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Fóruns da Deep Web voltados ao abuso e à tortura de crianças são alvos da PF
Reportagem Especial

Fóruns da Deep Web voltados ao abuso e à tortura de crianças são alvos da PF

Mídias registrando a prática conhecida como "hurtcore" atraem criminosos do mundo inteiro. Em março, brasileiro foi preso suspeito de criar e administrar site com essa temática

Fóruns da Deep Web voltados ao abuso e à tortura de crianças são alvos da PF

Mídias registrando a prática conhecida como "hurtcore" atraem criminosos do mundo inteiro. Em março, brasileiro foi preso suspeito de criar e administrar site com essa temática
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ALERTA! Este texto contém informações sensíveis com cenas de crueldade - estupro, tortura e morte - envolvendo crianças. 

Hurtcore é como ficou conhecida uma forma extrema de pornografia, caracterizada pelo registro em vídeos e imagens de atos de violência extrema — agressões, torturas e humilhações, etc.—, praticados sempre de forma não consensual.

É, sobretudo, na chamada Dark Web que esse tipo de material é compartilhado, aproveitando-se do anonimato garantido por programas específicos e pelo fato do conteúdo lá produzido não ser indexado por ferramentas comuns de busca na internet, como o Google.

Imagem Ilustrativa. Operação Dark Don deflagrada em marcos de 2024 pela PF alcançou Igor Fortes Machado, de 29 anos, fundador de fóruns de pedofilia na Deep Web(Foto: Adobe Stock)
Foto: Adobe Stock Imagem Ilustrativa. Operação Dark Don deflagrada em marcos de 2024 pela PF alcançou Igor Fortes Machado, de 29 anos, fundador de fóruns de pedofilia na Deep Web

Em todo o mundo, erigiram verdadeiras comunidades ou mesmo mercados destinados à produção e à distribuição desse tipo de material. Inclusive, no Brasil, como mostrou a operação Dark Don, deflagrada em março deste ano pela Polícia Federal (PF).

Na ação, foi preso Igor Fortes Machado, de 29 anos, apontado como fundador e administrador de dois fóruns (ou bate-papos) na Deep Web voltados ao compartilhamento de arquivos e relatos de atos de sadismo, praticados, especialmente, contra crianças.

O caso tramita em segredo de justiça, mas O POVO obteve documentos judiciais que ajudam a contar detalhes sobre os crimes praticados nos sites.

Imagem Ilustrativa. Conhecida como Dark Web, o ambiente da Deep Web se tornou propício para abrigar conteúdos criminosos porque são protegidos pelo anonimato (Foto: Adobe Stock)
Foto: Adobe Stock Imagem Ilustrativa. Conhecida como Dark Web, o ambiente da Deep Web se tornou propício para abrigar conteúdos criminosos porque são protegidos pelo anonimato

No “Hurtland” (Terra da Dor, na tradução do inglês) e no “Yomi-no-Kuni” (Terra dos Mortos, na tradução do japonês) eram compartilhados fotos e vídeos de “abuso sexual com o emprego de grave violência, tortura e crueldade contra menores impúberes”, diz uma das decisões que a reportagem teve acesso.

De acordo com a investigação da PF, os dois fóruns eram espaços bastante reservados: foram identificados 32 integrantes no HurtLand e 31 no Yomi-no-Kuni. Para ter acesso aos sites, era preciso compartilhar, pelo menos, dez arquivos de pornografia infantil, uma “medida de segurança”, conforme destacou a PF, a fim de evitar, sobretudo, infiltração policial.

Ainda de acordo com a investigação, somente de maio a julho de 2023, Igor publicou no HurtLand 337 mensagens, criando ainda 67 tópicos e publicando, ao menos, 142 arquivos de abuso sexual infantil.

A PF descreveu que os sites dispunham de uma estrutura hierarquicamente ordenada com super moderadores, moderadores, doadores e contribuintes. Com essa sistematização, também ficou caracterizado, de acordo com o entendimento da PF, o crime de constituição de organização criminosa.

