Logo O POVO+
Adeus ao menino criador
Reportagem Especial

Adeus ao menino criador

Pai do "Menino Maluquinho", Ziraldo parte aos 91 anos e deixa impacto na história das produções para o público infantil

Adeus ao menino criador

Pai do "Menino Maluquinho", Ziraldo parte aos 91 anos e deixa impacto na história das produções para o público infantil
Tipo Notícia Por

 

 

Presente nas memórias de infância de diferentes gerações de brasileiros, Ziraldo cumpriu, ao longo de 91 anos de vida, a missão de alimentar sonhos e defender o papel da leitura. Cartunista, escritor, chargista, caricaturista e jornalista, o múltiplo criador partiu neste sábado, 6, e deixou o País menos colorido.

Reconhecido como um dos principais nomes da literatura nacional, o artista mineiro faleceu em sua casa, no bairro Lagoa, na cidade do Rio de Janeiro. Em 2018, o artista sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) e, desde então, estava com a saúde debilitada. A causa da morte, no entanto, não foi informada.

Com mais de 70 dedicados à arte, Ziraldo Alves Pinto iniciou sua trajetória na arte ainda criança, com apenas seis anos, ao ter seu primeiro desenho publicado no jornal “A Folha de Minas”, em 1939.

Grande contribuidor na iniciação da leitura de crianças por todo o Brasil – posição que carrega ao lado de Maurício de Sousa, o “pai” da Mônica –, Ziraldo é, e será, principal referência a inúmeros ilustradores e quadrinistas que viram em sua arte uma nova forma de retratar o mundo.

“Eu diria que há dois nomes no Brasil que me influenciaram muito na minha trajetória no desenho, que é o Ziraldo e o Flavio Colin (1930-2002), acho que esse dois brasileiros foram quem melhor representaram, e representam, a nossa cultura dentro dessa área do cartum e dos quadrinhos, que é área que mais gosto e mais consumo”, declara o ilustrador Daniel Brandão, quadrinista do O POVO.

Criador da Turma da Mônica, Maurício de Sousa lamenta a morte do amigo Ziraldo(Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal Criador da Turma da Mônica, Maurício de Sousa lamenta a morte do amigo Ziraldo

Autor das tirinhas “Os mundos de Liz”, “Desenho Vivo" e “Primeiras Paixões” publicadas no Vida&Arte, o desenhista cearense afirma, ainda abalado com a notícia da morte do autor, que Ziraldo era um “gênio” em todas as áreas que se permitia aventurar.

“O Ziraldo é, sem sombra de dúvidas, dentro dessa área das artes gráficas, o maior gênio que temos. Eu estou muito emocionado e triste, isso está mexendo comigo e está sendo muito forte mesmo. Eu passei minha vida inteira admirando a arte dele, o trabalho dele… Ele foi o primeiro autor brasileiro a fazer sozinho uma revista em quadrinhos, a “Turma do Pererê”, que tinha tiragem regular, utilizando da nossa fauna, flora e o nosso folclore. Eram personagens tão brasileiros e isso por si só marcará a história dele”, detalha.

Entre as criações marcantes na história da literatura nacional, em 1960 Ziraldo fundou o jornal “O Pasquim”, principal publicação de resistência à ditadura militar no Brasil. Em 1969, lançou seu primeiro livro infantil, “Flicts”. A publicação fala sobre uma cor diferente e que não era “como as outras”, mas que no final teve sua importância reconhecida.

O Pasquim - Antologia Vol 1 (1969/1971)(Foto: Wikicommons)
Foto: Wikicommons O Pasquim - Antologia Vol 1 (1969/1971)

Com a afirmação “A lua é flicts”, dado pelo astronauta Neil Armstrong ao ganhar uma cópia do livro após sua visita à lua, “Flicts” ultrapassou a marca de 500 mil exemplares em 2019. Em 1980, trouxe à vida o Menino Maluquinho, personagem do quadrinho homônimo que conquistou o País.

Marco na literatura infanto-juvenil brasileira, “O Menino Maluquinho” se tornou um fenômeno editorial que inspirou, fascinou e acompanhou inúmeras crianças por gerações. “Ziraldo foi uma grande influência, principalmente na minha infância, por seu estilo de desenho único. As suas histórias sobre o cotidiano do Menino Maluquinho e sobre a cultura do folclore brasileiro com a turma do Pererê me motivaram ainda criança”, relembra a ilustradora Rebeca Jéssica.

 

 

Também quadrinista do O POVO, com as tirinhas “Zootirinhas” publicadas no Vida&Arte, Rebeca acrescenta que a linguagem produzida por Ziraldo favoreceu para a iniciação de crianças e jovens no universo da leitura. “Ele contribuiu muito na literatura brasileira, principalmente a sua forma de linguagem acessível que trouxe para nós a facilidade de iniciar no mundo da literatura e da arte”.

