Quando Fausto Nilo é questionado sobre sua infância, Quixeramobim (a 204,4 km de Fortaleza) não se torna apenas a cidade onde nasceu. É preciso voltar às origens de um município cuja ocupação inicial se deu a partir da configuração de uma “base física de permanência de pessoas à beira do Rio Quixeramobim”, como recorda o cearense.
A cidade, que no início era marcada por fatores como seu “padrão caminhável” e as casas que tinham seus fundos voltados para o rio, cresceu. Além disso, tornou-se “mãe” de “filhos ilustres” como os mestres da Cultura Dadá Leitão e Mestre Piauí, do líder religioso Antônio Conselheiro e, claro, do compositor, poeta, arquiteto e urbanista Fausto Nilo.
Em 5 de abril, o autor de mais de 500 composições completa 80 anos. Sua carreira foi marcada por parceiros e intérpretes como Ednardo, Fagner, Gal Costa, Chico Buarque, Simone, Elba Ramalho, Belchior, Geraldo Azevedo, Moraes Moreira e Lulu Santos. Formado na primeira turma da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Ceará (UFC), sua paixão por desenhos veio ainda na infância.
Responsável por projetos arquitetônicos como o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura e o Mercado São Sebastião, em Fortaleza, hoje ele trabalha “no projeto mais importante de sua vida”: um plano para Quixeramobim para “conter a dispersão humana”.
Segundo Nilo, em um período de 20 anos o município cresceu 4 km para o lado norte e recebeu “elementos dispersores”, como o Hospital Regional implantado “a 5km de distância do Centro Histórico”, que teria esvaziado-o. Além disso, a unidade contribuiria para a criação de uma “comunidade naturalmente de classe média mais alta”, que poderia levar a uma “separação” dos habitantes.
Perto de completar 80 anos, Fausto Nilo recebeu O POVO em seu escritório para lembrar de quem foi na infância, dos trajetos que o levaram a caminhar tanto pela música quanto pela arquitetura e do seu compromisso com o social, seja ele a partir de letras de canções ou de projetos urbanísticos. Neste caderno especial, Fausto Nilo é o protagonista. A história de um dos principais letristas do Brasil deve, sem dúvidas, ser ratificada.
O POVO: Primeiro, queria voltar às suas origens, em Quixeramobim. Que memórias mais te marcaram desse período?
Fausto Nilo: A Quixeramobim de hoje não é a do período da minha infância. A minha era essa em que não precisávamos de carro. Eu me recordo que existiam uns dois jipes de propriedade particular e esses jipes às vezes eram alugados para uma pessoa ir para a fazenda e voltar. Era um lugar povoado de fazendas e foi um núcleo de crescimento do gado.
Depois, teve algodão e até hoje o leite é uma das características produtivas da economia de lá. Eu morei em uma Quixeramobim ainda no aspecto de cidade histórica mais concentrada e caminhável. Na minha infância o divertimento era futebol. Minha vida até os 16 ou 17 anos era com ele. Eu até tinha o sonho de me tornar um jogador, mas sempre fui mais inclinado para o meio de campo, com o toque de bola, aquela coisa toda. Não era do tipo que jogava dentro da pequena área do adversário. Meu estilo era esse. Cheguei a jogar uma partida no PV pelo time juvenil do América, mas foi nesse momento que, com minha autocrítica, percebi que tinha que mudar de pretensão (risos).
Mas a minha infância era futebol, ouvir música… Havia um sistema de alto-falantes pela cidade, incrível mesmo. Quatro deles em pontos estratégicos, para que todos pudessem ouvir. Então, minha infância era passear à beira do rio com os meninos, pescando piaba, e indo à pracinha à noite. Lá, ficávamos passeando enquanto os meninos circulavam ao redor das meninas. Muitas atividades giravam em torno da igreja, tinha novenas, missas de domingo e o cinema - que para mim foi uma âncora fundamental. Passavam séries e filmes americanos, os filmes vinham no trem e eram exibidos às quartas-feiras e aos sábados, uma coleção de filmes que suponho serem de pós-guerra. Quando o trem atrasava, eles repetiam as obras. Tinha uma série da atriz Dorothy Lamour…
O POVO: Que depois seria homenageada pelo senhor, de certa forma, não é?
Fausto: Foi. Quando atrasava o trem, os “caras” se encontravam antes e perguntavam qual seria o filme a ser exibido daquela vez, e falavam da Dorothy Lamour como se houvesse uma intimidade. É engraçado, porque passei uns dias em Los Angeles (EUA), onde morava minha cunhada. Ela era casada com um americano cuja mãe trabalhou por muito tempo nos estúdios de Hollywood. Quando cheguei lá, tinham preparado uma visita para a casa da Dorothy Lamour. Eu não fui.
