Cerca de 8.350 quilômetros separam a cidade de Varsóvia, na Polônia, do município de Aquiraz, Região Metropolitana de Fortaleza. Entre elas, não há muito em comum e, até aí, não há surpresa alguma. Um elo inusitado entre as duas cidades, porém, é a presença da Igreja Ortodoxa Polonesa.
No bairro de Patacas - a cerca de 5km da Lagoa do Catu - por trás de um muro chapiscado, se pode observar duas torres que ostentam três cruzes de seis pontas no topo. É a cruz bizantina, demarcando que naquele lugar funciona a Igreja Ortodoxa Dormição da Mãe de Deus, cujo pároco é o hieromonge Constantino.
Ele insiste, porém, que apesar do nome diferente, é um padre católico como qualquer outro. A nomenclatura define, na tradição ortodoxa, um sacerdote que vive sob regras monásticas. Padres casados, por exemplo, são chamados de "arciprestes".
Padre Constantino está acompanhado do diácono Diego, responsável pela vinda da ortodoxia para o Ceará.
Diego conheceu a Ortodoxia em 2005, quando viajou ao Vaticano para acompanhar o funeral do papa João Paulo II. “Estava lá quando apareceu uma freira. Fiquei curioso pelas vestes e quando a freira se virou… Tinha uma barba bem aqui" - diz gesticulando na altura do peito. A “freira”, na verdade, era um clérigo ortodoxo que também acompanhava as homenagens ao pontífice.
A presença do religioso no Vaticano é explicada por Constantino como um sinal de respeito pelo bispo de Roma, que é "tão católico quanto qualquer fiel ortodoxo". Para o padre, é importante pontuar que a fé professada por eles não é protestante, e o catolicismo é a igreja fundada pelos discípulos de Jesus Cristo.
Dados do Anuário Pontifício de 2023 afirmam que o Brasil é o país com maior número de católicos romanos batizados no mundo: quase 180 milhões de pessoas. Não é estranho, então, o fato de poucas pessoas estarem familiarizadas com a ortodoxia. Então qual é, de fato, a diferença entre as fés cristãs?
Cerca de 2,18 bilhões de pessoas dizem professar a fé cristã no mundo. Esses dados foram revelados em um relatório de 2018 do instituto de pesquisa americano Pew Research Center. Para cerca de 30% da população mundial, há quase dois mil anos, Jesus Cristo, o filho de Deus, veio à Terra e fundou sua Igreja. Por meio de seus apóstolos e discípulos, o objetivo da organização religiosa seria, fundamentalmente, a salvação do homem. Nos anos seguintes, os Apóstolos difundiram o cristianismo e seus ensinamentos e fundaram muitas igrejas, todas unidas na fé, na adoração e na participação dos Sacramentos.
As instituições fundadas pelos próprios apóstolos incluem os Patriarcados de Alexandria, Antioquia, Jerusalém, Roma e Constantinopla. A Igreja de Alexandria foi fundada por São Marcos, a de Antioquia por São Paulo e a de Jerusalém por Ss. Pedro e Tiago, a de Roma por Ss. Pedro e Paulo, e a de Constantinopla por Santo André. Aquelas fundadas em anos posteriores por meio da atividade missionária incluem as da Rússia, Grécia, Sérvia, Bulgária e Romênia.
Cada igreja sempre teve uma administração independente. Padre Constantino explica que, na verdade, a Sé era administrada por aquilo que se chamava pentarquia. Ou seja, a partir dos cinco bispos das maiores congregações à época: Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém.
O bispo de Roma, hoje papa, já gozava de uma primazia, mas apenas de honra, por ser compreendido como o “primeiro entre os pares”. Gozando dessa primazia, poderia intervir em conflitos e discussões dos demais patriarcas, mas apenas se consultado. O fato é que, ao longo dos séculos, alguns dos bispos de Roma começaram a confundir o que era apenas um primado de honra com um poder de decisão sobre a Igreja inteira – não mais “o primeiro entre os pares”, mas “o primeiro sobre os pares”.
Assim, muitos historiadores e teólogos entendem que o chamado “cisma”, ou seja, a separação definitiva entre o cristianismo oriental e ocidental veio lentamente. A primeira grande ruptura ocorreu no século IX, quando o papa se recusou a reconhecer a eleição de Photius como patriarca de Constantinopla.
Photius, por sua vez, desafiou o direito do papado de decidir sobre o entendimento sobre a “santíssima trindade”, conhecido como "Cláusula Filioque". Para a igreja romana, o Espírito Santo vem tanto do Pai quanto do Filho. Já na ortodoxia, o entendimento do texto original do "Credo" é de que o Espírito Santo procede apenas do Pai.
