Logo O POVO+
Borderline: para além do diagnóstico
Reportagem Especial

Borderline: para além do diagnóstico

Pouco discutido e pouco compreendido, o Transtorno de Personalidade de Borderline atinge milhões de pessoas no Brasil. Diagnóstico e tratamento adequados são fundamentais para uma vida com qualidade

Borderline: para além do diagnóstico

Pouco discutido e pouco compreendido, o Transtorno de Personalidade de Borderline atinge milhões de pessoas no Brasil. Diagnóstico e tratamento adequados são fundamentais para uma vida com qualidade
Tipo Notícia Por

 

 

Diagnosticada com Transtorno de Personalidade de Borderline (TPB) e enviada para um hospital psiquiátrico, Susanna Kaysen se vê explorando suas experiências e interações com outros pacientes e com equipe médica, além de refletir sobre questões de saúde mental, identidade e autoaceitação.

Essa é a premissa de Garota, interrompida, filme de 1999 estrelado por Winona Ryder e dirigido por James Mangold, baseado no livro de memórias de Susanna Kaysen. Na trama, a personagem principal conhece outra paciente, Lisa Rowe (Angelina Jolie), que se recusa a fazer o tratamento e a incentiva a ter os comportamentos violentos e autodestrutivos.

Cartaz de divulgação do filme Garota, Interrompida, com Winona Ryder e Angelina Jolie(Foto: Reprodução Wikipédia)
Foto: Reprodução Wikipédia Cartaz de divulgação do filme Garota, Interrompida, com Winona Ryder e Angelina Jolie

A obra se tornou uma das mais famosas, e bem recebida pela crítica, concedendo a Angelina Jolie o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante no ano seguinte. O segredo? Um enredo que abordava uma condição em um contexto em que a mídia não dava espaço para isso.

O termo “borderline”, que em inglês significa “fronteiriço”, teve origem na psicanálise. O primeiro autor a usar a palavra foi o psicanalista norte-americano Adolph Stern, em 1938, que descreveu o transtorno como um tipo de “hemorragia psíquica” diante das frustrações.

Caracterizado como uma condição em que uma pessoa desenvolve determinados traços de personalidade e padrões de comportamento que geram problemas nos relacionamentos, o Transtorno da Personalidade Borderline (TPB) normalmente se manifesta na adolescência e o início da vida adulta.

Segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), só em 2022 estimava-se que existissem cerca de 2 milhões de padecentes de transtorno de personalidade borderline no Brasil, o que faz com que esse seja um transtorno muito comum, embora ainda pouco falado e compreendido.

Os comportamentos variam desde uma alegria contagiante que se transformar em uma tristeza profunda, ao amor intenso que vira um ódio veemente, onde o sentimento sai de controle e se traduz em gritos, palavrões e até socos. E então, a culpa, entrelaçada com o medo do abandono, começa a tomar as rédeas da situação.

Dados da Associação Brasileira de Psiquiatria mostram que só em 2022 estimava-se era de cerca de 2 milhões de pacientes de transtorno de personalidade borderline no Brasil(Foto: Sensvector / Adobestock)
Foto: Sensvector / Adobestock Dados da Associação Brasileira de Psiquiatria mostram que só em 2022 estimava-se era de cerca de 2 milhões de pacientes de transtorno de personalidade borderline no Brasil

Mara Crisóstomo, psiquiatra e mestre em psiquiatria pela USP, explica que comportamentos de pessoas que sofrem a síndrome de borderline  podem ocasionar sofrimento para a própria pessoa e para quem convive com ela.

“Um indivíduo com esse transtorno tem um comportamento caracterizado por uma instabilidade emocional, relacionamento afetivos conflituosos, sentimentos de abandono, sensação crônica de vazio, comportamentos impulsivos - como impulsividade para compra e comida -, automutilação, ideação suicida recorrente e ataques de raiva” pontua.

Ela esclarece que o diagnóstico é clínico, feita por entrevista médica - anamnese - além do exame do estado mental e psíquico. “Sem o tratamento adequado, a pessoa apresenta bastante prejuízo nas interações interpessoais, acadêmicas, profissional, entre outros”, finaliza.

