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Em Barbalha, o casamento entre sagrado e profano que fez de Socorro Luna a "solteirona" do Brasil
Reportagem Especial

Em Barbalha, o casamento entre sagrado e profano que fez de Socorro Luna a "solteirona" do Brasil

| CULTURA POPULAR | Na Festa do Pau da Bandeira de Santo Antônio, celebração do Cariri cearense que abre os festejos juninos no Nordeste, uma mulher solteira assume o protagonismo ao lado do santo casamenteiro. O POVO+ acompanhou a travessia do mastro de dentro da casa da 'maior solteirona' do Brasil, símbolo da festa reconhecida pelo Iphan como patrimônio cultural e imaterial brasileiro

Em Barbalha, o casamento entre sagrado e profano que fez de Socorro Luna a "solteirona" do Brasil

| CULTURA POPULAR | Na Festa do Pau da Bandeira de Santo Antônio, celebração do Cariri cearense que abre os festejos juninos no Nordeste, uma mulher solteira assume o protagonismo ao lado do santo casamenteiro. O POVO+ acompanhou a travessia do mastro de dentro da casa da 'maior solteirona' do Brasil, símbolo da festa reconhecida pelo Iphan como patrimônio cultural e imaterial brasileiro
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Dedos rodeados por anéis metálicos empunham as espadas que tracejam no ar a cultura dos folguedos, reisados de congo, couro e baile. Na sombra das fitas e bandeirolas, os brindes celebram o casamento perfeito entre sagrado e profano que se espalha pelas ruas da cidade do santo casamenteiro.

Outras mãos, estas quentes e ásperas, seguram com firmeza o tronco de toneladas em um cortejo que faz vibrar a fé e a tradição de um povo profundamente conectado com os saberes do seu território.

Na terra dos verdes canaviais, como é conhecida Barbalha, no Cariri cearense, a 500 quilômetros de Fortaleza, a abertura dos festejos juninos no Nordeste é marcada pela quase secular Festa do Pau da Bandeira de Santo Antônio "A Festa do Pau da Bandeira de Santônio em Barbalha é uma festa popular que, desde 1928, antecede os festejos do dia de santo Antônio de Pádua (13 de junho). Em 2015, foi reconhecida como Patrimônio Cultural Brasileiro e inscrita no Livro de Registro das Celebrações pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Também é considerada patrimônio cultural do Ceará pelo Conselho Estadual de Preservação do Patrimônio Cultural do Ceará (Coepa). Trata-se de uma grande celebração que acompanha a versão local do costume de erguer, em frente à igreja matriz da cidade, um tronco de grande porte para receber a bandeira do santo padroeiro da cidade."  — quando milhares de pessoas ajudam a segurar o véu da noiva mais colorida da cultura brasileira.

Festa do Pau da Bandeira de Santo Antônio é parte da trezena dedicada ao padroeiro(Foto: Vandson Domingos/Especial para O POVO)
Foto: Vandson Domingos/Especial para O POVO Festa do Pau da Bandeira de Santo Antônio é parte da trezena dedicada ao padroeiro

São duas semanas de um evento que envolve praticamente todos os segmentos da localidade com missas, quermesses, grupos folclóricos, bandas de pífano, vaqueiros, poetas e mestres populares, artesãos e uma forte tradição religiosa que se espalha pela região até 13 de junho, dia de Santo Antônio, uma das figuras mais respeitadas e cultuadas do mundo pela Igreja Católica — e padroeiro de Barbalha.

O ponto alto da festa, como o nome sugere, é a passagem dos carregadores com o mastro gigante e a bandeira do santo até o hasteamento em frente à Igreja Matriz, no centro histórico barbalhense — costume, vale ressaltar, que também existe em outros municípios e distritos da zona rural.

Mas ao lado de Santo Antônio, uma mulher solteira de 70 anos também assume o protagonismo do festejo que movimenta toda a região do Cariri — do triângulo Crajubar (Crato, Juazeiro e Barbalha) a outros municípios, estados e países de onde vêm as mais de 500 mil pessoas que passam pela cidade durante as celebrações.