Não tive coragem, porque lembro que o Caetano Veloso fez uma música para a mulher do Federico Fellini (cineasta italiano) e ela não gostou. Acho que depois ficaram amigos, mas eu só pensava nisso. Acabei não indo conhecer a Dorothy. Pouco tempo depois ela faleceu. Mas era essa a minha infância, com cinema, futebol e mais aquelas festas de período de São João, Carnaval e fim de ano. Quando a gente jogava ficava ouvindo música por causa do sistema de som. Eu jogava bola e ouvia Orlando Silva, Nelson Gonçalves, aquele povo antigo do rádio. Isso, para mim, foi muito importante. A minha casa era muito musical. Minhas irmãs tinham um caderno com letra de música. Minha mãe trabalhava cantarolando canções de um período anterior às gravações. Muita coisa que ouvi eu nunca encontrei em disco.
O POVO: O senhor citou sua mãe. Lendo sua biografia escrita pelo jornalista e crítico de música do O POVO, Marcos Sampaio, vi que sua mãe incentivava os dotes artísticos dos filhos e que ela era diferente do seu pai nesse sentido. Qual foi a importância dela na sua vida artística?
Fausto: Era deixar crescer a arte. Ela dizia que tinha que ter um futuro, um emprego, uma boa colocação, ela treinava um pouco a gente para isso. O papai, embora fosse fortalezense, mudou-se para Quixeramobim com 17 anos, então ele tinha uma noção da vida na Capital. E tinha uma biblioteca, uma das únicas em Quixeramobim, talvez. Mas ele também era uma pessoa que gostava muito de música, só não gostava da ideia de nós irmos embora de Quixeramobim.
Ele achava que eu deveria ser comerciante. Eu costumava ouvir muito o rádio e sempre imaginava essa outra vida em uma cidade mais desenvolvida. Eu sonhava muito, desde criança, em ir para o Rio de Janeiro um dia. E havia essa coisa da região, da gente saber que existe uma região mais desenvolvida, onde certas coisas acontecem… Nunca falei isso, mas está me aparecendo agora. Acho que eu era um garoto que dava muita importância à informação externa àquilo que eu vivia, lia jornal, tomava notícias…
O POVO: Qual foi o primeiro impacto que o senhor teve quando chegou em Fortaleza?
Fausto: Peguei um trem com 11 anos de idade, com uma lata de frango com farofa. Cheguei aqui à meia-noite. Havia uma família que me esperava, amigos no meio da minha tia, uma família maravilhosa e inesquecível. Era uma família acolhedora. Eles foram ótimos comigo, fiquei lá menos de um ano, depois fui para casa de outra família que também me apoiou muito. Eu morei com uma das irmãs da primeira mulher do meu pai e morei também na casa dos pais deles na Floriano Peixoto - nela, morei em três lugares. Tenho um amor muito grande pela memória daquele lugar. Ali foi minha inserção em Fortaleza.
Estudei no 7 de Setembro e depois fui pro Liceu. Mas esqueci de dizer que era a segunda vez, porque nós migramos em 1951. A família toda veio morar aqui, ali na José Bastos, aliás, por ali pertinho dali do Porangabuçu. Meu pai montou uma padaria, foi uma coisa muito ousada, mas não deu certo, porque não se adaptou mais a Fortaleza. Ele teve dificuldade com a vida mais anônima da capital, embora ele fosse daqui. Minha mãe tinha uma visão diferente, ela queria lutar por isso, então nós viemos, eu tinha 7 anos, e tenho a memória perfeita desse período. Morávamos lá, nessa região, ali perto do Incra. Tinha uma tia que morava na Aldeota, eu vinha domingo, passava o dia na casa da tia, e depois de um ano e pouco, voltamos todos. Aí eu volto de novo em 1955.
O POVO: O que o senhor sentiu quando se deparou com a nova cidade?
Fausto: Foram dois momentos. O primeiro foi em 1951. Eu lembro dos ônibus, o formato deles, a carroceria deles era feita de madeira com veneziana. Eu lembro da Praça do Ferreira. Com sete anos de idade, a gente passear sábado à noite era uma coisa fantástica, na minha visão de criança, uma coisa tão iluminada, vitrines e com muita gente. A Cidade era muito concentrada na expansão da zona central. Eu me lembro das árvores, diferentes. Existiam muitas mangueiras e cajueiros. Eu achava legal ver uma ou outra pessoa famosa do rádio na rua. O segundo momento foi quando eu tinha 11 anos. Logo com pouco tempo eu andava a cidade toda.
Ia para o Antônio Bezerra, onde tinha amigos. Eu ia muito lá, e também tinha parentes. Fortaleza tinha um centro único. Depois do automóvel, ela cresceu e, naturalmente, ficou policêntrica. Teve também o Liceu na minha vida, uma coisa importantíssima. Tive professores excelentes e amigos maravilhosos, como Belchior. Ali também aprendi um pouquinho de política. Descobri que na cidade existiam uns meninos que não gostavam de futebol, mas gostavam muito de cinema e arte, e também desses filmes europeus. Passamos a não gostar mais de filmes americanos. A 50 metros da minha casa montou-se o Cine Art em Fortaleza, com filmes italianos do neorrealismo e franceses da Nouvelle Vague. Tive o privilégio de, com 12 até 15 anos, ter visto quase tudo de Nouvelle Vague. Passamos a querer ser mais intelectuais. Era muito ligado à arte, eu desenhava desde os oito anos. É uma coisa que me acompanha até hoje.