 

 

A vida após o diagnóstico

Natural de Fortaleza, Luciana de Sousa atua como psicologa, e durante sua formação ela foi se deparando e estudando diversos temas relacionados a transtornos de personalidade, e sempre quando dava uma pincelada no assunto borderline, um leve desconforto surgia, e logo ela queria sair de lá.

O sentimento de que poderia se enquadrar tomava conta de seus pensamentos, mas a negação surgia na mesma velocidade que eles. A certeza veio somente aos 40 anos, em uma consulta com a sua penúltima psicóloga, que foi mostrando a ela sutilmente cada critério, e a partir disso, com outra visão, reconheceu ser uma pessoa borderline.

Luciana de Sousa, psicóloga e borderline(Foto: Acervo Pessoal )
Foto: Acervo Pessoal Luciana de Sousa, psicóloga e borderline

“Foi um processo difícil, nada fácil. Tentei adormecer essa nova realidade, porém comecei a fazer algumas revisões do meu passado e presente, e com o despertar, fui me acolhendo aos pouquinhos” relata Luciana.

A psicologa afirma que com a impulsividade que o TPB traz, isso fez com que ela se movesse com mais velocidade, entrando de cabeça nos projetos profissionais e nos estudos, utilizados na sua profissão para ajudar outras pessoas.

“Após tudo isso, eu pensei, já que tenho, que sou, que essa é minha forma de ser, e que também sou psicóloga, vou me aprofundar em TPB para me ajudar e ajudar outras pessoas que estão passando por esse processo de descoberta, aceitação e dificuldades com as comorbidades, como depressão, ansiedade, e oscilações de humor”, relembra.

Karla Mota, também psicóloga e que se aprofunda em temas relacionados ao TPB, explica que o acompanhamento fará com que o paciente aprenda a conhecer suas emoções e como lidar com os momentos de crises, para assim conseguir conciliar a vida da melhor maneira possível.

“Quando a gente traz esse estigma muito forte, desenvolve nas pessoas um medo de se aproximar dos border, fazendo com que eles se “escondam”, dificultando o tratamento e levando a uma subnotificação dos casos, porque eles tem receio de falar que são, serem excluídos e sofrer preconceito”, afirma a especialista.

A psiquiatra Mara Crisóstomo alerta que, sem o tratamento adequado, a pessoa terá prejuízo nas interações interpessoais, acadêmicas, profissional, entre outros(Foto: lkeskinen / Adobestock)
Foto: lkeskinen / Adobestock A psiquiatra Mara Crisóstomo alerta que, sem o tratamento adequado, a pessoa terá prejuízo nas interações interpessoais, acadêmicas, profissional, entre outros

Fazendo terapia semanalmente e tendo acompanhamento psiquiátrico, Luciana busca sempre se organizar e reorganizar, tentando colocar em prática a inteligência emocional, entre o equilibro da razão e da emoção. Para ela, saber o que você tem e os porquês de você agir de tal maneira, é o melhor processo de cura.

“Em muitos borderlines, a necessidade de se expressar é tão grande que acabam atuando, sendo músicos e também escritores, uma forma de colocar para fora o que sentem de maneira extrema e intensa. Meu início na escrita foi uma forma de colocar para fora o que não conseguia falar, e hoje é minha maior forma de expressão,” finaliza.

 

 

O Borderline em meio a uma rotina agitada

Diagnosticada logo depois dos 18 anos, após anos de tratamento para uma depressão que não tinha um resultado esperado devido às estabilidades do humor, Maria Barbosa - nome fictício - não tinha nenhum conhecimento sobre o que era TPB. Apesar disso, naquele momento muitas coisas passaram a fazer sentido em sua vida, desde os seus comportamentos, até às lembranças do seu passado.

Hoje, com 22 anos, Maria está cursando jornalismo e trabalhando. Em meio a isso, ela segue fazendo tratamento com psiquiatra e psicólogo, sempre voltado para ferramentas que podem ser utilizadas no dia a dia para que isso não afete a sua vida cotidiana. Esse processo, a fez perceber os seus limites, gatilhos, estresses e momentos que podem desencadear uma crise.