As crescentes disputas entre o Oriente e o Ocidente atingiram outro pico em 1054 d.C., quando houve troca de excomunhões mútuas. O saque de Constantinopla pela Quarta Cruzada (1204 d.C.) intensificou a hostilidade do Oriente contra o Ocidente.
As tentativas de reconciliação nos concílios de Lyon (1274) e Florença (1438-143) não tiveram êxito. Quando o papado se definiu como infalível (Concílio Vaticano I, 1870 d.C.), o abismo entre o Oriente e o Ocidente aumentou.
Somente a partir do Concílio Vaticano II (1962-65) o movimento se inverteu e as conversações estão trazendo sérias tentativas de entendimento mútuo, como relata Ney de Sousa, doutor em Teologia e professor do Programa Pós-Graduação em Teologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
“Às vésperas do fechamento do Concílio Vaticano II, foi lida no Vaticano e em Istambul, a declaração conjunta assinada pelo papa Paulo VI e pelo patriarca Atenágoras I com a recíproca revogação das excomunhões mútuas que tinham sido mutuamente impostas mil anos antes entre Constantinopla e Roma”, explica.
Como explica o hieromonge Constantino, as igrejas separadas de Roma estão até hoje unidas na doutrina, na tradição apostólica, nos sacramentos, nas liturgias e nos serviços. Juntas, elas constituema a “Igreja Ortodoxa”, que significa literalmente “ensinamento correto” ou “adoração correta”, derivado de duas palavras gregas: orthos, “correto”, e doxa, “ensinamento” ou “adoração”. Embora o clérigo faça questão de frisar que não considera uma sendo mais ou menos correta do que a outra, apenas diferentes em seus ritos.
O pároco explica também o fato do entendimento mútuo entre as igrejas católicas canônicas garantir algumas prerrogativas. “Se um fiel da Polônia sai para o catolicismo romano, o rito latino não vai batizá-lo novamente, e vice-versa.”
Foi o que aconteceu com Diego Ribeiro. Para ele, o principal motivo de ter se voltado para a fé ortodoxa foi a busca por respostas que a igreja de Roma não poderia prover. “Me reconhecer como partícipe do Deus que eu acredito foi o grande acontecimento”, explica.
A partir daí, foram alguns anos de estudo “à base da internet discada”, como brinca o diácono. Foram anos de estudo em busca por uma fé autêntica. Foi quando guiado por um padre da Igreja Ortodoxa Grega, chamado Basílio, ele chegou à Constantinopla (como os ortodoxos chamam a atual cidade de Istambul, na Turquia), onde conheceu o padre Nektários, no mosteiro de São Jorge, localizado na cidade turca de Adalar.
Essa troca de experiências o levou a ser apresentado em definitivo ao patriarca ecumênico e principal bispo da Igreja Ortodoxa de Constantinopla, Bartolomeu I em um almoço na Faculdade Halki. Lá, Diego recebeu o nome Tiago e foi recebido na ortodoxia em uma cerimônia realizada no dia 24 de dezembro de 2010 na Igreja de São Nicolau na cidade de Drama. A mudança de nome acontece pela tradição do “onomástico”, importante na ortodoxia. Segundo eles, é importante celebrar os personagens que foram importantes para a consolidação do cristianismo, sejam apóstolos, profetas, santos ou mesmo os patriarcas.
De volta ao Brasil, Diego, agora Tiago, buscava uma comunidade para fortalecer sua crença. Pela distância entre Fortaleza e São Paulo, onde se localiza a Catedral Ortodoxa Grega de São Paulo, era preciso buscar uma alternativa. Foi quando o fiel encontrou o apoio do Bispo Ambrósio da Eparquia do Brasil da Igreja Ortodoxa da Polônia. Foi quando começou a Missão São Serafim de Sarov no Ceará.
A primeira celebração da Santa Liturgia - versão oriental da Santa Missa - aconteceu na própria casa de Diego e foi celebrada pelo arquimandrita Jerônimo, do Mosteiro de São Nicolau. Hoje, as celebrações acontecem no templo erguido por Constantino em Aquiraz.
Ele e Diego são amigos de longa data, e segundo relata, em 2019, os questionamentos sobre fé o aproximaram da ortodoxia. Ele também é “egresso” do catolicismo romano e fez os seus estudos em Filosofia e Teologia no Seminário da Prainha. Ao se distanciar da igreja latina, Constantino, que à época atendia pelo nome de batismo Iran, teve o apoio de bispos e padres de Recife e Olinda. Ao longo dos anos, a missão se fortaleceu e realizou celebrações anuais da liturgia em Fortaleza. Em 2022, Iran foi oficialmente recebido na igreja polonesa e iniciou sua preparação para ser ordenado.