O POVO: A todo instante são novos projetos e esboços para o senhor?
Fausto: Eu nunca parei. Agora, o meu escritório é diferente dos grandes escritórios, mas por escolha mesmo. Eu tive um período fora daqui. Fiquei 14 anos morando no Rio de Janeiro e dois anos em São Paulo. Trabalhei no metrô de São Paulo. Aproveitei isso. Primeiro, eu me formei aqui. Fiz muitas casas. Quando eu estudava no Liceu, passei a ser conhecido como desenhista e a trabalhar com arquitetos. Foi uma formação complementar muito boa. Conheci o Delberg Ponce de Leon e tivemos muitas obras em conjunto. Somos amigos até hoje.
Nessas obras predominavam as residências de “classe média”. Isso nos deu muita prática. Depois de ter me formado, fui para Brasília e me tornei professor da Universidade de Brasília, emprestado pela UFC. Tive o privilégio de ser o primeiro contratado como auxiliar de ensino. Eu caí no movimento estudantil na área dos Arquitetos. Passei a conhecer muita gente São Paulo, da Bahia, Pernambuco… Quando fecharam a faculdade de Arquitetura, no período da ditadura, fiquei acampado lá por vários dias - e o campus todo cercado de tanques. Foram muitas “aventuras desse tipo”. Fiquei preso sete dias em São Paulo por ter ido ao Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), que foi feito clandestinamente.
Me lembro de estar na Praça do Ferreira com meu primo e ouvir João Goulart dizer que faria a reforma agrária, que o Brasil poderia alimentar todos os seus habitantes porque havia fartura de terra. Era uma promessa grande diante de um quadro de desigualdade que a gente começou a perceber muito cedo. Eu me perguntava por que motivos há gente desperdiçando tanto e pessoas sem ter o que comer. Eu trabalho com isso até hoje nas minhas duas profissões. Eu digo sempre que a política formal é para os políticos. A minha política é nas letras de canções e nos projetos de Urbanismo. Acho que toda minha clientela sabe disso quando vai me contratar. Ela sabe que o projeto terá todas aquelas preocupações com a maioria, que realmente demanda melhorias na vida urbana.
O POVO: Queria enveredar para o seu lado musical. Como o senhor avalia a sua evolução ao longo desses anos enquanto compositor?
Fausto: Vivi no Rio de Janeiro e me transformei em um letrista de atividade regular, que grava música até hoje. Não tem um ano da minha carreira como letrista que eu não tenha gravado, só que, com o tempo, você evolui no seu trabalho. Eu não escolhi na música popular um caminho de vanguarda. Respeito quem escolhe, mas se eu tivesse escolhido eu também não reclamava de nada, porque é o preço que se paga pelo “ineditismo radical”. Ao mesmo tempo, sou uma pessoa que gosta de inovar a cada obra, mas tenho preocupações estilísticas que eu preciso considerar.
Fui adquirindo segurança disso com o tempo. A minha luta neste trabalho, que era desconhecido para mim (que no começo eu me achei infiltrado), mas como era um grande ouvinte e leitor de poesia, era: como faço uma poesia de qualidade minimamente bacana e que sirva às pessoas como algo que as complete, que responda alguns aspectos? Isso é uma coisa em discussão neste momento que vivemos. Pode ser que a música - não estou falando contra isso - tenha uma evolução para algo instrumentalizado, transformado em um instrumento que promove o ritual e a dança. Predomina muito isso hoje em termos de shows para multidões gigantescas.
Eu tenho problema com isso. Eu não vou - a não ser que seja um parceiro e que ele insista muito. Eu só gosto de shows onde vejo o olhar da pessoa. Como se fosse aquela coisa típica que foi na França dos anos 1940 e 1950, em que o intérprete era o poeta e ele chegava e dizia aquilo. Eu acredito muito nisso. Eu não quero ser um cantor como foram meus amigos - e a quem devo tanto, porque eles levaram isso ao público e levaram muito bem. Essa parte a gente equilibra nossas contribuições muito bem, todos os meus parceiros que cantam.
Sem eles, minha música não existiria, porque eu não me dispus, nem acho que seria um bom. Agora, posso ser o velhinho poeta que apresenta suas poesias cantando, e há público hoje, por incrível que pareça, mais do que antigamente, que dá importância a isso e escolhe também ouvir isso. Por isso que eu faço show uma vez por ano. Eu me chamo um cantor local, mas tem um público que me considera. Meus amigos, felizmente, muitos se transformaram em artistas nacionais de grande importância. Tenho muito orgulho de ter sido parceiro de Fagner, de Moraes Moreira, de Geraldo Azevedo… Tem uma multidão gigantesca de intérpretes.
