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Excesso de zolpidem e os riscos da medicalização do sono
Reportagem Especial

Excesso de zolpidem e os riscos da medicalização do sono

O Ministério da Saúde já considera o uso de remédios para dormir um problema de saúde pública, e medicalizar o sono pode trazer problemas como alucinação e dependência

Excesso de zolpidem e os riscos da medicalização do sono

O Ministério da Saúde já considera o uso de remédios para dormir um problema de saúde pública, e medicalizar o sono pode trazer problemas como alucinação e dependência
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Para superar o problema da insônia, a utilização de fármacos que induzem esse processo do sono se tornou comum entre as populações. Porém, o Ministério da Saúde já considera o uso de remédios para dormir um problema de saúde pública. Medicalizar essa atividade fisiológica gera severos problemas à saúde, que vão de alucinação, dependência e, além de tudo, a própria insônia.

Laura (nome fictício) começou a usar zolpidem com o acompanhamento psiquiátrico. Na bula, o zolpidem é classificado como um hipnótico que induz o sono. “Eu precisava estar na faculdade para além de qualquer motivo que fosse. O entardecer me desesperava e me deixava ansiosa. Eu não conseguia dormir, sentia uma angústia e comecei a tomar”, explica.

Zolpidem é um fármaco hipnótico, do grupo das imidazopiridinas de rápida ação e de curta meia-vida.(Foto: Adobe Stock)
Foto: Adobe Stock Zolpidem é um fármaco hipnótico, do grupo das imidazopiridinas de rápida ação e de curta meia-vida.

Ela lembra que o seu médico a orientou não utilizar o celular após a ingestão do fármaco. “Realmente eu dormia um sono profundo, acordava e ia fazer as coisas”, narra. Laura comenta que conforme tomava, o medicamento perdeu gradativamente a eficiência. “Segundo meu psiquiatra, a função do zolpidem é ser de curto prazo, mas continuei usando”, lembra.

De acordo com estudos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), 72% dos brasileiros sofrem de doenças relacionadas ao sono, entre elas, a insônia.(Foto: Adobe Stock)
Foto: Adobe Stock De acordo com estudos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), 72% dos brasileiros sofrem de doenças relacionadas ao sono, entre elas, a insônia.

O psiquiatra de Laura, que faz tratamento para depressão, continuou prescrevendo o zolpidem. Em determinado momento do tratamento, a jovem conta que passou a tomar duas doses do fármaco e ainda assim não sentia os benefícios no corpo.

Nesses momentos, a estudante escolhia passar uma semana sem utilizar, a fim de trazer os benefícios da droga quando voltasse o uso, mas, todos os sintomas de insônia retornavam ao corpo no momento da não ingestão do remédio.

“Teve um episódio de grande angústia, que eu estava tomando o zolpidem sem fazer o efeito que deveria, mas continuava tomando… Então, eu decidi sair para comprar cigarro e fui dirigir meu carro. É arriscado, você fica muito desligado”, indaga.

Por último, a estudante comenta que comprou um aplicativo de meditação para dormir no valor de 300 reais no cartão de um colega, sem lembrar depois do que havia acontecido. Além das mensagens, vídeos e áudios mandados para colegas e parceiros sexuais, dos quais ela não se lembra de ter enviado.

 


 

 

O sono é uma entrega ao desconhecido

 

“A questão do sono é muito complexa. Muitas vezes a dificuldade de dormir é que quando a gente dorme perdemos o controle de tudo”, afirma a professora de Psicologia da Universidade Federal do Ceará, Alesandra Xavier. Ela comenta que se precisa estar relaxado, seguro, confiante, em um ambiente tranquilo, “porque o sono é uma entrega, uma entrega ao desconhecido”.

Alesandra fala que no momento em que se está acordado, se está minimamente consciente das suas capacidades cognitivas. “Quando dorme, a gente praticamente se entrega ao nosso inconsciente”, fala. Quadros de ansiedade, depressão, situações de ameaça de violência são alguns dos pensamentos comentados pela professora que fazem as pessoas se sentirem ameaçadas sobre a integridade física.

“Então, o sujeito não consegue desacelerar os pensamentos, não consegue relaxar, confiar no ambiente, nem nele mesmo”, comenta a psicanalista. Além disso, a professora comenta sobre os hiperestímulos que aumentam a ansiedade do dia que está para começar, as atividades que devem ser feitas.

Estar em uma sociedade que exige que se tenha controle, planejamento e alerta sobre tudo, descansar, relaxar e poder se entregar a esse mundo onírico foge do nosso controle. “Esse espaço que muitas vezes traz desejos inconscientes e questiona aquilo que a gente faz quando se está consciente”, explica a professora. Dormir é entregar-se a si mesmo, sem saber o que o amanhã trará.

 

 

Entendendo o Medicamento

Segundo a agência reguladora dos Estados Unidos, Food and Drug Administration (FDA), o zolpidem está disponível no mercado há mais de 30 anos. No país, o fármaco foi aprovado em 1992. No entanto, no Brasil, o medicamento já havia chegado em meados dos anos 1990, além de caro, suas propriedades eram desconhecidas ao público. Em 2007, quando a patente do fármaco expira, diversos laboratórios começaram a fabricá-lo como genérico.

