Grades, estruturas pontiagudas, pedras embaixo de viadutos, arranjos vegetais. Essas e outras instalações tão comuns na arquitetura de Fortaleza podem passar despercebidas pela maioria da população que as cruza no dia a dia, mas não estão ali à toa e são cotidianamente notadas por uma parcela que já vive cercada de vulnerabilidades e violações de direitos: a das pessoas em situação de rua.
Sem ter onde dormir ou se proteger do relento, grande parte delas recorre a marquises, alças de viadutos, cobertas de estabelecimentos ou bancos de praças e pontos de ônibus, principalmente à noite, para se abrigar.
Muitas, porém, encontram barreiras que vão além das sociais e econômicas: se manifestam de maneira física através da
O que parecem ser apenas elementos decorativos ou de design diferenciado são intervenções urbanas que têm como resultado o afastamento de segmentos mais vulneráveis, a exemplo de pessoas idosas, jovens, crianças e pessoas com deficiência; ou, ainda, o constrangimento de grupos como o de pessoas obesas, que são afetadas por estruturas como as divisórias colocadas em bancos.
Exemplos de elementos hostis na arquitetura
Na Capital, um dos bairros em que essa realidade se apresenta de maneira mais visível é o Centro, onde se concentra uma quantidade significativa de pessoas sem-abrigo — público que cresceu consideravelmente durante e após a pandemia de Covid-19.
O cenário fica evidente em locais como as praças da Bandeira, do Ferreira, dos Leões, da Estação e do Passeio Público; ou nas proximidades do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, da Praça Pajeú (CDL) e a do Sagrado Coração de Jesus; assim como nas adjacências das avenidas Dom Manuel e Imperador, onde há pousadas sociais voltadas ao acolhimento provisório dessa população.
Coincidência ou não, também nesses lugares é possível identificar alguns exemplos de técnicas arquitetônicas hostis, conhecidas ainda como arquitetura defensiva ou design urbano defensivo, que se materializam principalmente na forma de grades ou gradis e representam uma camada a mais de segregação e exclusão nos espaços — inclusive públicos. Confira o mapa a seguir:
Cartografia da arquitetura hostil em Fortaleza
Este é um mapa colaborativo. Você pode pesquisar lugares que identificou e adicionar marcadores para que apareçam nele. Também é possível inserir uma descrição e imagens dos elementos hostis encontrados. Colabore :)
A prática tem ligação direta com a
Padre Lancellotti, que também é coordenador da Pastoral do Povo de Rua, ajudou a criar o Observatório de Aporofobia Dom Pedro Casaldiga para denunciar locais em todo o País que adotassem a arquitetura hostil. Com a repercussão do caso do viaduto, um projeto foi criado para que a arquitetura hostil fosse proibida por lei no Brasil.
A legislação chegou a ser vetada pelo então presidente Jair Bolsonaro, mas teve o veto derrubado no Congresso Nacional, foi promulgada em janeiro de 2023 e regulamentada pelo governo Lula em dezembro, com o nome de Lei Padre Júlio Lancellotti (Lei Nº 14.489/2022) em reconhecimento ao trabalho desempenhado pelo sacerdote desde 1986 na capital paulista.
A normativa altera o Estatuto da Cidade para proibir “o emprego de materiais, estruturas, equipamentos e técnicas construtivas hostis que tenham como objetivo ou resultado o afastamento de pessoas em situação de rua, idosos, crianças e outros segmentos da população”.
A lei também aborda como diretriz geral da política urbana a promoção de conforto, abrigo, descanso, bem-estar e acessibilidade nos espaços livres e públicos, direcionamentos compartilhados com o “Guia Inclua – Pop Rua – Avaliação de Riscos de Desatenção, Exclusão ou Tratamento Inadequado da População em Situação de Rua”, do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, que trata de temas como a arquitetura hostil.
“O combate à aporofobia exige, antes de tudo, que tomemos consciência, individual e coletivamente, da existência desse tipo de discriminação. É necessário educar as pessoas e criar instituições sociais empenhadas em acabar com a pobreza através da construção da igualdade”, diz o texto de apresentação do guia.
Segundo defensores da proposta e coletivos assistenciais, um dos objetivos da arquitetura hostil é a especulação imobiliária, já que acredita-se que a remoção dessas pessoas valoriza o entorno e consequentemente aumenta o valor dos imóveis na região.
Embora essas sejam questões que fazem parte do tecido urbano de Fortaleza, a Capital demonstra sua hostilidade de maneira mais sutil em relação a São Paulo, na avaliação de especialistas.