Rainha da “Noite das Solteironas”, festividade realizada no dia 1º e que antecede a travessia do pau da bandeira, a advogada Socorro Luna abre as portas da casa número 182 da rua do Vidéo, parada obrigatória para pessoas solteiras que buscam simpatias para casar.

Da janela, uma das principais anfitriãs da celebração distribui o chá feito da casca do pau e outros itens para quem deseja deixar a solteirice e subir ao altar: a pinga “xô caritó”, o pó cata-marido e até fitas que suplicam “Santo Antônio, tende piedade de nós, as solteironas”.

Entre os rituais que, segundo a tradição, são capazes de enlaçar quem os fizer, sentar no mastro durante a passagem do pau ou beber o chá feito das lascas dele são os principais.

Ícone da Festa de Santo Antônio de Barbalha, a advogada Socorro Luna criou a "Noite das Solteironas", momento que antecede a passagem do pau da bandeira e reúne simpatias para conseguir um casamento(Foto: Socorro Luna/Acervo pessoal)
Foto: Socorro Luna/Acervo pessoal Ícone da Festa de Santo Antônio de Barbalha, a advogada Socorro Luna criou a "Noite das Solteironas", momento que antecede a passagem do pau da bandeira e reúne simpatias para conseguir um casamento

Colocar a imagem de cabeça para baixo, amarrar um fio de cabelo ou tirar o menino Jesus do colo de Santo Antônio são outras superstições que envolvem a figura do franciscano português.

“Como é sempre uma árvore medicinal (o tronco cortado para ser o pau da bandeira), resolvi pegar a casca para fazer o chá”, conta a solteirona mais famosa do Brasil sobre a criação. No primeiro ano em que fez o chá, o mastro foi um jatobá; em 2024, uma copaíba de 23 metros de altura e quase 3 toneladas foi a escolhida "De acordo com a Prefeitura Municipal de Barbalha, todo o processo de escolha e corte do Pau da Bandeira é realizado com a autorização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). "Após o corte, um reflorestamento de árvores é realizado. Todo o procedimento é acompanhado pelas autoridades ambientais. Vale ressaltar que, a cada corte, é realizado o plantio de 20 árvores", afirma a prefeitura." .

Do corte e carregamento do pau aos shows de artistas locais e nacionais, o Pau da Bandeira faz de Barbalha um grande caldeirão cultural que resgata tradições e as funde com expressões culturais contemporâneas.

Com o passar do tempo, como uma manifestação viva e dinâmica, a festa incorporou novos aspectos sociais e foi ressignificada. Há, por exemplo, espaço para atos políticos como a luta das mulheres pelo fim da violência, já que a região também é conhecida por registrar índices alarmantes de agressões domésticas e feminicídios.

Neste 2024, o convite aos participantes foi levar itens de higiene pessoal, roupas e alimentos para as famílias vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul.

Socorro Luna reconhece que os tempos mudaram e que hoje o casamento já não é mais uma prioridade para muitas mulheres como era no início dos anos 2000, quando essa tradição de simpatias ao santo casamenteiro passou a ser a sua vida.

Em dois dedos de prosa com O POVO+, ainda no calor da emoção após ser erguida pelos carregadores junto ao pau da bandeira, ela conta detalhes dessa história.

 

 

Socorro Luna: “Minha vida é uma eterna folia”

Eram 17h20 quando, no ímpeto de jornalista, me convidei a entrar na mais famosa e disputada casa da rua do Vidéo. Aproveitei a deixa enquanto dona Socorro me dava algumas doses do seu famoso chá, me identifiquei como repórter e ela aceitou conversar por alguns minutos antes do tão esperado momento.

Passei uns segundos entretida com a decoração da casa, tão caprichada e repleta de figuras religiosas — com a presença dominante, é claro, de Santo Antônio. Ela logo me despertou: “mas não demora muito, viu? Porque é já que o pau vai passar”.

Pus o celular para gravar e só deu tempo de começar a primeira das perguntas que pretendia fazer. Uma gritaria lá fora anunciava que o pau estava chegando. Ela nem precisou dizer nada: abri espaço, a correria começou.