“O período de patente protegido pode variar entre 10 e 20 anos. Só “aquela” indústria pode produzir zolpidem, no caso, quando vencida patente, outras Indústrias podem produzir o fármaco”, explica Mirian Monteiro doutora em Farmacologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

 

A professora possui graduação em Farmácia, mestrado em Química Inorgânica me doutorado em Farmacologia pela Universidade Federal do Ceará (2000).(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal A professora possui graduação em Farmácia, mestrado em Química Inorgânica me doutorado em Farmacologia pela Universidade Federal do Ceará (2000).

A professora explica que quando um medicamento passa a ser produzido por outras indústrias, há o estímulo da concorrência e a queda do preço por conta das leis de mercado. “E aí você vai ter um aumento das vendas e o que as indústrias esperam é um aumento do consumo”, narra.

A professora da UFC explica que o zolpiden trata de um não-benzodiazepínico do grupo das imidazopiridinas, um hipnótico que possui alta afinidade a receptores de determinados neurotransmissores. Drogas que agem assim estão classificados como Drogas Z, que englobam zolpidem, a zaleplona, e o zopiclone. Esses medicamentos atuam no Sistema Nervoso Central e possuem propriedades sedativas, relaxantes e ansiolíticas.

“Eles se ligam aos chamados receptores que são estruturas que estão nas nossas células neurais. E eles se ligam a um local específico chamado receptor benzodiazepínico. E, ao se ligar, eles vão promover sedação, vão conseguir induzir o sono… Temos uma estrutura cerebral chamada hipocampo, sendo sabido que fármacos que se ligam no hipocampo de alguma forma e comprometem a memória.” explica Mirian.

Sobre as alucinações a professora comenta que “não se tem uma explicação plausível, porque estas reações acontecem, sabe-se que acontecem, mas não se sabe exatamente”.

Mirian Monteiro lembra que um medicamento, antes de tudo, “é uma mercadoria, a gente não pode fechar os olhos para essa realidade. A indústria realmente não é muito fidedigna com as informações”.

 

 

Medicalizando o sono

 

Segundo a estimativa da OMS, após a pandemia causada pelo COVID-19, houve um crescimento global de 25% em transtornos psiquiátricos como depressão, ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático. Além disso, dados da Anvisa afirmam que o zolpidem, um dos fármacos hipnóticos benzodiazepínicos mais comumente prescritos para insônia e depressão, teve seu consumo aumentado na mesma época.

 

Gislei Frota é professor (PhD) Adjunto do Curso de Medicina da Universidade Estadual do Ceará (UECE)(Foto: Acervo Pesspa)
Foto: Acervo Pesspa Gislei Frota é professor (PhD) Adjunto do Curso de Medicina da Universidade Estadual do Ceará (UECE)

“Dormir é um ato fisiológico”, afirma o professor do curso de Medicina da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e doutor em farmacologia, Gislei Frota Aragão. O estudioso conta que não podemos hipermedicalizar essa atividade ao ser de grande importância para o desenvolvimento da cognição humana.

No entanto, “a chamada droga Z (zolpidem), só em 2018, foi vendida, no Brasil, mais de 13 bilhões caixas. Em 2023, cinco anos depois, esse número saltou para 22 bilhões”, narra. Ele relata que tudo isso se deu devido aos problemas de insônia.

O professor explica que a insônia existe com causa e sem causa. “Eu estou com insônia, porque daqui a uma semana vou fazer uma entrevista de emprego, que é muito importante para mim ou só não consigo pregar o olho”, exemplifica. O zolpidem aparece como uma novidade por ser um medicamento feito apenas para induzir o sono.

 

 

Alucinação ou sonho?

“O princípio é o não de recomendar você usar nenhum tipo de remédio. O que você precisa fazer é uma higiene do sono”, explica o professor Gislei Frota. Dormir mais tarde, utilizar equipamentos eletrônicos e ingerir alimentos pesados durante a noite, apenas dificultam o sono e impedem uma boa limpeza dele.

Ele explica que com o uso de zolpidem há uma espécie de desativação e o uso de “muitos elementos que ativem nosso sistema nervoso entra em confronto com o que era para estar desativando. Ele causa alucinação. A pessoa fica mais falante, fica desinibida. Muitas pessoas estão utilizando para efeito recreativo mesmo”.

No entanto, a droga apresenta uma série de efeitos colaterais como dor de cabeça, náuseas, gosto amargo na boca, tontura e irritabilidade. “Você tem que tomar o medicamento e tem que ir direto para cama, porque ele causa que amnésia”, conta o estudioso. O professor completa, “tu vai ficar como se tivesse dormindo acordado, você fará coisas que você não lembrará”, alerta.

Na internet, diversos internautas compartilham suas experiências ao utilizar o zolpidem.

O doutor em farmacologia alerta que o fármaco apresenta o ‘Fenômeno da Tolerância’. A bula recomenda que tratamento de insônia, só pode ser feito, no máximo, por quatro semanas, mas as pessoas ultrapassam esse tempo, conta o professor. “Eu preciso estar aumentando a dose para ter o mesmo efeito. Tem gente que toma seis meses, tem gente que toma dois anos e vai aumentando a dose. Tem casos de pessoas tomando 30 cumprimento por dia”, explica professor.

A facilidade com que se conquista esse medicamento se dá devido às receitas. “É só uma receita carbonada, o controle é muito menor, por isso é que é muito mais fácil você adquirir esse medicamento”.

 

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