“É como se a sua vida parasse. As coisas acontecem aqui fora e você tá parado ali dentro. Não é lugar para ninguém.” Aos 57 anos, Fátima Costa* representa os poucos egressos do sistema penitenciário cearense que conseguiram se reinserir na sociedade por meio do trabalho.
De acordo com dados do Balanço Final de Monitoramento e Avaliação da SAP (Secretaria de Administração Penitenciária) referente a 2022, 749 egressos foram assistidos por medidas de empregabilidade, o que corresponde a apenas 10% do total de egressos no mesmo ano.
Os números contrastam com o percentual de aprisionados que trabalham dentro do sistema prisional (dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN) revelam que, em dezembro de 2023, 45% dos aprisionados em presídios cearenses realizavam atividades laborais), mas refletem o preconceito ainda vigente na sociedade.
Para a professora e pesquisadora do Laboratório de Estudo da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC), Jânia Aquino, a ressocialização é um desafio enorme no Brasil, tanto pelas falhas nas políticas afirmativas que empregam ex-detentos, como pelo estigma carregado pelos egressos do sistema penitenciário.
A diretora adjunta do Departamento de Proteção aos Grupos Vulneráveis da Polícia Civil do Ceará, delegada Ana Paula Barroso, ressalta que a carência de políticas públicas eficazes de reintegração dos ex-detentos no mercado de trabalho é um dos maiores entraves à absorção daqueles que retornam à liberdade, mesmo para os que trabalharam durante o cumprimento da pena.
Para ela, “não adianta a lei falar teoricamente da lógica da ressocialização” se, na prática, o sujeito não tem condições de retornar ao ambiente social, sendo necessário amparo estatal dentro e fora dos presídios.
A delegada menciona a Lei de Execução Penal (LEP) - Lei nº7.210/1984, sancionada há quase quatro décadas para regular o cumprimento de sentenças penais e seus objetivos. A LEP busca assegurar a dignidade e humanidade na execução da pena e também estabelece condições para a reintegração social para os egressos. Entretanto, ao longo desse extenso período, a legislação vem enfrentando problemas estruturais que afetam diretamente o sistema penitenciário.
A complexidade da questão é evidenciada pela massiva população carcerária brasileira. Conforme informações fornecidas pelo Relatório de Informações Penais da Senappen, em 2023, o Brasil mantinha sob custódia cerca de 642 mil pessoas, que se espremem nas 485 mil vagas disponíveis, um déficit alarmante de 157 mil vagas. Este número coloca o Brasil na terceira posição mundial entre os países com mais pessoas encarceradas.
A superlotação carcerária não é apenas uma estatística fria, mas um indicativo preocupante que lança luz sobre os desafios enfrentados pelo sistema prisional brasileiro. “Eu tirei cela com 68 pessoas e ela só tinha 3 beliches. Tínhamos que revezar para dormir”, relembra Carlos Silveira*, que viveu a realidade das Unidades Prisionais (UP) por aproximadamente seis anos. Preso por roubo em 2016, passou enormes reveses durante o período em que esteve encarcerado.
A sanção penal, especialmente a pena privativa de liberdade, visa reprimir, prevenir e ressocializar o infrator, orientando seu retorno à vida social. De acordo com Jânia Aquino, “o sistema prisional brasileiro tem muitos defeitos. As prisões cumprem o papel de punir, mas não cumprem os outros papéis para o qual são concebidas, que são fazer a correção da falta que levou a pessoa à prisão e o preparar para ser ressocializado”.
Após ser condenado e iniciar o cumprimento da pena em regime fechado, Carlos resignou-se ao cotidiano prisional. No início, buscou cultivar relações com a organização criminosa à qual era vinculado. Com acesso a celulares, mantinha-se conectado ao mundo externo e aplicava golpes de dentro da Unidade Prisional. Essa realidade o desmotivava a buscar as opções de trabalho oferecidas pelo sistema.
O primeiro contato de Carlos com a possibilidade de ressocialização ocorreu quando uma professora da Unidade Prisional lhe apresentou os programas de remição de pena. Inicialmente relutante a uma possível ressocialização, o hoje egresso possuía outras perspectivas em relação a sala de aula: “eu fui no impulso, para não estar na cela. E também para conhecer lá, ver como eram as facilidades, como botar as coisas para dentro, como fugir… Meu pensamento não era ‘eu vou estudar e diminuir minha pena’ era mais: bora ali que eu vou me danar”.
Ao trocar a fuga por remições na pena, obtidas por meio de estudos e leituras, Carlos percebeu que a ressocialização depende mais do próprio esforço do que das ações da administração penitenciária. Convivendo diariamente com os maus tratos, observou nas limitadas vagas de emprego uma válvula de escape capaz de transformar sua realidade no cárcere.