Com mais de 110 milhões de livros publicados desde seu lançamento, a obra já ganhou adaptações para o teatro, videogame, histórias em quadrinhos e cinema. Importante legado que seguirá inspirados muitas e muitas infâncias. (Com agências) 

 

 

 Ziraldo: Adeus ao primeiro amigo

por André Bloc*

Deito na cama e um objeto pontiagudo arranha minhas costas. Um livro da familiar lavra de Ana Maria Machado. De novo, só o nome do meu sobrinho mais velho plastificado num canto de página. Guardei, feliz de compartilhar uma companhia de infância com o jovem decano da nova geração familiar.

No sábado, ao saber da morte de Ziraldo, me veio um pensamento que não me surgia há 30 anos. "Perdi meu primeiro amigo", rememorei sem saber por quê. E ali apaguei, entre personagens sobre os quais não pensava há décadas.

Capa de "O Menino Marrom"(Foto: Ziraldo)
Foto: Ziraldo Capa de "O Menino Marrom"

O primeiro livro que li era de Ziraldo. Se não tiver sido, passou a ser agora. Mas eu lembro. E se eu lembro vira verdade, à revelia de fatos.

Lembrei do "Menino Marrom", que era como meu pai me chamava — e eu odiava, naquele medo escondido que todo caçula nutre de ser adotado. Do Joelho Juvenal, de Jeremias o Bom, do Bichinho da Maçã.

Lembrei do Menino Maluquinho imitando o Saci e até de duelar com meu irmão do meio em um jogo de tabuleiro desse mesmo garoto sem juízo — sempre de óculos, eu era o Junim. Lembrei de Flicts e me dei conta que até hoje me sinto de uma cor diferente das outras. Vai ver é efeito colateral do daltonismo.

Com calma, pensei nos outros Ziraldos. Naquele subversivo que ilustrava pornochanchadas num traço capaz de driblar a censura. Ou no cáustico chargista do Pasquim, impresso em livros que dividi com meus pais quando adolesci. Descobri tantos quadrinhos que nem sei se já tinha descoberto 20 anos atrás. É bom descobrir coisa boa várias vezes.

Soube que meu velho amigo morreu em paz, enquanto dormia, tal qual o Vô Passarim em "Menino Maluquinho", que vi na escola e tive vergonha de me emocionar. 

Daí bateu uma vergonha de medir uma carreira quase centenária pela régua das minhas memórias. De resumir um artista tão ativo, tão político, às reminiscências de minha meninice.

0704 - Ziraldo(Foto: Clayton)
Foto: Clayton 0704 - Ziraldo

Mas o Ziraldo estava ali quando eu não conseguia ter mais ninguém comigo. Era eu, o Menino Marrom, com ele, o Menino da Panela na Cabeça, que protagonizava o primeiro "livro com mais de 100 páginas" que eu me orgulhava de ter lido. Eu não pensava neles há décadas. Mas eles sempre estiveram aqui.

Meu sobrinho é agregador, destemido como nunca fui. Mas é bom saber que as Anas Marias Machados, as Ruths Rochas, os Ziraldos, ainda estão ali para fazer companhia.

*André Bloc é editor-chefe de Cidades do O POVO

 

 

Ziraldo e a "única solução para o Brasil"

por Domitila Andrade*

Ziraldo queria ser ministro da Educação. Veja só: 14 anos atrás, me sentei ao lado do homem de voz chiada, como um radinho, e gestos amplos, como quem desenha no ar, e ele cheio de risos e de uma generosidade que lhe era muito vistosa, afirmou que era essa a "única solução para o Brasil". Eu acreditei.

E como não acreditar? Em "Flicts", a primeira obra infantil do contador de histórias, Ziraldo nos fala de uma cor que buscava se encaixar no arco-íris. A Educação de Ziraldo seria, pois, inclusiva. Na Turma do Pererê, a primeira revista de história em quadrinhos de um único autor publicada no País, Ziraldo se imbui de uma brasilidade para contar causos. A Educação do mineiro de Caratinga seria baseada nas experiências e no cotidiano real de um Brasil plural. Um dos idealizadores d'O Pasquim, Ziraldo foi preso três vezes durante a Ditadura Militar. A Educação do desenhista só poderia ser revolucionária.

 

Depoimentos em memória a Ziraldo

 

Em Menino Maluquinho, é o garoto com "olho maior que a barriga, fogo no rabo e vento nos pés" que nos cativa. E na esteira de seu maior sucesso, a Professora Maluquinha, uma educadora não convencional nos fazia embarcar na aventura do aprendizado. A Educação do homem de sobrancelhas brancas e muito expressivas só poderia ser inventiva, sagaz e divertida.

Ziraldo Alves Pinto partiu ontem, 6, sem ter ocupado o cargo que desejava. Mas, como pai de um menino de panela na cabeça e figura afetiva para um sem-fim de gente que o leu, Ziraldo inspira e seguirá educando.

*Domitila Andrade é jornalista e quadrinista do O POVO

O que você achou desse conteúdo?