Na casa de número 182, na rua do Vidéo, vive a solteirona mais famosa do Brasil(Foto: Karyne Lane/O POVO)
Foto: Karyne Lane/O POVO Na casa de número 182, na rua do Vidéo, vive a solteirona mais famosa do Brasil

Ajudei a tirar os chás da janela, puxei a cadeira, ela subiu. “Cadê meu cigarro?”, perguntava, nervosa, minutos antes de ser hasteada pelos carregadores junto com o pau da bandeira.

Todos dentro da casa pareciam entrar numa mesma energia, um misto de nervosismo com emoção. No microfone, elogios anunciavam a “moral” que somente um símbolo como dona Socorro tem.

Ao fundo, as pessoas cantavam “eu quero chá, Socorro, eu quero chá”, uma música em referência ao chá feito da lasca do mastro e servido por ela nos dias de festa.

E eu, que tinha apenas o desejo de aproveitar a oportunidade para conversar dois dedos de prosa com ela, acabei assistindo a um dos momentos mais especiais da festa direto da janela mais importante.

Dona Socorro foi erguida em direção à multidão, abriu-se um caminho para sua passagem, os carregadores abaixaram o mastro e ela se ajoelhou para fazer a sua oração.

Enquanto tentava filmar tudo e, ao mesmo tempo, não deixar escapar aos meus próprios olhos, assimilava o tamanho do meu privilégio. Era arrepiante.

No meio de tanta gente e de tantas sensações, a perdi de vista. Alguns minutos depois, a advogada entrou, ainda ofegante. De costas para a porta, emocionada, levantou os braços e começou a agradecer a Santo Antônio por todas as graças.

 

"...eu não casei porque ele (Santo Antônio) não deixou, mas sou a solteirona mais feliz do mundo por isso" Socorro Luna

 

OP+: Dona Socorro, no Cariri como um todo é muito forte a figura do padre Cícero, que move multidões, mas existem outras figuras religiosas como Santo Antônio que também movimentam a região inteira. O que esse santo representa na sua vida hoje e o que a festa em torno dele significam para a cultura local, principalmente no contexto das festas juninas?

Socorro Luna - Nossa região é muito rica em religiosidade, o padre Cícero é uma figura ímpar, é o nosso santo. Mas outras figuras religiosas como a de Santo Antônio também movimentam a nossa cultura, além da grande romaria do padre Zezinho. Esse santo representa tudo na nossa região, representa a nossa fé, a nossa cultura, garra e tradição. E tem mais, nós somos especialistas em juntar o sagrado e o profano. O nome pau da bandeira nasceu disso, porque antes se chamava mastro da bandeira.

Aliás, eu não casei porque ele (Santo Antônio) não deixou, mas sou a solteirona mais feliz do mundo por isso. Quanto chega a hora de subir no pau, quando os carregadores param aqui em frente e me carregam até lá, ah, eu me emociono toda vez. É a única pessoa que eles fazem isso, um corredor pra isolar e eu poder me ajoelhar e rezar aos pés do pau. É o nosso momento. Santo Antônio é só bênção na minha vida. É muita emoção (vai às lágrimas).

 

"há muitas pessoas que ainda querem encontrar a sua alma gêmea, ainda querem muito ter alguém para amar do seu lado"

 

OP+: Aos 70 anos, a senhora é um dos principais símbolos dessa festa. Os tempos mudaram desde que a Noite das Solteironas teve início, e muitas mulheres hoje em dia não veem o casamento como uma prioridade. O que lhe motiva a continuar organizando esse evento e o que senhora diria para aquelas que se sentem pressionadas a casar devido às expectativas sociais?

Socorro Luna - Nunca se sintam pressionadas para o casamento. Expectativa social? Meu amor, você é muito mais importante do que qualquer expectativa social. Realmente, hoje muita gente não se sente motivado com casamento, para muitas mulheres é como se o casamento tivesse saído de moda. Mas há muitas pessoas que ainda querem encontrar a sua alma gêmea, ainda querem muito ter alguém para amar do seu lado.

Eu mesma não quero mais homem, assim como muitas mulheres. Mas existe ainda muita gente que deseja o casamento, homem e mulher, e para ajudar eu faço a minha parte. Mas não basta apenas isso, é preciso ter fé, fazer orações e confiar em Santo Antônio.