Por já estarem incorporados à paisagem urbana, muitos desses elementos são normalizados como se já fizessem parte do esperado, mas revelam a anatomia de uma cidade proibida – para alguns.
Aqui, a grade na mureta da jardineira pode ser só um elemento decorativo, mas impede que pessoas sentem ou deitem. O senhor que aparece na imagem tenta, mas não deve passar muito tempo.
Aqui, a grade baixa não serve como segurança adicional, mas evita que alguém se utilize desse espaço para sentar ou deitar.
“Fortaleza já tem um desenho de cidade e arquitetura pouco convidativo à permanência no espaço público. Nossas calçadas são estreitas e delimitadas por muros, paredões ou grades sem espaços de permanência nem de transição entre o espaço público e o privado. A gente já tem uma cidade hostil”, afirma a arquiteta e urbanista Sara Vieira Rosa.
Rosa, que é pesquisadora do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará (Lehab/UFC), explica que essa é uma questão “que vem de problemas anteriores e mais profundos ligados à forma desigual e excludente de como nossas cidades são produzidas”.
“E que gera uma parcela da população que fica completamente à margem da sociedade, e que é novamente penalizada porque, para elas, nem o espaço público é público”, coloca.
Antes x Depois: Edifício na Av. Heráclito Graça, no Centro de Fortaleza (2020-2022)
Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP), Sara Vieira Rosa reflete que esse é um sintoma de uma “sociedade como um todo hostil”.
“Que acaba deixando uma parte da população às margens, excluída. Há uma concentração de riquezas e, em contrapartida, um aumento dessa população vulnerável, que habita as ruas porque é o espaço que sobra para elas. E aí as edificações existentes vão se adaptando também para excluir”, pontua.
Embora seja um debate que somente ganhou força no Brasil nos últimos anos e que ainda tenha recebido poucas abordagens em pesquisas científicas da arquitetura, essa é uma realidade em diversas cidades mundo afora e constantemente levanta discussões sobre sua influência na relação do indivíduo com os espaços públicos. Afinal, para quem é a cidade se não é para todos?
Estudiosos da área sobrelevam que, se a base da arquitetura é o abrigo e o ofício do arquiteto e urbanista é justamente propor espaços de bem estar e acolhimento, impedir o uso de lugares públicos é uma espécie de antítese da arquitetura, ou anti-arquitetura. É reforçar a mensagem: “esse lugar não é para você”.
A conscientização sobre esse recente fenômeno tem se espalhado por países como a França, onde centenas de elementos hostis foram mapeados a partir de uma campanha on-line chamada #SoyosHumains (“vamos ser humanos”, em tradução livre). Na Grã-Bretanha, tachas metálicas foram cobertas com almofadas e colchões; já na Índia, construções similares foram substituídas por flores depois de uma movimentação nas redes sociais.
Um exemplo de intervenção positiva foi o realizado pela RainCity Housing, ONG canadense que instalou dois tipos de bancos em áreas públicas de Vancouver: em um deles era possível ler a mensagem “isto é um banco” quando estava de dia, com a luz do sol; e a noite aparecia a frase “isto é um quarto”, devido ao uso de uma tinta especial.
“Nossas cidades são o espelho da má distribuição de renda em nosso País. São cidades segregadas pela renda: bairros para ricos e bairros para pobres. Essa segregação induz a mais desigualdade e violência urbana”, ratifica o arquiteto e urbanista cearense Odilo Almeida, presidente nacional do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB).
Conforme acrescenta Almeida, “o urbanismo moderno apresenta um repertório de soluções para tornar as cidades mais inclusivas, mais acolhedores e sustentáveis”.
“A Lei Padre Júlio Lancelotti é inspirada nesse repertório de ideias, que vão desde a construção de edifícios mais acolhedores até espaços públicos amigáveis. Ela não resolve o problema da má distribuição de renda, mas denuncia suas consequências e procura atenuar seus efeitos perversos”, continua.
O presidente do IAB pondera que o crescimento acelerado da população e da urbanização no século XX agravou os problemas urbanos, o que tornou os desafios de hoje bem maiores.
“Mas também as soluções se multiplicam e se mostram viáveis. A conscientização e a mobilização social são fundamentais para mudar esse quadro de desigualdade e de sofrimento de milhões”, atesta.
“Como categoria profissional organizada, os arquitetos continuam influenciando nos debates sociais e políticos em todos os níveis, propondo novas leis, novas técnicas, novos materiais e novas formas de produção de espaços urbanos”, sinaliza.
