“Meu torrão amado, munto te prezo, te quero e vejo qui os teus mistéro. Ninguém sabe decifrá”. O poema ‘Eu e o Sertão’ de Patativa do Assaré declama a relação entre o homem e sua terra. O fragmento revela a principal função de uma língua, servir como meio de comunicação e expressão entre os indivíduos e sua comunidade. No entanto, o preconceito linguístico faz com que as variedades “desviantes do padrão”, seja regional, de gênero ou periférica, não sejam reconhecidas como válidas. A prática é denominada preconceito linguístico afeta, principalmente, os que não falam a norma padrão, não falam português.
Marcos Bagno, professor, doutor em filologia, linguista e escritor brasileiro, em seu livro "Preconceito lingüístico: o que é, como se faz", escreve que a discriminação é resultado da comparação indevida entre o modelo idealizado de língua, enquanto norma culta, e os modos de fala reais das pessoas que vivem na sociedade. Para ele, no Brasil, milhões de pessoas não tem acesso à norma literária e culta, mas são falantes do português.
A doutoranda em Linguística Aplicada pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada (PosLA) da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Eleonora de Morais, explica que a língua é aquilo que a gente usa na nossa vida diária. Já a gramática, em uma das perspectivas, “é fundada na norma-padrão a partir de grupos hegemônicos historicamente formado por homens brancos”, explica.
Por outro lado, “ela (gramática) também pode ser entendida como o sistema que me permite entender que uma frase é uma frase ou o que é uma pergunta, por exemplo”, completa. Ela compara que alguns grupos se firmam apenas nas normas-padrões e esquecem que a gramática e a língua têm função de servir como meio de comunicação e de expressão entre os indivíduos de uma comunidade. “Quando há essa diferenciação, entre suposto correto e errado, surge o preconceito linguístico”, conta.
A professora constata que “esse preconceito vem da consciência, sendo uma consciência errada, de que existe uma regularidade na língua. Parte da ideia de que na ciência tudo precisa ser regular. Se não for regular, não é ciência, é inválido”.
Para os preconceituosos, a língua é explorada como uma maneira de aumentar a distância entre dois sujeitos, já separados por classe, raça e gênero, contribuindo para uma longa história de exclusão e estigmatização das comunidades. Para a professora, o preconceito linguístico é social.
Que o Brasil tem tamanho continental todo mundo sabe, embora seja falado o mesmo idioma, cada região possui suas peculiaridades que envolvem aspectos regionais, históricos, sociais e culturais. Variação linguística é o nome dado para essas diferentes formas que uma língua se apresenta.
O preconceito linguístico surge quando um grupo acredita que sua variação é melhor ou superior a outra, neste caso a regional. Com tom de deboche, a língua do falante é apontada de maneira pejorativa e estigmatizada.
Dialetos e gírias se desenvolvem nas mais diversas comunidades, devido a essas variações. “A norma-padrão diz que não pode que, não existe. Mas claro que existe, se as pessoas falam é porque existe. O preconceito, na verdade, é social”, comenta a professora Eleonora de Morais. Essas gradações marcam profundas características de pessoas pobres, pretas ou de outros grupos minorizados, as quais são alvos de preconceitos anteriores ao linguístico, narra a estudiosa.
A estudiosa afirma que quando se debocha do sotaque de um nordestino, por exemplo, muita das vezes, há um preconceito primário a pessoa nordestina. A língua representa a cultura de uma sociedade e as práticas e atitudes que lhe dão consistência. Para a professora, “superar o preconceito linguístico depende de um processo de uma desconstrução. Envolve não só o entendimento, mas algo que está além dele, é social e que acontece em diversos âmbitos”.
Há não muito tempo, em um palanque, o orador saudava apenas os senhores, depois passou a convocar as senhoras também, hoje, alguns desses locutores abrem seus discursos se dirigindo para todos, todas e todes. Quem conta a história é a professora Cida de Sousa, professora que ministra aulas de Comunicação e Gênero na Universidade Federal do Ceará (UFC), para ela, preconceito linguístico é ideológico.