O POVO: Mesmo sendo um dos principais letristas da música brasileira, seu nome acaba não saindo muitas vezes nos holofotes. Isso incomoda o senhor?
Fausto: Quando era garoto, tinha muita curiosidade em saber o nome de quem fazia as músicas que eu ouvia na Rádio Nacional. Eu já tinha essa curiosidade, dava muita importância a isso, então sei os nomes de autores de inúmeras letras. Confesso que sempre achei charmoso ser da “coxia”. Como eu saía com meus amigos famosos, eu via como era a vida deles em relação ao público, em que você tem que se manter com bom humor e agir de forma bacana. Eu nunca tive esse problema.
Como moro em Fortaleza e às vezes apareço na televisão, tem pessoas que vêm até a mim, mas em um nível muito tolerável. Tem um que diz: “Esse é o Fausto, ele fez a música do nosso casamento, lembra? Ele também é arquiteto, mas é mesmo letrista”. Outro que diz o contrário: “Olha, esse é o Fausto, ele desenhou o Dragão do Mar, ele também é letrista, mas é mesmo arquiteto e urbanista”.
No começo eu pensei que enfrentaria algo inédito, porque outros largaram a faculdade, como o Chico Buarque, para se dedicar à composição. Mas quis trabalhar intensamente com as duas paixões: Arquitetura e Urbanismo e a Música. Fiquei assim até hoje. Agora, é ruim quando o crédito não é identificado, aplicado e você perde o que seria justo com os direitos autorais. Tenho músicas com 80 gravações e às vezes essas canções eu descubro que estão em uma plataforma com o nome de outra pessoa. Estou fazendo um trabalho hercúleo de identificar 1.200 gravações, com repetições às vezes, para ver com minha editora como ela me ajuda para buscar os direitos que mereço.
O POVO: A época da faculdade foi marcada pelos estudos, mas também pelo contato com a vida boêmia e com reuniões em bares como do Anísio que tinham presença de nomes que também se tornaram artistas. O senhor acha que atualmente existem espaços em Fortaleza que sejam propensos a novos artistas surgirem?
Fausto: Eu acho que é diferente. Acho que deve ter. Eu saio pouco, estou muito desatualizado, não tenho mais a vida da noite, aquela coisa. Mas é diferente. A cidade era muito pequena, era muito calminha, hoje existem muitos lugares para shows e bares. Na minha época isso não existia. O público era a gente da mesa. Era uma espécie de ponto de encontro daqueles que tinham interesse naquilo (a música), mas não era de juntar gente para ouvir. Era um grupo de pessoas que, na prática, como eu falei, começava a questionar aquele padrão herdado de mulheres com a vida muito careta, homens machistões, as meninas não poderiam namorar até tarde… O bar era um apoio para essa liberdade e no meio tinha um violão.
O POVO: O senhor foi testemunha de diversas transformações pelas quais Fortaleza atravessou ao longo das últimas décadas, envolvendo discussões sobre falta de preservação da memória histórica com o descaso com edificações. O senhor acha que Fortaleza preserva sua história?
Fausto: Acho que não, assim como aconteceu com a maioria das cidades brasileiras, quando foram surpreendidas pelo desenvolvimento urbano que levou à mudança de escala, isso provocado por migrações, por uso de transporte motorizado, que aumentou o tamanho da cidade e de tudo. O processo típico é um processo dispersivo que cresce mais do que seria o razoável se todo mundo pudesse viver mais próximos dos outros e se grande parte do estoque de estruturas construídas fosse reaproveitada, mas não, normalmente há uma força maior de destruição do que de conservação.
É curioso observar a forma como Fausto Nilo encarava seu lado como compositor no início de sua carreira. Como afirmou à série Memória O POVO”, sua escolha de ser compositor popular “não foi totalmente autônoma”, pois veio a partir de convites de amigos “já consagrados”. O cearense era envolvido pelos colegas e, para ele, havia uma definição de que seria arquiteto, enquanto os outros já eram poetas.
“Eles que eram os poetas. Eu não me metia a fazer (composição). Por insistência do Fagner, depois que terminei minha faculdade, decidi que queria ser um compositor popular. Verifiquei todos aqueles músicos que eu ouvi sempre como um objetivo. Eles me inspiram e me dão caminho como experiência de que deram certo, mas estou vivendo em outra época e com outros desafios”, analisa.
Mais de 50 anos depois do início como letrista, Fausto acumula repertório que, sem dúvidas, o coloca como um dos principais compositores da música brasileira. Isso não só pela quantidade de letras (já que produziu mais de 500 composições) ou de parceiros (como Rodger Rogério, Petrúcio Maia, Calé Alencar, Geraldo Azevedo, Armandinho, Dominguinhos e Maria Bethânia), mas pela extensão de sua poética, que abarca a cidade e a sociedade.