As soluções, de acordo com o arquiteto, passam por:
A hostilidade que se manifesta através da arquitetura é um sintoma das desigualdades sociais que atingem os grandes centros urbanos e forçam uma parcela da sociedade a viver de atividades como coleta de materiais recicláveis, “bicos” e mendicância, sem a garantia de direitos básicos como a moradia digna.
No Brasil, a população em situação de rua é estimada em 281.472 pessoas — um crescimento de 38% entre 2019 e 2022, o que demonstra o impacto da pandemia de Covid-19 nesse contingente populacional.
O dado é da Estimativa da População em Situação de Rua no Brasil (2012-2022), do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que indica São Paulo como o estado em que quase metade dessa população está concentrada.
Conforme o levantamento, de cada dez pessoas em situação de rua, quatro estão lá. Somente na capital paulista, onde padre Julio Lancelotti é pároco, são quase 50 mil — das mais de 80 mil que vivem nas ruas do estado e que correspondem a 42% da população de rua nacional.
O total diverge de um outro mapeamento: de acordo com o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua da Universidade Federal de Minas Gerais (Polos-UFMG), a população de rua no Brasil é composta por 242.756 pessoas.
O estudo, que é feito a partir de dados do Cadastro Único (CadÚnico), do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), aponta que 69% dessa população é negra (soma de pessoas pretas e pardas).
Conforme o Polos de Cidadania da UFMG, a origem da população em situação de rua no Brasil tem relação “direta e perversa com o racismo estrutural e o pacto da branquitude historicamente estabelecidos no País”.
“Isso nos leva ao pensamento do jamaicano Charles W. Mills, em ‘O contrato racial’, em que na sua intervenção filosófica negra afirma: ‘a supremacia branca é o sistema político não nomeado que fez do mundo o que ele é hoje’”, destaca o texto de divulgação.
A afirmação de Mills refere-se, também, às lutas do movimento negro e às mazelas do Estado em relação à moradia do negro, da sua condição social no Brasil e em outras partes do mundo.
“Podemos dizer que tem uma relação direta com a população em situação de rua e a falta de políticas públicas que auxiliem na melhoria de vida desses sujeitos, que têm cotidianamente diversos direitos ainda usurpados”, complexa o texto do Polos de Cidadania.
No Ceará, 9.686 pessoas viviam nas ruas em 2022, e mais da metade desse contingente estaria concentrada na Capital, de acordo com o observatório.
Os dados confrontam o mais recente Censo da População de Rua da Prefeitura de Fortaleza, divulgado em 2022, que indica que 2.653 é a quantidade de pessoas em situação de rua em Fortaleza.
Discrepantes, as bases evidenciam o tamanho do cenário e a sua capilaridade, mas, conforme Arlindo Ferreira, da célula Ceará do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR-CE), não refletem o quanto essa população cresceu na Cidade nos últimos anos: o número, para ele, é bem maior do que o contabilizado.
“Até mesmo de acordo com os Centros POPs [que são os centros de referência especializados para população em situação de rua] temos informações de que todas as semanas os prontuários de novatos crescem de forma exponencial, até mesmo por conta das abordagens de rua feitas pelos próprios técnicos desses equipamentos, que acompanham regularmente esse crescimento”, registra.
Para Arlindo, a arquitetura hostil se concretiza de maneiras que vão além da forma física e também estão em políticas, comportamentos, protocolos e posturas.
“Ela [arquitetura hostil] está na grade colocada sobre a fachada de um prédio, nas igrejas cercadas, na postura do agente patrimonial ao impedir acesso a locais públicos, em não permitir que durmam nos bancos durante o dia, porque muitas vezes não se dorme à noite”, coloca.
“Quando vejo prédios públicos e privados entregues à ação do tempo e abandono enquanto tem tanta gente sem casa, essa é a forma mais hostil. Isso perpetua e fomenta o crescimento das classes vulneráveis, entre as quais a população de rua está no topo da vulnerabilidade”, continua.
Na opinião de Arlindo, que também integra o primeiro Conselho Estadual da População em Situação de Rua e em Superação da Situação de Rua (Cepop), “é preciso pensar no uso de tais imóveis, na habitação de interesse social, pois acabam só servindo para a especulação imobiliária, empurrando o povo para fora dos grandes centros urbanos”.
“E assim essas pessoas param nos pés de tais imóveis, que ficam fechados e cercados. O que me perturba é que a Lei Padre Júlio Lancelotti, que procura garantir o mínimo de acolhimento numa situação hostil, é ignorada pelas próprias igrejas, pois estão cercadas e com guardas nos portões, excluindo a população de rua”, pontua.
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A Lei Júlio Lancellotti
Lei que proíbe arquitetura hostil é promulgada
"Oie :) Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários. Até a próxima!"