Mesmo altamente concorridas entre os internos, as possibilidades de emprego e estudo nas Unidades Prisionais carregam estigmas entre os próprios internos. Dentro da penitenciária, a proximidade aos agentes penais causa desconfiança. Carlos relata que “[o trabalho] era muito mal visto. Porque os caras entravam nisso para se infiltrar [no meio dos agentes] e saber o que estava acontecendo dentro da cadeia. Aí tinha gente que não queria trabalhar porque não queria se misturar com os caguetas (delatores)”.
Depois de circular por diversas Unidades Prisionais, Carlos foi transferido para a até então recém inaugurada Unidade Prisional de Ensino, Capacitação e Trabalho (UPECT), em Itaitinga, na Região Metropolitana de Fortaleza. Ao chegar à nova unidade e receber conselhos da família, enxergou nas oportunidades de trabalho uma porta de saída da criminalidade.
Determinado, Carlos candidatou-se às vagas disponíveis na nova unidade e assim conquistou um emprego interno na UP. “Procurei [ingressar no trabalho] para ajudar com as despesas das visitas, o que lucrei foi o que recebi para minha família”, recorda.
O desejo de sair do cárcere e viver uma nova vida, ao lado de seus familiares, é um ponto que une todas as histórias desta reportagem. “Ninguém se levanta só”, é o que afirma a delegada Ana Paula Barroso, que acrescenta: “eu preciso que alguém pegue na minha mão, seja minha família, seja o Estado, seja alguém que acredite”. Ela destaca que o sujeito precisa querer a mudança, mas reforça a responsabilidade coletiva no processo da ressocialização. Se a família e a sociedade não corresponderem ao esforço pessoal de mudança dele, a reintegração não ocorrerá.
O apoio à família é uma das motivações que levam o apenado a buscar oportunidades de trabalho dentro do sistema. Aqueles que trabalham para as empresas instaladas através do programa ‘Cadeias Produtivas’, como foi o caso de Carlos, recebem 75% do salário mínimo (R$1.059). Metade desse valor é repassado para a família, 25% retorna ao Estado para ser revertido em melhorias no sistema prisional, o restante fica depositado em uma poupança, e só pode ser acessada após o apenado sair em liberdade. Além da remuneração, o aprisionado tem direito, conforme estabelecido pela LEP, de diminuir um dia da sua pena a cada três dias trabalhados.
No entanto, a maior parte dos trabalhos ofertados no cárcere não prevê remuneração, como é o caso de serviços relacionados à manutenção e apoio interno do sistema. Nessa modalidade, o único benefício que o aprisionado recebe é a remição de pena. “Não é muito interessante não, mas se fosse pra ajudar [financeiramente] minha família, eu ia toda hora”, é o que afirma Paulo Mota*, que cumpriu pena em regime fechado na Unidade Prisional Professor Olavo Oliveira II (UPPOO II). Paulo sugere que a melhor forma de retirar o sujeito do crime é mostrando que, através do trabalho, ele pode sustentar a si mesmo e à sua família. “É isso que eles [Estado] têm que mostrar, que eles [internos] trabalhando, eles conseguem levantar um dinheiro e sustentar sua família, e fazer por onde.”
Para a professora Jânia Aquino, o maior desafio do Estado é oferecer ao aprisionado a assistência para que ele não precise recorrer às organizações criminosas. Segundo ela, as facções acabam funcionando como uma espécie de previdência social do crime, chegando a oferecer assistência jurídica e auxiliando os familiares de seus membros.
Através de seu relato, Paulo confirma a alegação da professora Jânia referente ao papel desempenhado pelas facções nas penitenciárias: “eles dão uma força para o cara, se o cara precisar de um advogado, [é] uma boa. É por isso que existem as facções, os caras ajudam às vezes, querendo ou não, o crime [ajuda], tá entendendo?”
Paulo não nutre uma visão positiva sobre o crime, e entende que o caminho que escolheu causa dor e sofrimento a si e aos seus familiares: “é um dinheiro amaldiçoado, que custa a sua liberdade. E a saudade dói mais que um tiro. Eu preferia levar um tiro do que perder a minha liberdade e o convívio com meu filho. Na cadeia você se sente inútil, sem poder mandar dinheiro para ajudar a família, é ruim demais. As pessoas têm dificuldade para poder ver o filho, passando fome e opressão na porta da cadeia. Cruel.”