O exemplo acima se volta para a linguagem neutra, um novo tipo de variação, que, como classifica a professora, “é uma forma que se aplica a um gênero neutro. Para representar e incluir pessoas não-binárias, intersexo…”. A comunicadora comenta que a língua é responsável por transformar a gramática, “o nosso jeito de falar atualiza a língua e precisamos sempre estar atentos. A linguagem neutra é uma dessas atualizações”.
Para Cida, “esse preconceito linguístico revela um desrespeito e caminha de mãos dadas com outros preconceitos, que, por trás deles, há uma questão de poder”. Ela revela que sempre haverá um elo mais fraco que estará sujeito a outro. Termos, sotaques e gírias só são descriminados quando falados e vividos pelas classes marginalizadas.
“A língua e a fala caminham com a história. À medida que a gente vive, sofrem-se mudanças, que se revelam em todas as vertentes da vida societária e a língua muda”, explica a professora. Para ela, manter a gramática e o “português correto” é deixar de perceber as mudanças sociais, as quais são necessárias para a formação e transformação do ser humano.
Cida de Sousa comenta que quando se começa a utilizar termos como elu, delu, todes, “traz a tona uma parcela da sociedade que começa a se dar conta de que era excluída da sociedade pela língua, ou seja, uma população que não era representada pela palavra”.
Essa linguagem se refere, principalmente, à população LGBTQIAP+, que além do acréscimo dos pronomes, já havia adicionado quase que completo um dialeto na vida diária - o Pajubá. O dialeto tem origem nas palavras do nagô e do iorubá, que vem de línguas de matrizes afro-brasileiras.
Durante o Regime Militar, Travestis utilizavam variações do nagô para se protegerem das batidas policiais da “
“No início da formação da linguística, ela não era tida como social, mas individual. Como se tivéssemos um dicionário ou uma gramática na cabeça. É aquela ideia de que a língua tem uma existência própria independente das pessoas”, afirma a professora Claudiana Alencar, doutora em Linguística pela Unicamp. No entanto, completa a estudiosa, começou-se a percebe que a linguagem e a língua fazem parte da vida, é uma forma de vida, sendo moldável. A linguagem da periferia é a variação na qual a professora se refere.
A docente da Universidade Estadual do Ceará (Uece) comenta que mesmo com as mais diversas variações linguísticas, sempre haverá suas regras próprias. “Porque se a gente fala de ‘norma culta’, supõe-se que exista uma ‘inculta’. O que há, na verdade, são modos diferentes de se falar”, explica. Essas regras são do próprio sistema, ao serem criadas a partir do próprio modo de falar, então a língua tem muita relação com a vida.
A professora fala sobre periferias, no plural, como universos que contemplam suas divergências e constituem seus próprios símbolos de linguagem. “Entendendo o território como uma territorialidade afetuosa”, destaca. Nessas ocupações, os moradores conseguem expressar suas arte revestida de afetuosidade e de subversão dos preconceitos, utilizando-se apenas a língua.
“O preconceito linguístico é um preconceito social. As periferias são, desde muito tempo, ocupadas por pessoas das classes trabalhadoras”, conta.
Um grupo marginalizado se comunica utilizando o termo ‘É nóis’, que, para a norma culta, está errado. Com o tempo, pelos raps, funks e hip-hops, termos como esses foram mesclados a língua cotidiana em sua maioria. “É o sistema capitalista, dos detentores dos meios de produção, que vão se apropriado dessas pautas identitárias para transformar as identidades em produtos de vitrine”, destaca.
Escute a música ‘Rap é Compromisso’ do artista Sabotage e tente perceber as variações da língua
A professora afirma que essas expressões que surgem pelas diversas formas de falar é de grande riqueza. “Cantar da sua própria existência, não é só falar brasileiro, não é só falar do português, é próprio das pessoas”, comenta Claudiana.
A língua se molda a ponto de retirar estigmas antes emplacados. “A juventude periférica não tem muito acesso à educação formal, portanto, o falar delas é um falar ”menos culto”. A palavra ‘pivete’, por exemplo, foi usada por algum tempo para designar jovens em situação de conflito com a lei. No entanto, pela moldagem da fala, esse termo pejorativo ganha outra roupagem e se torna ‘vet’ ou ‘vetin’, uma irmandade daqueles que lutam e resistem, lembra a professora. A língua não é apenas uma disciplina que nos é ensinada na escola. É história, ancestral, se molda e pulsa, assim como a vida.