Outros pontos de sofisticação destacados pela PF incluem menções feitas a um marketplace, existente nos próprios fóruns, para a compra e venda do conteúdo criminoso. Esse mercado era movimentado “aparentemente” por criptomoedas, que também seriam usadas em doações para a manutenção dos sites. Além disso, a PF afirmou que Igor destacou um programador para o desenvolvimento do sistema de seguranças dos ambientes.

Operação Dark Don prendeu homem apontado como criador e administrador de fórum na Dark Web em que mídias de abuso sexual e tortura contra crianças eram compartilhados(Foto: Divulgação/PF)
Foto: Divulgação/PF Operação Dark Don prendeu homem apontado como criador e administrador de fórum na Dark Web em que mídias de abuso sexual e tortura contra crianças eram compartilhados

As investigações da PF tiveram início após autoridades policiais do Reino Unido informarem que era do Brasil o IP de “Boss”, o nickname do proprietário e administrador do HurtLand — posteriormente, identificado como sendo Igor. O caso, então, passou a ser acompanhado pela Força Tarefa de Investigações na DarkWeb (FTDW) da PF, que, após autorização judicial, infiltrou agentes na comunidade.

Os investigadores constataram que Boss também era “Lúcifer”, usuário ativo no Yomi-no-Kuni — este site que foi o sucessor do HurtLand, conforme mensagem publicada naquele primeiro fórum convidando à migração para o segundo.

No Yomi-no-Kuni, Lúcifer publicou, de acordo com a PF, sete mensagens, que continham 15 mídias de abuso sexual infantojuvenil, isso em um período que vai de agosto de 2023 a janeiro de 2024.

 

Crueldades planejadas e incentivadas

 

Além de organização criminosa, Igor foi denunciado pelos crimes de incitação pública à prática do crime de estupro de vulnerável (artigos 286 e 217-A do Código Penal), venda ou exposição à venda de fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente (artigo 241 do Estatudo da Criança e do Adolescente), assim como disponibilização e divulgação, na rede mundial de computadores, de arquivos contendo pornografia e tortura infantojuvenil (artigo 241-A do Estatudo da Criança e do Adolescente).

Ele foi preso em 19 de março em Porto Alegre-RS. Na operação, os policiais cumpriram um mandado de prisão preventiva e quatro mandados de busca e apreensão. Igor foi denunciado pelo Ministério Público Federal (MPF) e é réu.

Pedidos de liberdade provisória foram negados tanto pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), quanto pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Imagem Ilustrativa. Crianças e adolescentes são os principais alvos de grupos criminosos na deep web(Foto: Adobe Stock)
Foto: Adobe Stock Imagem Ilustrativa. Crianças e adolescentes são os principais alvos de grupos criminosos na deep web

Não prosperaram argumentos apresentados pela defesa de Igor frisando que ele é réu primário e que tem endereço fixo e profissão lícita. Seus defensores ainda mencionavam o risco que Igor correria no sistema prisional, uma vez que é acusado de práticas repudiadas pelos próprios presos.

Entre os motivos que fizeram os magistrados negarem os pedidos estão a gravidade dos crimes, em tese, perpetrados e a necessidade de garantir a proteção de crianças que conviviam com ele.

Com fins de exemplificar esses riscos, os magistrados destacaram mensagens encontradas pela PF em que “Boss” incentiva um integrante do fórum a abusar sexualmente da própria filha, uma criança com síndrome de Down.

Outro momento em que o virtual serviu de combustível para o real ocorreu quando os foristas discutiram a criação de um grupo para encontros presenciais, ocasiões em que crianças seriam sodomizadas. Um local no interior de algum estado é sugerido para o encontro, uma forma de manter a “segurança” dos abusadores, conforme disseram.

Em outra mensagem transcrita pela PF, um usuário aparece afirmando que “se não for possível machucar ou matar uma criança, ele prefere alguma outra opção”. No tópico denominado “Grupo de orgias infantis e tortura de meninas”, esse mesmo membro afirmou que “adoraria arrancar um olho de uma garotinha viva ou fazê-la comer suas fezes”.