Segundo informações da SAP, cerca de 500 pessoas privadas de liberdade trabalham atualmente nas empresas instaladas no âmbito do projeto ‘Cadeias Produtivas’. A iniciativa visa oferecer espaço para empresários instalarem suas fábricas nas unidades prisionais do estado. As empresas, além de não pagarem pelo uso do local, são isentas de quaisquer encargos trabalhistas, uma vez que o trabalho do apenado não está sujeito ao regime da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). O Estado garante ainda a alimentação desses trabalhadores, um custo a menos para as empresas.
Além desses fatores, são vantagens competitivas do programa a elevada produtividade decorrente da ausência de fontes de distração, como smartphones e redes sociais, e a baixa remuneração da mão de obra. “O piso da costura hoje é em torno de R$ 2.100. Então, se eu tenho uma empresa, eu vou pagar para essa costureira R$ 2.100, isso os salários e os encargos trabalhistas. Só na unidade prisional, [esse salário] é R$ 980”, garante Alexandre Pirajá, coordenador adjunto da Coordenadoria de Inclusão Social do Preso e do Egresso da Secretaria da Administração Penitenciária do Estado do Ceará (Coispe).
Mas o projeto, que já está rendendo frutos, ainda engatinha. Segundo informações da Coispe, dos sete espaços aptos para receberem empresas, na Unidade Prisional de Ensino Capacitação e Trabalho (UPECT), cinco ainda estão vagos. O titular da SAP, Mauro Albuquerque, vem recepcionando comitivas de empresários em visitas às penitenciárias. O secretário apresenta o dia a dia das empresas que operam sob o projeto ‘Cadeias Produtivas’, além de mostrar as transformações que ocorreram no sistema penitenciário, tornando o programa mais atrativo para as empresas.
De acordo com o empresário Wilson Júnior, proprietário da W. J. Gráfica e Costura, que emprega cerca de 80 internos na UPECT, a principal mudança foi na questão da segurança. Ele, que desde 2015 já contemplava a possibilidade de instalar sua empresa no sistema prisional, chegou a visitar algumas penitenciárias, mas destaca: “naquele momento, era um ambiente muito pesado”. Segundo ele, hoje o sistema está mais seguro para os empresários interessados em explorar a mão de obra dos aprisionados.
Alexandre Pirajá reforça o papel do Estado no esforço de retomada do controle dos presídios das mãos do crime organizado. Segundo ele, este fato possibilitou a ampliação dos programas voltados para a ressocialização. “A partir do momento em que o Estado retomou o controle, começaram as assistências: saúde, educação, capacitação e trabalho, e o ambiente ficou estabilizado para a segurança.”
Carlos, que vivenciou o sistema penitenciário ao longo de todo esse período, reconhece que as oportunidades de estudo e trabalho foram propiciadas pela estabilização dos presídios, com as sucessivas ações da Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária (FTIP) e a atuação da nova gestão da SAP. Apesar disso, ele guarda dolorosas lembranças desse período, e mostra, nos dedos das mãos, as cicatrizes das inúmeras situações de violência que afirma ter sofrido no cárcere.
Quando chegou à CPPL V, o acesso facilitado a drogas e aparelhos eletrônicos ainda fazia parte do cotidiano da prisão. Carlos relata que a possibilidade de conseguir dinheiro através de formas ilícitas - aplicando golpes pelo telefone ou traficando drogas dentro da penitenciária - era a principal razão pela qual os aprisionados nutriam pouco ou nenhum interesse pelas atividades de educação e trabalho.
Esse cenário foi alterado radicalmente com o recolhimento dos aparelhos eletrônicos e a restrição dos bens que o interno poderia manter consigo. Segundo Alexandre Pirajá, essa foi a mudança-chave que acarretou em um maior engajamento dos internos nos programas da Coispe. Carlos concorda, mas pontua que esse processo cobrou seu preço, tanto dos internos, quanto de suas famílias. Segundo ele, as visitas foram severamente diminuídas para evitar a entrada de drogas e celulares, e os internos tiveram colchões e roupas recolhidos.
Paradoxalmente, foi através da internet que Carlos conheceu a mulher que viria a ser sua esposa. “Vou estar com você”, foi o que ele ouviu ao explicar a delicada situação em que se encontrava. Àquela altura, ele ainda tinha cerca de 7 anos de pena em regime fechado para cumprir. A determinação de sua companheira e os conselhos de sua mãe foram decisivos para que ele escolhesse aproveitar as escassas oportunidades que lhe eram oferecidas.
A história de Carlos ilustra uma grande contradição do processo de ressocialização nas penitenciárias do estado. Ao passo que os programas de emprego e renda lhe garantiram uma porta de saída da criminalidade, o processo que os ensejou foi, segundo ele mesmo, extremamente truculento. “Eu nem me sentia preso”, ele revela, ao lembrar das horas que passava operando as máquinas no galpão em que trabalhava, mas acrescenta: “a opressão era a mesma depois que nós saíamos da empresa e voltávamos para a cela”.