O que começou com “Fim do Mundo”, em 1972, continuou reverberando em outras faixas, indo da bossa nova (“Lua Dourada”) ao rock (“Tudo Com Você”), da marchinha de Carnaval (“Bloco do Prazer”) ao sertanejo (como a interpretação de “Cartas” pela dupla Jorge & Mateus). As visões de Nilo também foram trilha sonora de novelas da TV Globo, como “Tieta" e “Roque Santeiro”.
Assim como são múltiplas as canções que acompanham a trajetória de Fausto Nilo, é de se esperar que múltiplos também sejam os temas das composições. Pertencente a uma “geração de herdeiros do espírito antropofágico da Semana de Arte Moderna de 1922”, o cearense leva em suas letras “imagens do sertão, do litoral, das noites e dias do Brasil e do Mundo”.
A análise é de Pedro Rogério, músico e pesquisador cearense. Ele cita faixas como “Zanzibar”, na qual Nilo funde “uma ilha do Oceano Índico, na costa leste do continente africano e a praia do nosso Paracuru” e “Laranja da China”, em que junta laranja da terra e uma certa “Coca-Cola da China” - bebida também citada em “Dorothy Lamour”. Por sinal, outra atriz americana citada é Theda Bara em “Paroara”.
“Poderíamos viajar em dezenas de canções de Fausto Nilo com suas riquezas imagéticas. Mas, esses exemplos bastam para afirmar a capacidade de transitar em vários cenários, ambientes, épocas e estilos musicais. Ele tem, talvez, como principal aspecto em suas composições uma transgressão a qualquer tipo de fronteira, seja de gênero musical, estilo, paisagens no melhor espírito antropofágico”, afirma Pedro.
Também professor de História da Música Cearense na UFC, o profissional indica que o Ceará é retratado na obra de Nilo de diferentes maneiras, como “descrevendo poeticamente praia e sertão em várias de suas letras, ambientes que caracterizam bem nosso Estado”. Isso se estende para os ambientes urbanos: “Nada escapou de suas lentes”.
Diante disso, como suas composições ajudam a compreender sua forma de enxergar a sociedade e a cidade? Pedro Rogério explica que Fausto Nilo é um “poeta romântico com fortes traços comunistas” ao priorizar o uso público e comum: “Ele tem um olhar poético para o bem estar social desejando que as pessoas se encontrem, sejam felizes e vivam desde suas paixões mais arrebatadoras até os amores mais duradouros e consistentes”.
A “cidade”, sem dúvidas, é “extremamente importante na obra de Fausto Nilo”, como ressalta Marcos Sampaio, editor-adjunto do Vida&Arte e crítico de música. Autor da biografia “Fausto Nilo”, das Edições Demócrito Rocha (EDR), ele também escreveu a monografia “Discursos em Canções: Uma Análise Semiótica das Relações entre o Homem, a Cidade e a Sociedade em Letras de Música de Fausto Nilo”.
Como narra, Nilo “sempre aborda algo que remete à cidade” em sua trajetória, seja a “fumaça”, a “correria” ou mesmo o “ambiente bucólico do interior”. Para o jornalista, ele também é um “pensador da sociedade”, tendo como uma de suas bagagens a vivência do período da ditadura militar brasileira e uma “vivência social muito forte”.
“Ele leva isso para a música dele de uma forma muito bonita, sem ser datada e sem apontar nomes. Quando ele fala de sociedade e cidade, ao mesmo tempo que se adapta a várias sociedades, você se reconhece dentro daquela música quando ele fala de ‘meninos de rua’, de ‘correria’ e de ‘fumaça’. É o local e o universal aparecendo ao mesmo tempo”, aponta.
O “local e o universal” podem ser aplicados também à sua representação enquanto um artista cearense - ou melhor, como um artista brasileiro. Em sua trajetória, Fausto Nilo se “abriu para todas as possibilidades” enquanto compositor, tendo parceiros na Bahia, no Acre, no Rio de Janeiro e em outras localidades brasileiras.
“Onde ele teve chance se colocou como um artista e fez uma obra atemporal. Nunca foi um compositor da moda ou que está na ‘crista da onda’, no sentido de só fazer música para aquele momento - o que é extremamente comum no mercado atual. Ele compôs obras universais e músicas que não vejo finitude. São canções que vão ser cantadas e interpretadas de novo por muitos anos”, enfatiza.
Ao mesmo tempo que representa o Ceará, Fausto Nilo “não se prende a isso somente”, sendo um compositor que vai do “popular ao mais sofisticado”. Compôs, afinal, com Lulu Santos (da geração do rock) e com João Donato (bossa nova), foi parceiro de Chico Buarque e teve canção interpretada por Elza Soares. “É uma obra feita a longo prazo. Sempre vai aparecer alguém descobrindo que determinada música é letra dele”, pontua Sampaio, que também dirigiu show em homenagem ao cearense.