Mas eu repito: você, mulher, nunca se case ou se sinta pressionada a casar porque a sociedade exige matrimônio. Se case pela sua vontade própria, porque você é muito mais importante do que as expectativas sociais. Siga em frente, Santo Antônio é forte, pede as bênçãos que elas vêm.

OP+: O que a senhora espera que as futuras gerações de mulheres em Barbalha aprendam com a sua história, com a Noite das Solteironas e com a Festa do Pau da Bandeira?

Socorro Luna - A minha história é uma história simples, de uma moça do interior, portanto não sei se sou um exemplo para alguém. Minha vida é uma eterna folia, como costumo dizer. Mas eu espero que nunca deixem morrer essa tradição e essa religiosidade. Afinal de contas, nós somos nordestinos, um povo que, antes de tudo, é um povo forte.

No meio do sertão, aqui a cultura é fértil e brota como a nascente de um rio, deixando tudo verde. Você está sobre um lugar onde um mar já existiu! Precisamos juntar as nossas crenças, fazer elas crescerem e mostrar isso para o mundo inteiro. Essa cultura e essa fé dependem de nós para se manter.

 

 

Menina moça, linda Barbalha

por Karyne Lane*

Testemunhar um momento único de beleza, alegria e emoção em uma terra de encantos estimula o olhar a dar uma festa sempre que vê tudo.

Na estrada para Barbalha, a timidez da copa das árvores formava um mosaico sobre nós; um céu de ramos misteriosos. O caminho era adornado pela floresta que criava uma espécie de túnel natural, com alguns raios do sol que se espreitavam pelas brechas e tornavam o cenário ainda mais bonito.

Quando avistei as primeiras residências, a pista já estava tomada por pessoas montadas em cavalos a caminho da grande festa. Na beira do asfalto se amontoavam crianças, idosos, cachorros, gatos. Todos do lado de fora à espera do pau da bandeira.

As ruas estavam lotadas e era chegando mais gente. O povo se aglomerava nas sacadas, calçadas, escadas. Subia nos lugares mais altos para garantir a melhor vista. Havia público por todos os lados.

As fachadas das casas, cada uma a sua maneira, eram mais um espaço de manifestação da devoção religiosa ao santo casamenteiro: para onde quer que se olhasse havia um colorido que se misturava à imagem dele com o menino Jesus no colo estampando bandeirolas, flâmulas, banners, camisas.

O vento balançava as bandeiras e fazia um barulho de chuva extremamente relaxante que, por alguns momentos, nos levava a esquecer do sol escaldante sobre a cabeça.

O chão estremeceu quando os homens soltaram o mastro para que as mulheres fizessem a simpatia de sentar em cima. Com a própria mão, um dos carregadores arrancou algumas lascas e me entregou. Depois da força coletiva para hasteá-lo, a fila de pessoas para escrever seu nome no tronco era imensa.

Sem caneta, uma amiga improvisou com o batom e colocou não apenas o nome dela, mas também o de outras pessoas que estavam “encalhadas” e pediram uma mãozinha do santo. Não custava a tentativa.

Quando a noite caiu, meus olhos se voltaram para cima, onde fogos de artifício salpicavam como glitter o céu com o brilho da renovação. De repente, todos estavam com os celulares apontados para outro lado; acompanhei e me surpreendi com os drones que projetavam imagens tridimensionais de símbolos das festas juninas: das bandeiras, balões e fogueiras ao Rei do Baião e a frase “viva Santo Antônio”. Parecia ano novo.

Num misto extasiante entre realidade e fantasia, como sempre são as minhas viagens ao Cariri, cheguei de Barbalha como se meu coração tivesse renovado uma paixão antiga; como se a cidade tivesse se personificado na minha frente e se tornado a “menina moça, linda Barbalha” que dizem os versos apaixonados de Alcymar Monteiro.

*Karyne Lane é jornalista, repórter do O POVO+ e “exploradora de terrenos”. Morou por dois anos no Cariri e esta foi sua terceira Festa do Pau da Bandeira 

"Oie :) Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários. Até a próxima!"

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