De 2019 até 1º de outubro de 2024, 529 crianças e adolescentes foram adotados no estado do Ceará, segundo dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), criado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Uma dessas crianças adotadas nos últimos anos, em Fortaleza, foi a Eloá, de oito anos. O casal de comerciantes Rozenilda, 57, e Maurílio Lima, 64, sempre sonharam em ter filhos e, como não foi possível biologicamente, Eloá veio por meio da adoção. "Confesso que o amor e tão grande que não dá para mensurar", diz a mãe.
Entre as dúvidas do casal estavam a aceitação, por parte da criança, e como responder algumas dúvidas que a filha poderia ter sobre seu passado. Mas decidiram seguir com o processo e optaram por sempre falar a verdade para Eloá. A tática tem dado certo.
O processo todo durou exatos cinco anos, iniciando na entrega dos documentos dos pais até poderem registrar a filha. O primeiro ano foi entre o fornecimento da documentação até a entrada oficial no SNA.
Depois mais três anos para serem vinculados, seguido de mais um ano para incluir a vinculação, depois a guarda provisória, até sair oficialmente a autorização para fazerem a nova certidão.
"A Organização Não Governamental Acalanto Fortaleza nos auxiliou de forma muito positiva, nos passando algumas informações essenciais que antes nós não tínhamos. Participamos dos encontros mensais para tirar dúvidas, além da trocas de experiências com outros pais", revela a mãe.
O primeiro contato entre Eloá e os futuros pais foi na sala de encontro da família acolhedora, da Secretaria Municipal dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS), no bairro Messejana. "Foi um momento maravilhoso, nos identificamos muito bem, porém bateu um friozinho na barriga", relembra Rozenilda.
Entre as dificuldades que encontraram no processo de adoção, fora o tempo longo de espera, estão as informações que, em sua opinião, não são muito claras. Mas quando receberam a notícia positiva, ficaram muito emocionados e com múltiplos sentimentos, com vontade de rir e chorar ao mesmo tempo. "Meu esposo olhou para mim e perguntou se iríamos dar conta", diz.
Sobre a adaptação de Eloá em casa ela disse ter sido muito rápida. O fato de ter estado com uma família acolhedora anteriormente ajudou muito nesse processo.
"Ela logo nos chamou de mãe e de pai. Foi a melhor decisão que tivemos na vida", conta. Para quem pensa em adotar, ela aconselha a não ter medo e não dar atenção para pessoas negativas e que se tornam má influências.
"Ouçam o coração de vocês, mesmo sendo uma adoção tardia, se houver amor, com certeza dá certo. Se é isso que você quer, independente de ser solteiro ou casado, junte os documentos necessários e vá ao setor de cadastro de sua cidade", aconselha.
Segundo o último levantamento do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), de julho deste ano, a Fila de Pretendentes à Adoção contava com 1.053 famílias, sendo 392 somente em Fortaleza. Atualmente, a expectativa de espera é de seis anos no Ceará e de quatro anos e sete meses em Fortaleza.
Além da Capital, as comarcas com maior número de pretendentes são Caucaia (48 pessoas), Juazeiro do Norte (48), Sobral (45), Tianguá (37) e Crato (28), Maracanaú (21), Barbalha (20), Iguatu (18), Eusébio (17) e Itapipoca (17). Dos 184 municípios do Ceará, 94 possuem fila de adoção. Se uma criança originária de um dos 90 municípios sem pretendentes for colocada para adoção, ela vai para o início da fila do Estado.
Por outro lado, segundo o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, do Conselho Nacional de Justiça, em 1º de outubro, 166 crianças e adolescentes buscavam uma família e estavam na fila para adoção no Ceará.
Lucas Azevedo, promotor de Justiça do MPCE e coordenador do Centro de Apoio Operacional da Infância e Juventude (CAOPIJ) informa que, em 2023, Fortaleza teve um avanço em relação aos processos de adoção com a implantação do Programa Municipal de Entrega Voluntária de Criança para Adoção, o Entrega Legal à Adoção.
Ele está vinculado à Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci) e é responsável por ações que assistem, acompanham e atendem gestantes e parturientes que desejam entregar a criança para adoção logo após o nascimento.