Das tantas parcerias, uma das mais longevas é com Fagner - resultado de uma amizade iniciada nos anos 1970 e com faixas como “Astro Vagabundo” e “Letras Negras”. A dupla se conheceu no diretório da Faculdade de Arquitetura da UFC. No saudoso Bar do Anísio, reuniam-se nomes como Augusto Pontes, Rodger Rogério, Petrúcio Maia, Belchior e, claro, Fausto Nilo.
“A gente era ‘raia miúda’. A mesa deles era mais importante. Tinha uma raia menor formada por mim, pelo Ricardo, pelo Marcos Francisco (meu primeiro parceiro)... O Fausto sempre foi muito carinhoso comigo, como é até hoje. Talvez ele seja o cara que eu mais conversei na vida. A gente está sempre se falando em qualquer situação, até mesmo repetindo papos”, ri Fagner.
O lado letrista de Nilo começou quando morou em Brasília, e teve incentivo importante de Fagner. O cantor recorda também a primeira música em parceria com Fausto Nilo, intitulada “Fim do Mundo” e gravada por Marília Medalha. Ele considera Nilo seu parceiro mais constante, com cerca de 40 a 50 músicas.
Há o interesse de um trabalho para homenagear 10 canções dessa parceria, convidando intérpretes de outros gêneros. Para Fagner, entre tantas músicas uma das mais marcantes é “Retrovisor”, devido ao “retorno” que recebe do público sobre a faixa como trilha sonora de vitórias pessoais. Atualmente, ele desenvolve um disco de Bossa Nova e Nilo é responsável pela capa do projeto, além da música principal ser em parceria com o amigo.
“Digo que é meu grande irmão da música e da vida. O Fausto representa tudo isso e representa o Ceará”, afirma. Ele também destaca: “É um cara da maior importância não só como arquiteto, mas como compositor. Só posso agradecer e desejar muitas felicidades, que tenha muita saúde. Ele está convivendo muito bem com seus 80 anos. Não perde a molecagem nem o talento”.
Em 2024, Fausto Nilo foi o principal homenageado do Ciclo Carnavalesco de Fortaleza. A lembrança, afinal, não é à toa: o cearense foi responsável por grandes hits que passaram a embalar carnavais Brasil afora, como as canções “Chão de Praça”, “Bloco do Prazer” e “Coisa Acesa”. Com isso, influencia outras gerações de músicos.
É possível perceber a inspiração em bandas como Os Transacionais (que mantém o bloco “Chão da Praça) e blocos como o Luxo da Aldeia, que desde seu primeiro ano tem repertório formado por músicas de Fausto Nilo, entre outros artistas. O grupo, que destaca canções de compositores cearenses, homenageou Nilo em 2024.
Mateus Perdigão, integrante do Luxo da Aldeia, destaca a importância do artista na história do bloco - ele, aliás, até gravou a faixa “Lua de Papel” com o grupo. “Todo ano trazemos algum tema para o Carnaval, e em 2024 foi interessante fazermos essa homenagem ao Fausto Nilo por toda a representatividade dele na música brasileira. A obra dele alcança o país todo através de outros parceiros”, enfatiza.
O legado de Fausto Nilo no Carnaval contagia também a cantora cearense Lídia Maria, vocalista do Bloco do Prazer. Ela conheceu o trabalho do compositor na adolescência e em 2010 chegou a fazer um bloco em homenagem a Nilo intitulado “Dorothy Lamour”. A partir de suas músicas, se apaixonou cada vez mais pelo repertório carnavalesco.
Hoje à frente do Bloco do Prazer, também em homenagem ao cearense, ela compartilha a felicidade cantar Fausto Nilo e reforça a relevância de transmitir sua obra: “É muito importante que as outras gerações conheçam, no sentido de fortalecer a nossa identidade, de sabermos que temos um compositor muito respeitado e querido, para que possamos, assim como o restante do Brasil, respeitar também este compositor”.
Fausto Nilo é reconhecido por trabalhos de peso não apenas na música, mas em outras áreas que se tornariam algumas de suas principais marcas: a Arquitetura e o Urbanismo. Seus traços foram deixados em espaços que são verdadeiras obras de arte, a exemplo do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC), a atual Praça do Ferreira, o Mercado São Sebastião, a “nova” Beira Mar e a Ponte dos Ingleses, atualmente em reforma.
Sua visão inovadora e estética apurada trouxeram contribuições significativas para o campo da arquitetura nacional. Segundo Marcos Sampaio, Fausto é hoje um dos maiores pensadores do Ceará e da cidade de Fortaleza. “Ele pensa a ‘urbe’, os movimentos da cidade de uma maneira muito filosófica, muito carinhosa, muito profunda. É um cara de um pensamento político muito vanguardista”, destaca.
Paulo Linhares, antropólogo, ex-secretário de cultura do estado, idealizador do Dragão do Mar e colunista do O POVO, destaca o sucesso dos empreendimentos de Fausto. A visão de uso dos equipamentos é bastante semelhante ao das canções feitas por ele. “Parece que o Fausto pensa em que lugar da cidade aquela letra será cantada e dançada”, aponta.
