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Cuidados paliativos: SUS se volta a aliviar o sofrimento
Reportagem Especial

Cuidados paliativos: SUS se volta a aliviar o sofrimento

Nova Política Nacional de Cuidados Paliativos visa criação de equipes especializadas em promover qualidade de vida a pessoas com doenças graves

Cuidados paliativos: SUS se volta a aliviar o sofrimento

Nova Política Nacional de Cuidados Paliativos visa criação de equipes especializadas em promover qualidade de vida a pessoas com doenças graves
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Mesmo que a medicina muitas vezes seja sinônimo de cura, os cuidados paliativos são um lembrete gentil de que nem sempre é possível vencer a batalha contra as doenças. Mas, ressalte-se, é possível oferecer conforto, dignidade e qualidade de vida a todo paciente.

Em maio deste ano, o Ministério da Saúde anunciou a nova Política Nacional de Cuidados Paliativos no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Conforme a pasta, a ação busca humanizar a atual assistência, se baseando em três eixos principais: 

A coordenadora geral de Atenção Domiciliar do Ministério da Saúde, Mariana Borges, ressalta que a principal intenção dessa política é promover uma mudança cultural significativa no Brasil em relação à morte e aos cuidados paliativos.

“Busca-se que a população compreenda que os cuidados paliativos podem ser a melhor opção para seus entes queridos. Além disso, pretende-se mudar a cultura dos profissionais de saúde, que foram tradicionalmente educados para curar e evitar a morte a qualquer custo. Em muitas situações, a morte é inevitável, e é crucial saber como lidar nesses momentos”, comenta a coordenadora.

Para a implantação de cuidados paliativos, serão formadas 485 equipes matriciais (responsáveis pela gestão dos casos) e 836 equipes assistenciais (que prestarão o atendimento direto). Ambas serão compostas por médicos, enfermeiros, assistentes sociais e psicólogos.

SUS começa a treinar equipes multidisciplinares para novo protocolo de cuidados paliativos na rede pública de saúde (Foto: Adobe Stock)
Foto: Adobe Stock SUS começa a treinar equipes multidisciplinares para novo protocolo de cuidados paliativos na rede pública de saúde

O objetivo é implantar 1.300 equipes de cuidados paliativos em todo o País. Os estados deverão solicitar as equipes matriciais e os municípios, as equipes assistenciais. De acordo com Mariana Borges, não há um prazo máximo para que a política seja completamente implementada no Brasil.

“Será um processo gradual. Cada estado e município aderirá à medida que tiver condições e quando identificar as equipes adequadas. Temos informações de que 14 estados já manifestaram interesse e estão se preparando para a implementação”, declarou.

No Ceará, estão previstas 22 equipes matriciais e 31 assistenciais. De acordo com a Secretaria de Saúde do Estado (Sesa), o Governo já realiza planejamento junto à União para definição das equipes e quais hospitais receberam a ação.

No Brasil, de acordo com o Ministério da Saúde, estima-se que cerca de 625 mil pessoas necessitem da abordagem. Contudo, o acesso aos serviços de cuidados paliativos, para pacientes e familiares, muitas vezes ainda é limitado.

 

 

Quem precisa de cuidados paliativos

 

Os cuidados paliativos são focados em aliviar o sofrimento, conforme define Carla Bezerra, coordenadora da equipe de Cuidados Paliativos do Hospital Geral Waldemar Alcântara (HGWA), de Fortaleza.

“Cuidamos do alívio da dor, do controle de sintomas e da promoção da qualidade de vida para qualquer pessoa que enfrente uma doença ameaçadora à vida, incurável ou que cause grande sofrimento. Isso inclui crianças, adultos e idosos”, pontua a médica.

Princípios dos cuidados paliativos

 

Conforme a especialista, os casos mais comuns incluem o acompanhamento de pessoas que sofreram acidentes vasculares encefálicos (AVCs), cânceres, demências avançadas, bem como quadros avançados de doenças renais, pulmonares, insuficiência cardíaca e diabetes.

“Elas não implicam necessariamente em óbito do paciente, que pode viver muitos e muitos anos. O ideal é cuidar dele desde o momento em que se descobre a condição ameaçadora, para aliviar os sintomas, o sofrimento e garantir qualidade de vida durante todo o processo, inclusive durante a morte. Não existe essa ideia de que não há mais nada a fazer, há muito o que fazer”, diz Carla Bezerra.

O tratamento é bem amplo, por isso, uma equipe de cuidados paliativos é composta por diversos profissionais que auxiliam no controle dos sintomas:

 

 

O peso psicológico para quem cuida da família

 

Uma doença grave afeta não apenas a pessoa que está doente. Reverbera ainda naqueles que fornecem amor e cuidado ao paciente.

A costureira Régia Maria, 55, por exemplo, cuidou de familiares em situações críticas de saúde. Em 2018, sua irmã mais velha, Raimunda, viveu um surto psicótico.

“Ela ficava estática, não falava e parecia que não conhecia ninguém da família. No hospital, apontaram que realmente era uma questão mental. Então nós a trouxemos para casa, nós a acompanhamos com medicação, mas ela nunca mais foi a mesma”, conta.

Régia chegou a deixar o trabalho presencial para acompanhá-la, já que Raimunda passou a necessitar de ajuda para realizar tarefas simples, como caminhar e tomar banho. A irmã, contudo, faleceu após um mal súbito pouco tempo depois.