Mesmo aproveitando a oportunidade oferecida pelo Estado, Carlos entende que a responsabilidade pela sua ressocialização partiu de seu próprio desejo de mudança. “Ninguém é ressocializado na tábua. Eu pensei ‘não é por eles [direção e agentes] que vou ser ressocializado. Eu vou correr atrás, não vou deixar minha mente ocupada pensando besteira, assim comecei”, conta. Hoje, trabalhando como vendedor em uma floricultura, ele sente-se feliz por ter a oportunidade de reconstruir sua vida ao lado da família.
Os programas de reinserção de ex-detentos no mercado de trabalho, ainda que limitados em sua capacidade, têm mostrado evolução nos últimos três anos. Histórias como a de Fátima, que hoje trabalha de carteira assinada, e aproveita o tempo livre com os três filhos, ilustram o potencial transformador da ressocialização.
Ainda que representem, cada um à sua maneira, casos de sucesso, os personagens desta reportagem evidenciam um problema que persiste: a dificuldade que os egressos têm em se engajarem nas atividades para as quais foram capacitados no cárcere. Fátima, por exemplo, saiu em liberdade como artesã certificada, após passar pelo programa ‘Arte em Cadeia’, mas não exerce a profissão. Tiago, que trabalhou como costureiro na W. Jota por oito meses, em 2023, até chegou a exercer a função por um tempo, ao lado de sua irmã, mas hoje trabalha como gesseiro. Carlos, treinado para operar máquinas pesadas de corte, hoje vende flores.
A Coispe tenta contornar essa dificuldade através de um mecanismo, pelo qual o órgão contrata, sem vínculo trabalhista, os egressos interessados em entrar no mercado de trabalho. Eles são então empregados nas mais diversas funções dentro da pasta, desde o setor administrativo, registrando em planilhas os dados dos diferentes programas da Coordenadoria, até à função de vendedor, nas lojas do programa Arte em Cadeia, funcionando atualmente nos shoppings Benfica, RioMar Fortaleza e RioMar Kennedy.
A Coispe conta hoje com uma folha de cerca de 250 ex-detentos, que são encaminhados, conforme demanda, para os postos de trabalho previstos na lei de reserva de vagas. Os encaminhamentos ocorrem a partir da capacitação e do perfil do egresso considerado mais apto para preencher a vaga.
Michele Fernandes*, uma das 250 contempladas pelo programa, atua como vendedora da loja do ‘Arte em Cadeia’ no Shopping Benfica. Apesar de ter se interessado pelo artesanato ainda no cárcere, ela não teve a oportunidade de se engajar no projeto, pela capacidade limitada das oficinas que funcionam nos presídios. Hoje Michele demonstra orgulho ao trabalhar vendendo o artesanato produzido pelos outros apenados: “Cada peça tem uma história, tem uma pessoa, uma dificuldade. A gente não sabe o que eles passam lá dentro. Cada um que está lá tem o direito de acertar e construir uma nova história, como a gente está tentando fazer. E estamos fazendo!”.
Patrícia Costa, parceira de Michele nas vendas do ‘Arte em Cadeia’, entrou na penitenciária decidida que aquela seria a última vez. “Eu passei dois anos, pensei na minha vida, e botei na minha cabeça que eu queria mudar, que eu não queria mais aquela vida para mim. E eu vi que não valia a pena, aí eu fiquei no pensamento: vou querer terminar meus estudos, vou querer trabalhar, ser uma nova pessoa, e dar atenção para os meus filhos.” Para ela, as transformações no sistema penitenciário são evidentes: “antes não tinha muita oportunidade, agora que tá tendo. Agora tem vários cursos e é para todo mundo, é semiaberto, fechado, provisório”.
Dentro ou fora das penitenciárias, o trabalho se apresenta como a principal opção para os apenados decididos a buscarem uma nova vida. Além de promover a remição e, em casos específicos, o sustento da família, ele serve também como forma de ocupar a mente durante os dias de privação de liberdade. “Enquanto você está trabalhando, você não tem tempo de pensar muito. Você foca naquilo ali, e foi o que eu fiz: eu foquei no que eu queria, e no que eu estava fazendo”, conta Fátima, visivelmente emocionada, como quem mexe em uma ferida que ainda não cicatrizou por completo.
Ainda que dolorosas, as memórias do cárcere evocam uma lição, diferente na cabeça de cada um. Apesar de disposta a conversar sobre o passado, Fátima prefere olhar para frente: “passou, passou. É tipo a água: depois que passa, ela não volta. Então, para mim, é isso. Serviu como aprendizado, um grande aprendizado…”