Fausto Nilo foi responsável por projetos de grandes cartões postais de Fortaleza, como Dragão do Mar e o São Sebastião Crédito: Fernando Sá, em 04/07/1991
Fausto Nilo posa no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, uma de suas criações Crédito: Luiz Alves/Divulgação
Linhares apresenta Fausto como uma das mentes de maior riqueza cultural do Estado e, mesmo, do país. Ele faz uma comparação de Fausto com Niemeyer afirmando que, se neste a preocupação é visual e mais estética, naquele o uso humano e o sucesso do ponto de vista de público são objetivos centrais.
Parceiro arquitetônico de toda vida, Delberg Ponce de Leon, cujo aniversário de oitenta anos também se aproxima, corrobora o destaque para a sabedoria do quixeramobinense: “Falo com sinceridade, conheço poucas pessoas no Brasil que tenham o conhecimento de Urbanismo que Fausto tem”.
“Os maiores desafios para os arquitetos, em geral, são o trabalho dirigido ao grande público. As demandas da população são mais complexas e se a obra tem plena aceitação é uma grande glória dos projetistas. Nas últimas seis décadas conseguimos, em cada uma delas, deixar um testemunho do nosso trabalho”, afirma Delberg.
Além das obras já de grande reconhecimento do público, como a atual Praça do Ferreira e o Mercado São Sebastião, a dupla foi responsável por projetos de empreendimentos como o Edifício Panorama Artesanal, na Avenida Leste-Oeste, e o Edifício Solar, na Avenida Beira Mar.
Delberg e Fausto se conheceram ainda como estudantes da Educação Básica no Liceu do Ceará, seguiram para os primeiros estágios, empregos e para a Universidade. A trajetória de parceria dos dois é viva e destacada pela capacidade de escuta não sem discordâncias naturais, mas sempre com respeito, escuta e parceria.
É Delberg que, entre causos e reflexões sobre a importância da Arquitetura na História da Humanidade, conta e mostra fotos do processo de reforma da Ponte dos Ingleses, além de alertar para tantas ações e projetos já lançados pela dupla como o Projeto Fortaleza 2040.
Entregue em dezembro de 2016, a iniciativa consiste em um plano de desenvolvimento para a capital cearense com “estratégias a serem implementadas no curto, médio e longo prazo”, com o ano de 2040 como horizonte. Foram contemplados um Plano Mestre Urbanístico, Plano de Mobilidade e Plano de Desenvolvimento Econômico e Social para transformar Fortaleza “em uma cidade mais acessível, justa e acolhedora”.
Fausto Nilo foi o coordenador geral da equipe de Urbanismo e Mobilidade. Segundo o arquiteto, para Fortaleza tentar minimamente chegar ao que foi estipulado para 2040 é necessário, em primeiro lugar, “preparar a Cidade para ser um tecido urbano formado por comunidades de extensão caminhável”, reduzindo a dependência do transporte motorizado. Além disso, alerta para a importância de conter “a dispersão excessiva”.
A formulação de um pensamento e de uma prática para uma cidade como a capital cearense é um desafio de tamanhas entradas e saídas quanto um centro cultural. Se, de acordo com Paulo Linhares, as questões são ainda maiores e “só não destruíram o Dragão a picaretas porque não conseguiram”, para a Secretaria de Cultura na pessoa de Luiza Cela é preciso que a reflexão sobre os espaços e a manutenção de nossos equipamentos seja uma constante. “Nesse aspecto, Fausto Nilo é um professor, o que, de certa forma, traz um alívio porque, com ele, sabemos que existe solução para tudo”, diz, consciente de que faltam, no entanto, mais ações conjuntas do poder público. (Lúcio Flávio Gondim. Colaborou Miguel Araújo)
Na esteira da celebração dos 80 anos de Fausto Nilo, o pesquisador, professor e colunista do O POVO, Lúcio Flávio Gondim, desenvolveu um projeto especial. Reunindo gestores de cultura, artistas e familiares do cearense, a série documental “Fausto - Folia das Formas” integra a iniciativa “Faustoitenta”.
O primeiro capítulo será exibido no Cinema do Dragão no próximo dia 5 de abril, data em que Fausto Nilo chega aos 80 anos. A produção leva ao público uma perspectiva mais ampla sobre a obra do artista e tem como um de seus objetivos discutir “como a figura de Fausto Nilo permeia a teia social de maneira tão ampla”.
A produção seguirá trajeto de circulação por diferentes locais do Estado. A primeira parada será no Cinema do Dragão, no dia 5 de abril, às 19 horas, com retirada de ingressos uma hora antes da sessão. O formato se repetirá em 10 de abril, quando o primeiro episódio será exibido no Cineteatro São Luiz. Em ambas as sessões haverá debate com o idealizador da série e com alguns entrevistados.
