Quem costuma realizar andanças por Fortaleza já deve ter se deparado com nomes de ruas ou avenidas que carregam títulos de personalidades históricas como Jovita Feitosa e Tristão Gonçalves. Pessoas que permaneceram na memória por seus feitos, quer fosse a atuação na Guerra do Paraguai ou na Confederação do Equador, respectivamente.
No caso do movimento contra a escravização da população negra, há muitos nomes do território cearense que se destacam. Temos Dragão do Mar - o Chico da Matilde -, Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti - o Bezerra de Menezes -, João Cordeiro, Liberato Barroso, entre outros. Porém, a verdadeira lembrança de suas lutas por uma sociedade com equidade racial parece ter ficado no passado.
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De acordo com Isaac Santos, coordenador especial da Igualdade Racial de Fortaleza, esse esquecimento é resultado de uma "política muito seletiva de memória". "Relembrar essas figuras no sentido de um processo revolucionário", pontua. O também professor salienta que nesse processo é preciso dar atenção ao protagonismo das mulheres negras dentro dos movimentos pela libertação do povo negro escravizado durante o século XIX.
"É uma coisa que muitas vezes o status quo não deseja", afirma. Isaac chama a atenção para o perigo do esquecimento da história dessas pessoas, pois leva a crenças errôneas como a de que "não há negros no Ceará" ou de que o Estado foi um dos primeiros a emancipar o povo por ter uma presença baixa de escravizados.
"Então, há um processo de projeto mesmo de apagamento dessa memória, porque há uma necessidade de se garantir uma memória de uma branquitude, de um pensamento que vai, inclusive, fortalecer aquela ideia de que no Ceará não tem negros", salienta o coordenador. "Mas exatamente por conta dessa memória de esquecer os abolicionistas, de pensar uma cidade que não é negra, de esquecer figuras como José Napoleão, Tia Simoa, Dragão do Mar", conclui o docente.
Dados do último Censo Demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam que 6,8% da população cearense se autodeclara negra. Um aumento de 51,7% em relação ao apurado em 2010.
Para a pesquisadora Cícera Barbosa, resgatar essa memória é também um gesto de lutar contra uma narrativa que traz a história do negro cearense ligada somente à escravização e como um produto. "Então, nessa lógica, você tem muito mais anos em que nós somos vistos como um produto que pode ser vendido e comprado", explica a mestranda em História pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
Segundo ela, a ideia de que havia poucos negros no Ceará foi disseminada devido ao tráfico interprovincial, uma vez que pessoas escravizadas no Estado eram enviadas para o Norte, o Sul e o Sudeste do Brasil. "Se você anda em qualquer escola pública, cidade do interior, quando você estuda os territórios quilombolas do Ceará e vê que você tem aí centenas de quilombos no Ceará, você vai ver que a gente está espalhado em todo o Estado e nós somos milhares e milhares", afirma a pesquisadora.
Então, revistar a memória por meio dessas personalidades, principalmente aquelas que sequer viraram nomes de ruas - como Preta Tia Simoa e Aninha Gata - é também um "exercício de contracolonização", conforme ilustra Cícera. "Pessoas que dedicaram a vida a questionar essa lógica cruel, que é uma lógica que faz uma diferenciação violenta e cruel dos sujeitos por causa da cor, por causa dos fenótipos, por causa da identificação com a cultura ancestral", pontua.
Hilário Ferreira, cientista social e mestre em História pela UFC, destaca que os abolicionistas lembrados pela historiografia oficial são apenas as pessoas brancas que, embora tenham ajudado a quebrar as correntes, não foram tão intencionais na elaboração de políticas públicas que pudessem auxiliar na integração e desenvolvimento social de pessoas negras escravizadas.
"Não fala do radicalismo dos abolicionistas que lutaram negros, no caso específico do Ceará. Nós temos Zé Napoleão, nós temos Preta Simoa, nós temos o Chico da Matilde, que mais tarde se transforma, ganha a alcunha de Dragão do Mar", enfatiza o também doutorando em História.