Tudo isso para garantir a ambos, mulher e bebê, tratamento humanitário e direitos fundamentais. O programa partiu de uma resolução do Conselho Nacional de Justiça, que detalhou como todo o procedimento deve ser feito.
“De 2016 para cá, poucas cidades no Brasil implementaram de fato esse procedimento. E Fortaleza foi uma delas, estando entre as que estão mais avançadas”, explica Azevedo, acrescentando que, no Ceará, a Capitaln é a única cidade que já está com uma política bem implementada e em pleno funcionamento.
Segundo a Funci, foram realizados 247 atendimentos em 2023, sendo 62 mulheres assistidas. Ao todo, 23 crianças foram entregues para adoção. No primeiro semestre de 2024, foram 39 mulheres assistidas e 13 crianças entregues para adoção. Ao todo, foram 111 atendimentos.
Azevedo diz que o processo de adoção começa com um comunicado do nascimento da criança ao juiz e aos promotores de justiça responsáveis. Em seguida, a criança é encaminhada a uma unidade de acolhimento do município, permanecendo por um ou dois meses até ser encaminhada à família pretendente, listada no Sistema Nacional de Adoção (SNA).
“Queremos, em um futuro próximo, melhorar esse fluxo, encaminhando parte dessas crianças ao serviço de família acolhedora, ao invés de esperarem na unidade de acolhimento. É muito melhor, porque elas são cuidadas por uma família individualizada antes de ser entregue à família que pretende adotá-la definitivamente”, descreve o promotor.
A entrega de recém-nascidos para adoção é um direito da mulher, mas na maioria das cidades, o processo ainda é lento, sem fluxos pré-definidos e com tempo de resposta do Judiciário maior.
“E aí você perde o benefício da Entrega Legal, porque seu grande valor é a rapidez com que essa criança vai ser entregue diretamente para a família que deseja adotá-la”, explica Lucas. O objetivo é ampliar o Programa para uma gama maior de municípios cearenses.
Para a vice-presidente da Acalanto Fortaleza, associação criada em 2013 voltada para construção de uma nova cultura da adoção, Ludmilla Callado, a adoção é um meio legítimo de promover o direito fundamental de todas as crianças e de todos os adolescentes à convivência familiar. Sua aplicação acontece quando não mais existem possibilidades de essa criança ou esse adolescente conviver com sua família de origem, a biológica.
"Nós entendemos que já caminhamos bastante no sentido de melhor cumprir as orientações do Estatuto da Criança e do Adolescente sobre adoções em Fortaleza. Todavia, mesmo na Capital, ainda não temos equipe técnica de servidores efetivos do Tribunal de Justiça (assistentes sociais e psicólogos) em número compatível com as demandas relativas aos processos de adoção", analisa.
E cita como exemplo a necessidade de rápida e eficiente destituição do poder das famílias de origem, quando constatada a impossibilidade de reinclusão das crianças e dos adolescentes acolhidos, conforme os prazos legais.
Segundo ela, em Fortaleza, ainda são realizados convênios entre o Tribunal e outros órgãos públicos para proporcionar o aumento do efetivo de agentes públicos, o que favorece o processo de adoção.
"No interior do Estado a situação é mais complicada. Há cidades onde não há nem mesmo vara especializada da infância, o que torna o cenário bem mais difícil para todos os envolvidos. Apesar dos avanços recentes, pensamos que ainda temos muito a aprimorar em nosso Estado, quando falamos de adoção", diz a vice-presidente.
A Acalanto Fortaleza promove o conhecimento dos direitos de acolhidos e pretendentes à adoção por meio de atendimentos gratuitos de ordem jurídica e trabalhos ligados aos aspectos psicológicos e sociais. Também promove palestras públicas, cursos de capacitação, eventos informativos, repasse de doações às Instituições de Acolhimento, entre outras ações.
“Eu não desejava ficar com o bebê desde quando soube da gestação, então foi uma decisão bem certa e segura que eu tinha na minha cabeça”. Foi através de uma pesquisa pela internet que Mariana*, de 23 anos, ficou sabendo do Entrega Legal.
Ela explica que, ao pesquisar sobre orfanatos, o Google sugeriu um site que descrevia o programa e informava um e-mail para mais informações. Mariana entrou em contato e recebeu, depois, mais informações por WhatsApp, definindo a sua escolha.