Antes mesmo do óbito de Raimunda, a família também lutava contra o grave caso de diabetes de Raimundo, o irmão mais novo. “Eu e minha mãe passamos 10 anos lutando com ele. Era uma luta constante. Sua glicemia caía drasticamente e frequentemente íamos ao hospital”, conta Régia.

Régia Maria ao lado do irmão, Raimundo(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Régia Maria ao lado do irmão, Raimundo

Em 2019, ele teve uma infecção generalizada, comum em casos de diabetes. “Ele foi internado no hospital, fazia hemodiálise e chegou a tomar mais de cinco antibióticos, mas não estava respondendo. Um dia, a médica falou com a gente, na frente do meu irmão, inclusive, que ele estava apenas nas mãos de Deus”, conforme Régia. Segundo ela, a afirmação mexeu com o psicológico do irmão e pode ter acelerado a piora de saúde dele.

“Eu acho que os médicos não devem esconder nada dos familiares. Mas, pelo menos, analisar a situação e chamar o acompanhante familiar reservado para conversar”, pontua a irmã. Após duas paradas cardíacas, Raimundo Nonato faleceu aos 48 anos.

Com a morte de Raimundo, Régia voltou a morar perto da mãe, Maria André, de 75 anos. Em 2020, a idosa teve um acidente doméstico e fraturou o fêmur, passando a requerer cuidados intensivos em casa. Em 2021, foi hospitalizada novamente devido a dores intensas na perna. Os médicos, contudo, disseram à família que não havia mais o que fazer, apenas aliviar as dores.

Apesar do sofrimento, Dona Maria André faleceu tranquilamente no hospital, quando, ao lado do leito, louvores religiosos entoavam de um pequeno rádio. “Nunca chorei na frente da minha mãe. Sempre mantive a força para ela durante o tratamento. Quando eu chegava em casa, chorava escondido”, diz Régia. Ele conta que não chegou a receber acolhimento psicológico em nenhuma das internações dos familiares.

Diante das experiências, Régia ensina. “Até hoje, anos depois, acho que os médicos precisam ser mais capacitados para comunicar notícias difíceis, como no caso do meu irmão. Precisamos de mais empatia”.

 

 

Cuidados paliativos a quem cuida

 

Os corretos cuidados paliativos consideram os familiares parte fundamental de acompanhamento, explica a psicóloga clínica e paliativista Júlia Shioga. “Tais intervenções vão desde escuta, acolhimento, apoio psicológico e psicoeducação sobre cada detalhe do acompanhamento”, diz.

De acordo com Júlia, a equipe especializada também pode atuar em desmistificar crenças de familiares e pacientes. Isso inclui esclarecer que a abordagem não tem relação com a eutanásia, um mito comum, mas favorece encarar a vida e a morte como um processo natural, sem a acelerar ou retardar.

A psicóloga critica a prática atual na área da Saúde de, em geral, iniciar os cuidados paliativos apenas quando os pacientes já não se beneficiam de tratamentos curativos. “Isso cria a crença de que os cuidados paliativos são buscados apenas quando não existe mais nada a fazer pelo paciente”, ressalta.

Para pacientes com condições permanentes, como a paralisia cerebral, os cuidados paliativos são extremamente valiosos. Quando iniciados cedo, podem ajudar a amenizar problemas decorrentes da mobilidade reduzida de crianças e aliviar a carga emocional e psicológica dos pais.

Francisco Henrik, um menino de 13 anos com paralisia cerebral, recebe cuidados paliativos desde o nascimento. A mãe, Francisca Janerana, 35, relata complicações no parto, que precederam o diagnóstico e um período difícil de constantes idas e vindas ao hospital.

Francisco Henrik passa por cuidados paliativos desde que foi diagnosticado com paralisia cerebral (Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Francisco Henrik passa por cuidados paliativos desde que foi diagnosticado com paralisia cerebral

Ao longo dos anos, Henrik enfrentou muitos episódios de pneumonia, frequentemente resultantes de broncoaspiração, a aspiração de conteúdo do estômago para o interior das vias respiratórias. “Quando ele tinha 5 anos, foi necessário colocar uma sonda para facilitar sua alimentação. Foi uma questão de adaptação, tanto para ele quanto para nós”, relata a mãe.

Henrik é tratado principalmente em casa. Francisca cuida dele em tempo integral, enquanto também cuida de seus outros dois filhos, de 11 e 9 anos, com o auxílio da avó das crianças. Mesmo sem se comunicar através da fala, Henrik tem uma relação forte com sua família. “Ele sente nosso amor, e nós sentimos o dele”, diz Francisca.

Unidades hospitalares com serviço de cuidados paliativos

 

Em janeiro, Henrik voltou a registrar pneumonia e deu entrada no Hospital Geral Waldemar Alcântara (HGWA). A mãe do garoto destaca o suporte que recebe da equipe de cuidados paliativos da unidade, que oferece orientação e apoio emocional contínuo.

“Além do tratamento, eles sempre estão dispostos a conversar e explicar tudo. Isso é essencial para mães como eu, que muitas vezes não sabem como lidar com certas situações. Os psicólogos nos preparam até mesmo para a possibilidade de ele precisar de uma traqueostomia [procedimento cirúrgico, no qual é feito uma abertura frontal na traqueia do paciente para levar o ar até os pulmões], aceitar o que for necessário para o bem-estar dele. Estamos sempre nos preparando para o futuro.

Distribuição dos cuidados paliativos nas rede saúde pública e privada

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