 

 

Daisy’s Destruction

 

Outro momento de mais puro sadismo foi a publicação da série de vídeos denominada “Daisy’s Destruction”. O vídeo mostra a tortura e o abuso sexual de crianças, crimes praticados nas Filipinas pelo australiano Peter Scully, que contou com a ajuda de cúmplices, as filipines Liezyl Margallo e Carme Ann Alvarez.

Os vídeos foram publicados no “No Limits Fun” (Diversão sem Limites, da tradução do inglês), site da Dark Web criado por Scully para a venda de mídias de abuso infantojuvenil.

Conforme a revista norte-americana Vice, no Daisy’s Destruction, uma bebê de 1 anos e 8 meses aparece sendo torturada e abusada sexualmente enquanto estava imobilizada. 

“O filme era vendido para pedófilos e entusiastas de hurtcore na dark web por $ 10 mil, até que Graham colocou as mãos nele e — em nome da liberdade, como ele diria depois — o postou no Hurt2theCore”, relatou a Vice, referindo-se ao australiano Matthew Graham, o responsável por popularizar o vídeo ao postá-lo no mais notório fórum de hurtcore da Dark Web.

“Venha ver a ruína mental de uma criança…”, anunciava a introdução do filme, conforme exibido, de maneira censurada, pelo programa de televisão 60 Minutes Australia e traduzido livremente do inglês por O POVO.

“Sua inocência perdida... Usada como um brinquedo... Ela aprenderá como obedecer seu mestre... Seu corpo será devastado... Sua dignidade roubada... Sem ajuda... Ela será enforcada para a sua diversão…”, prosseguia a introdução.

“A mídia (Daisy’s Destruction) gerou bastante repercussão entre os membros de ambos os fóruns (Hurtland e o Yomi-no-Kuni), que manifestaram vontade de produzir uma regravação, ou remake, do vídeo, valendo-se de criança diversa, porém, retratando sua morte ao final”, consta em documento judicial referente à operação Dark Don.

Imagem Ilustrativa. De acordo com a PF, as negociações das crueldades envolvendo crianças na Deep Web são feitas com Bitcoins (Foto: Adobe Stock)
Foto: Adobe Stock Imagem Ilustrativa. De acordo com a PF, as negociações das crueldades envolvendo crianças na Deep Web são feitas com Bitcoins

 Ao todo, três crianças violentadas no Daisy’s Destruction foram identificadas. Uma delas viria a ser morta enforcada por Scully, que, antes, havia mandado a vítima cavar a própria cova, mostrou o 60 Minutes Australia.

Scully foi preso pela polícia filipina em 2015. Em 2018, ele foi condenado à prisão perpétua. As investigações, realizadas com cooperação internacional, apontaram que o australiano pedia que suas cúmplices abordassem pessoas em situação de vulnerabilidade para que estas entregassem suas crianças. A promessa era de que as meninas seriam criadas e educadas por Sculy.

Um brasileiro, o médico mineiro Haniel Caetano de Oliveira, foi identificado como uma das pessoas que pagou para ver o Daisy’s Destruction. De acordo com a PF, ele ainda teria orientado o australiano sobre medicações a serem usadas para dopar as vítimas. Em 2016, Haniel foi condenado a 20 anos de prisão.

Graham, por sua vez, foi preso em 2014 e sentenciado a 15 anos de prisão. O Hurt2theCore foi derrubado, mas, em seu lugar, surgiram outros espaços virtuais em que criminosos do mundo inteiro compartilham o sofrimento documentado de suas vítimas.

Já no Brasil, Igor aguarda julgamento. Tanto a PF, quanto o MPF não concederam entrevistas solicitadas por O POVO com o intuito de saber, entre outros, se outros suspeitos de integrar o Hurtland e o Yomi-no-Kuni foram presos.

A PF afirmou não se manifestar sobre investigações em andamento e o MPF disse que não poderia repassar informações devido ao segredo de justiça. Já a Defensoria Pública da União, que representa Igor, não comenta casos sigilosos.

 

 

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