Residente em Aquiraz, Iran já planejava a construção de uma capela que foi sendo erguida aos poucos. Quando passou a professar a fé ortodoxa, o agora Constantino contou com a ajuda financeira de dezenas de amigos para colocar de pé a sede da paróquia. Os ajustes, porém, foram necessários.
O altar ortodoxo segue uma tradição milenar de estar voltado ao oriente. Constantino comenta que algumas pessoas se surpreendem ao participar da liturgia. “Eu não rezo de costas para o povo. Rezo de frente para o altar”, diz. Ele explica como na visão da ortodoxia, o sacerdote é um intermediário entre o povo e Deus.
“Para manter esse caráter, o clérigo se coloca em uma posição que simboliza estar oferecendo dons, sacrifícios e oblações a Deus pelo povo que está atrás”.
A arquitetura das igrejas ortodoxas chama a atenção pelas singularidades. Na maioria delas não há assentos ou bancos como no ocidente. Isso porque, tradicionalmente, não se senta durante os cultos. Para os ortodoxos, durante a liturgia Deus está de pé no altar. Padre Constantino explica a lógica com uma analogia. “Quando o rei se levanta ninguém fica sentado. Então se Deus, o rei, está de pé, não faz sentido os súditos estarem sentados.”
No entanto, exceções a isto podem ser encontradas nos países ocidentais, especialmente nos Estados Unidos, onde a familiaridade com as igrejas católicas e protestantes levou a semelhanças no mobiliário. Não é incomum encontrar bancos e ajoelhadores e até mesmo ar-condicionado. Este último também está nos planos do padre Constantino para sua paróquia. “Ninguém merece rezar no calor”, diz em meio a uma risada.
A ausência de imagens tridimensionais de santos é um ponto que também salta aos olhos. Em templos ortodoxos são encontrados apenas vitrais, crucifixos e ícones. As pinturas buscam retratar a essência da santidade de Jesus, Maria e outras figuras santas.
No templo ortodoxo, eles desempenham um papel importante: compõem a iconóstase. Uma parede entre a nave e o santuário, coberta de ícones.
“O ícone tem toda uma história. Ele conta tudo, e é como a palavra das escrituras para aqueles que não sabem ler”, explica Constantino
Na iconóstase há três portas, uma no meio e outra de cada lado. A central é tradicionalmente chamada de Porta Bela. Em ambos os lados deste portal estão grandes castiçais de latão chamados “menalia”, que representam as colunas de fogo que precederam os hebreus na terra prometida.
Apesar de incompleto, o pároco faz questão de explicar como será o leiaute final do templo. Na frente do santuário, ficarão quatro altares chamados ícones despóticos. Neles ficam representações icônicas do Cristo, da Virgem Maria, de São João Batista e do santo padroeiro de cada templo.
A porta central é usada apenas pelo clero. Há momentos em que este portão é fechado durante o culto e uma cortina também é usada para impedir a visão do altar. As portas de ambos os lados são chamadas de Portas dos Diáconos ou Portas dos Anjos, pois muitas vezes se retratam nelas os arcanjos Miguel e Gabriel. Essas portas são usadas por diáconos e servidores para entrar no santuário. Um ponto que padre Constantino ressalta é que nenhuma mulher pode entrar no santuário, nem mesmo freiras, ou a presbítera - como são chamadas as esposas de padres.
“E elas não fazem questão. Para a mulher ortodoxa, o empoderamento tem um sentido diferente. Não é fazer o mesmo que homens, é poder bem cumprir os papeis que lhe cabem”, diz.
Por trás da iconóstase há o altar propriamente dito, que também é chamado de santuário. Dentro desta área está a mesa do altar, ou trono. Há também um espaço no lado norte, onde é feita a consagração do pão e do vinho. Uma das diferenças do rito bizantino para o romano está o entendimento dogmático da comunhão.
Padre Constantino diz que o catolicismo romano tenta explicar como se dá transubstanciação, a mudança do pão e do vinho no corpo e sangue do Cristo Vivo. Já aos ortodoxos, não interessa explicar o processo a qual chamam de transmutação.
“Então, quer dizer, a gente vive uma vida mais serena porque não passamos horas e horas queimando nos neurônios para tentar descobrir”, brinca o pároco.
Ainda no santuário, no topo da mesa do altar, há um recipiente ornamentado, o tabernáculo, onde os elementos eucarísticos reservados são armazenados para a comunhão.