“Quando se tem o diagnóstico, a gente fica muito consciente de todas as nossas ações. Então, a gente consegue trabalhar bem essa questão do humor, ajudando para que você não deixe isso te afetar de uma maneira debilitante e para que você possa viver uma vida plena e não se deixar afetar pelas relações pessoais”, afirma Maria.

Psicóloga Sayonara de Freitas Lima   (Foto: Acervo Pessoal )
Foto: Acervo Pessoal Psicóloga Sayonara de Freitas Lima

“O diagnóstico não é uma sentença, mas ele é uma possibilidade de um olhar para um tratamento específico. Isso é importante para melhorar a qualidade de vida dessa pessoa”, destaca a psicóloga Sayonara de Freitas. Ela explica que os obstáculos são mais agravantes para as pessoas que não tem acesso a um tratamento adequado. “Infelizmente essa pessoa se torna muito mais vulnerável, ela está muito mais suscetível a passar por crises recorrentes, a ter mais comportamentos de alto mutilação e de alto lesão, além de uma maior incidência de suicídio”, ressalta.

A profissional descreve que os cuidados das pessoas com TPB precisam ir, desde a permanência de um acompanhamento adequado - a psicoterapia -, até o uso de medicação, com uma rotina regular de atividades física, boa alimentação e um qualidade de sono. “Esses são os pontos principais, mas o processo de psicoeducação com a família e com os seus afetos para que essas possam ser amparadas. Esse núcleo tem que ter esse olhar, ficar atento e entender como funciona essa pessoa com esses traços. Infelizmente, na maioria das vezes elas não são acolhidas”, explica a psicóloga.

Maria Barbosa relata que o fato de ter TPB não é algo para ser debilitante na sua vida, e que existem formas de lidar com isso. “Além do nosso autocuidado, as pessoas ao seu redor, as mais íntimas, também precisam entender, de certa forma, que você não funciona como uma pessoa "normal" e, às vezes, o que pode ser simples para outras pessoas não é para você”.

A graduanda de jornalismo explica que o borderline é muito confundido com bipolaridade e que conhece muitas pessoas que já tiveram esse engano no diagnóstico, ocasionando muitas dificuldades ao longo do tratamento e da identificação. “Acho que quanto mais as pessoas tiverem conscientização e souberem que é possível ter uma vida plena, mesmo com transtorno, elas vão poder ter acesso a isso de maneira facilitada. Na internet existem muitas comunidades onde você consegue aprender sobre e também encontrar pessoas que convivem com isso”, finaliza.

 O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais identifica o TPB como um padrão difuso de instabilidade das relações interpessoais, da autoimagem, dos afetos e de impulsividade acentuada, explica a psicóloga Sayonara de Freitas(Foto: VectorMine / Adobestock)
Foto: VectorMine / Adobestock O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais identifica o TPB como um padrão difuso de instabilidade das relações interpessoais, da autoimagem, dos afetos e de impulsividade acentuada, explica a psicóloga Sayonara de Freitas

A psicóloga Sayonara de Freitas vivencia essa realidade com os seus pacientes e o debate sobre essa confusão de qual é o transtorno. “Às vezes tem essa confusão com a bipolaridade, mas é nítido as variações e mudanças de humor dentro do transtorno da personalidade borderline. E nesse sentido, as emoções, de forma intensa, acontecem durante um único dia, fazendo com que essa pessoa passe por diversas ondulações de humor”, destaca.

“Muitas vezes as pessoas que estão nesse processo de autocuidado, pioraram muito por conta dos estigmas e dos preconceitos, e às vezes na própria família, dentro do próprio ambiente de trabalho, e na rotina cotidiana. Então, esses fatores levam ao aprofundamento do adoecimento e eles acabam se distanciando do convívio social”, finaliza a especialista.

A conscientização sobre o Transtorno de Personalidade Borderline é crucial para promover compreensão e empatia. Isso ajuda a reduzir o estigma, oferecendo o suporte adequado e a melhora na qualidade de vida das pessoas afetadas, além de promover um ambiente mais inclusivo e compreensivo.

 

Traços que podem ajudar no diagnóstico do Transtorno de Personalidade de Borderline


 

O que você achou desse conteúdo?