (Editora Substânsia, 2024).