Como relata Lúcio Flávio Gondim, o documentário traça um “percurso histórico” de Fausto Nilo, apresentando como o “menino de Quixeramobim” chega a uma Fortaleza “que está começando a se tornar uma grande metrópole”. Além disso, retrata momentos como a instalação da Universidade Federal do Ceará (UFC), o retorno de Fausto Nilo ao Ceará após 14 anos no Rio de Janeiro (RJ), grandes construções assinadas por ele e Delberg Ponce de Leon (como o Centro Dragão do Mar) e sua “luta de pensar a cidade para além dos formatos mais rígidos e comerciais”.
Foram entrevistados na série documental nomes como Rodger Rogério, Ednardo, Paulo Linhares (sociólogo, colunista do O POVO e ex-secretário da Cultura do Ceará), Marcos Sampaio (crítico de música e jornalista do O POVO), Luisa Cela (atual secretária da Cultura do Estado) e Delberg Ponce de Leon.
“A grande questão desse projeto não é uma homenagem somente à ‘pessoa’ Fausto Nilo. É uma reflexão sobre memória, arte e cidade”, afirma Lúcio Flávio Gondim. Ele acrescenta: “É um projeto não só sobre o passado, mas sobre nossas questões atuais, sobre o entorno do Dragão do Mar, sobre o Pré-Carnaval e o Carnaval de Fortaleza, como essas festas e a músicas nos colocam diante da cidade… Foi um processo vivido por essa curiosidade”.
As oito décadas de vida de Fausto Nilo representam uma enorme bagagem artística, que precisa ser devidamente registrada e preservada, assim como Fausto busca em sua atuação como agente cultural, haja vista a transformação da casa onde viveu no atual centro cultural da cidade de Quixeramobim, a Casa de Antônio Conselheiro, gerida pelo Instituto Dragão do Mar. Celebrar sua contribuição magnânima é, portanto, um ato de justiça e reconhecimento a um dos maiores artistas que o Brasil já produziu, homenageando-o ainda em vida.
Uma das pautas centrais da Secretaria de Cultura do Estado, a descentralização dos saberes, passa por Fausto, que acionou o então secretário Fabiano Piúba e esteve à frente da transformação e abertura da Casa em Centro Cultural. Hoje novos desejos para a cidade que é centro geográfico do estado levam a assinatura do arquiteto e urbanista como o Memorial Antônio Conselheiro.
Para o quixeramobinense e psicanalista Oswaldo Costa Martins, a cidade vem ao longo dos últimos anos reconhecendo seus personagens e valorizando seus nomes, ao que passo que Fausto segue carregando sua cidade tatuada em versos: “Fausto diz algo recentemente que, a meu ver, é fruto de seu refinamento poético: sertão é esperar que vai chover”. Na brisa molhada dessa Poesia, o poeta quixeramobinense e amigo de Fausto, Bruno Paulino, compartilha uma prosa lírica sobre o aniversariante.
“Fausto Nilo. Verso e Traço. Melodia e Forma. Antes de tudo, palavra. Imaginação. Um lírico trovador. É também um grande contador de histórias. Ouvi-lo narrar sobre o Quixeramobim da sua infância é como ler ‘Cem Anos de Solidão’, do Gabriel García Márquez. Por vezes é se perder no labirinto de outra história e encontrar-se debaixo do sol com um drama de Shakespeare no sertão. Ser ou não ser, eis a questão.
Fausto Nilo é, antes de tudo, poeta. Gosta de gastar conversa. É manso. Narra com rodeios, gestos e riqueza nos detalhes. A memória é sua força criativa. A memória é uma casa tudo azul. O pai, Luís Costa, após a sesta retirava da pequena biblioteca domiciliar um exemplar puído de “Os Sertões” e recitava trechos em voz alta da vibrante prosa barroca de Euclides da Cunha: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral. A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempenho, a estrutura corretíssima das organizações atléticas”.
Um beato revolucionário nasceu naquela casa, personagem central de um grande livro, fez uma revolução no fim do mundo. O curioso menino Fausto Nilo descobriu Antônio Conselheiro enquanto sonhava com outras paisagens. Cidades Azuis. O trem trazia Dorothy Lamour, o cinema, as revistas “O Cruzeiro”. Através da radiadora “Voz de Cristal” chegava ao Rio de Janeiro, os cantores da era de ouro do rádio, no terreiro jogar bola e ouvir Orlando Silva. O desejo era ir embora. Desenhar caminhão deitado no pátio da Matriz.
A mãe, dona Hilda, preparava doces, suspiros, vendia na padaria, acolhia os doidinhos da cidade. Dela, talvez a veia poética, afinal, o doce não esquece a tamarindo. Os irmãos brincavam de fazer paródia. Até as pedras cantavam. E o passarinho ainda hoje voa livre. O poeta nunca matou passarinho. Esse é o segredo, o rio foi quem me contou. De Quixeramobim, Fausto Nilo, cidadão do mundo”.