Outro ponto que o rito oriental preserva há muitos séculos é a forma de administrar os sacramentos. Todas as igrejas ortodoxas batizam por imersão, e logo após o batismo o novo cristão, ainda que seja um bebê, pode - e deve - receber a Eucaristia e a Crisma.
“Uma pessoa, uma vez batizada, não pode ser privada da graça de receber o corpo e o sangue do Nosso Jesus Cristo, porque isso não depende da intelectualidade. Então a criança no dia que se batiza já recebe a eucaristia. E se ela não conseguir engolir o corpo de Cristo, que está no pão, o padre coloca algumas gotas do vinho na boca da criança e ela comunga”, explica padre Constantino.
O templo da Dormição da Mãe de Deus é uma igreja é essencialmente Ortodoxa para ortodoxos, mas foi construída por católicos romanos. É assim que padre Constantino revela que a paróquia tem se estruturado.
“A maioria das obras foi feita com doações de católicos romanos, que vêm aqui participar de orações comigo e tudo mais. Foram essas ações que construíram isso aqui para os ortodoxos, e eu quero dizer isso no dia da inauguração”, relata.
Quanto aos fiéis, o diácono Diego dá uma informação surpreendente. A maioria da comunidade é formada por jovens de até 30 anos e que se converteram do protestantismo à ortodoxia. E segundo o padre Constantino, o termo é realmente “conversão”, pois eles não receberam antes o batismo canônico.
“Se alguém for batizado em nome de Jesus, em nome do pai, de Deus Pai ou do todo-poderoso, isso é inválido. O único batizado reconhecido é aquele feito ‘em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo’, como nós ou como o catolicismo romano faz. Tem que ter a matéria, sendo a água, e a fórmula, sendo as palavras”, afirma.
Diego diz que a busca pela fé ortodoxa é um reflexo da forma de organização da igreja. Para ele, a ortodoxia tem uma abordagem muito clara e direta, e responde às perguntas teológicas de maneira simples, ainda que seja com um “porque sim”.
Na visão do diácono, isso é influência da forma como as congregações se estruturam. Todas as decisões são tomadas pelo Sínodo, uma reunião de todos os bispos e patriarcas, na qual eles têm o mesmo poder de voto.
“Como o padre conhece os anseios da comunidade, ele leva ao bispo, que vai para uma dessas reuniões e representa essa comunidade. Não existindo um poder de veto, como o papa de Roma exerce, então é mais fácil acertar e é mais difícil de errar”, completa o padre Constantino.
Um dos entendimentos diferentes entre católicos romanos e ortodoxos é a possibilidade de ordenar padres homens casados, como foi o caso de Constantino. O celibato é voluntário para a maioria dos casos. Ele, contudo, ficou viúvo, e pelas leis da Igreja, não pode mais casar, tendo que viver sob um regime monástico. Daí o nome oficial do seu título “hieromonge”.
A igreja fica no mesmo terreno da casa do padre e ele revela que o espaço está sempre aberto aos que querem vivenciar um momento de oração, introspecção e comunhão.
“Você simplesmente pode vir para cá, deita numa rede ali”, diz indicando a varanda da casa.
Constantino também aponta os próximos passos.
“Vamos colocar as portas, pintar. Fazer o forro dela, que vai seguir toda essa estética. Nós vamos terminar se Deus quiser. Depois vou tirar esse muro. Já falei até com o prefeito, pedi para fazer uma pracinha aqui na frente. Vai ter uma visibilidade bem maior”, conclui parecendo otimista.
Questionado sobre a quantidade de fieis, o padre diz que a casa estará sempre aberta a receber quem a procura. Ele reforça ainda que o proselitismo não combina com a ideia da Igreja Ortodoxa.
“Nossa liturgia não é um monólogo. É realmente é um diálogo”, afirma. “Não temos essa pretensão de dizer que ‘todo mundo precisa se converter’. Acreditamos que sim, porque buscamos a salvação, mas o nosso objetivo é se fazer uma pessoa melhor. Não temos também a intenção de explicar aquilo que a gente não pode explicar”, finaliza.
Depois do jejum do período pascoal, padre Constantino e Diego convidam a equipe do O POVO+ para um café com bolo de fubá.
“Os orientais até conseguem passar a pão e água, com aquele pão com passas, feito com mel. Um pedaço de pão vale pelo dia todo. Mas vai comer aquele pão da padaria ali, logo, logo você começa a ver Jesus”, brinca Diego, indicando a saída.
O clima de chácara da propriedade colabora com a sensação de introspecção que a igreja se propõe a ter. Em um Brasil marcado por divisões e pelo uso político da religiosidade, a paróquia da Dormição da Mãe de Deus parece muito mais preocupada em ser um ambiente de acolhimento, paz e união.