Outro ponto que Mariana destaca foi a atenção que recebeu da equipe médica. Segundo a mulher, foram companheiros e, durante todo o parto, foi tranquilizada e respeitada, tendo suas vontades atendidas.
“Eu não consigo sequer resumir (a importância da Entrega legal). Eu tinha em mente a minha decisão, mas todo o resto era uma ‘bagunça’, então todo o acompanhamento, todo o cuidado me tranquilizou muito, me fez ter calma, me sentir amparada, segura e compreendida. Eu sou imensamente grata”, finaliza.
Quem também descobriu o programa Entrega Legal por meio da internet foi a Gabriela*, de 32 anos. As buscas a levaram para o programa, mas as informações mais detalhadas ela obteve na própria maternidade.
Para Gabriela, a decisão foi tomada quando descobriu que não seria capaz de fazer o aborto, entre o terceiro e quarto mês de gestação. Porém, só procurou o programa já no momento do parto.
“A equipe (médica) que me atendeu foi maravilhosa, me senti segura e acolhida. Não percebi em nenhum momento julgamento ou coisa do tipo. Todos me trataram muito bem, e com muita humanidade”, declara.
E completa: “(O Entrega Legal) salvou a minha vida e a vida da criança que veio ao mundo através de mim, pois através dele não é necessário fazer um aborto, que pode trazer riscos, e a mulher não é obrigada a ficar com uma criança que não tem condições de cuidar - psicológica ou financeiramente. O fato é que essa criança terá a oportunidade de viver com uma família que realmente a quer e que tem condições para cuidar e amar.”
*Nomes fictícios, para preservar a identidade das entrevistadas
>>Entrega Legal
É possível entrar em contato com o programa Entrega Legal e obter mais informações por telefone e pelo WhatsApp: (85) 98406 6423 / (85) 98970 6148.
O promotor de Justiça e coordenador auxiliar do Centro de Apoio Operacional da Infância e da Juventude do Ministério Público do Estado do Ceará, Dairton Oliveira, reconhece os dados do Sistema Nacional de Adoção. “De cerca de 500 adoções por ano no Ceará, em média 150 são realizadas em Fortaleza e as 350 restantes, nos demais 183 municípios do Estado”, detalha.
E completa: “como a média de Adoções Legais, registradas como realizadas pelos pretendentes da fila de adoção do Ceará nos últimos anos, não chega a 100 adoções por ano (dados de 2020 a 2023), temos que a estimativa de adoções por fora da fila de adoção legal é de cerca de 8 em cada 10 adoções no Estado”.
Ainda segundo Dairton, por lei, desde 2009, toda adoção é pra ser pela fila do Sistema Nacional de Adoção. Porém, existem três exceções. A primeira é a adoção de crianças maiores de 3 anos que em 2009 já estivessem com pessoas de fora da fila e, assim construído laços de afetividade e afinidade.
A segunda é adoção do filho do cônjuge ou companheiro, no caso de não constar o nome de um dos genitores ou este tenha perdido o poder familiar, ou ainda em caso de morte do outro genitor. Neste cenário, o cônjuge ou companheiro pode adotar e formar novo vínculo familiar e jurídico.
A última maneira, conforme explica Dairton, é a adoção entre aqueles que possuem vínculo de parentesco, sem ser irmãos ou ascendentes do adotando. Neste caso, é necessário que o parentesco seja comprovado por meio de documentos.
Segundo o promotor, em 2016, quando pela primeira vez se fez uma estimativa da quantidade de adoções por fora da fila da Adoção Legal aconteciam no Ceará, 9 a cada 10 adoções realizadas no Estado eram por essa via.
“Hoje, passados 8 anos dessa primeira estimativa, e atento aos dados de Adoção Legal registrados em 2023 no Ceará, podemos dizer que a situação melhorou apenas um pouco, representando ainda uma área sensível a denotar a existência de um ‘estigma’ do sistema de Justiça local”, alerta Dairton.
Entre as consequências está a violação dos direitos das famílias que aguardam na fila de adoção, conforme o caso da Rozelnida e do Maurílio, do início da reportagem. “A espera é de cerca de 4 anos e meio em Fortaleza, e até 6 anos em alguns municípios do interior do Estado”, afirma.