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As crianças também sabem o que Fortaleza precisa
Reportagem Especial

As crianças também sabem o que Fortaleza precisa

A 15 dias de Fortaleza eleger seu novo prefeito, O POVO ouviu crianças e mostra como suas demandas podem virar políticas públicas

As crianças também sabem o que Fortaleza precisa

A 15 dias de Fortaleza eleger seu novo prefeito, O POVO ouviu crianças e mostra como suas demandas podem virar políticas públicas
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Em 15 dias, Fortaleza terá um novo prefeito. Há uma semana, 43 vereadores foram eleitos para legislar pela Cidade que tem mais de 300 mil crianças de 0 a 9 anos. Nas propostas, debates, entrevistas ou mesmo no meio da rua, pouco se viu sobre prioridades à infância. A busca por votos focada em segurança, saúde e educação não propõe ações diretas a esse público, embora ele tenha muito a dizer aos fazedores e executores de políticas públicas.

Nos planos de governo dos dois candidatos a ocupar o Paço Municipal, Evandro Leitão (PT) e André Fernandes (PL), o termo crianças aparece menos de 10 vezes. Sempre inserido em contextos de vulnerabilidade, programas de oferta de serviços básicos, ampliação de creches, ações de acolhimento e terapia sobre o autismo ou prevenção ao uso de drogas.

O Município é, entre os poderes federativos, o que mais consegue se aproximar das pessoas. Onde os serviços públicos se materializam e mudam a realidade das crianças que irão se desenvolver naquele território e, no futuro, agir para transformá-lo. E não apenas nas áreas da saúde e educação, como resumem os planos governamentais expostos, mas também sobre nutrição, meio ambiente, pobreza, igualdade racial.

De acordo com o Censo Demográfico 2022, existem 48 milhões de crianças e adolescentes no Brasil, o que representa 24% da população total. Norte e Nordeste têm as maiores taxas: 30,57% e 25,80%, respectivamente. O POVO conversou com crianças de diferentes bairros de Fortaleza, brincou, perguntou e ouviu sobre o que elas entendem de política, quais suas necessidades atuais e desejos para o futuro. 

"A campanha os afeta muito. Chegam aqui falando que os pais estão trabalhando para os candidatos. E dizem 'fulano prometeu e nunca fez', porque escutam isso, mas também porque já sabem como é. Criança tem essa coisa de que se prometeu, precisa cumprir. Os adolescentes, muitos não acreditam mais, já dizem que votarão nulo". A análise é da educadora social da Biblioteca Comunitária Criança Feliz, Francisca Elieuda Sousa da Silva, que atua há 36 anos em comunidades do bairro Jardim Iracema.

Para a superintendente executiva do Instituto Infância (Ifan), Luzia Laffite, que também é membro do Movimento agenda 227, a participação infantil deve ser priorizada, seja no processo de vida da criança, no ambiente doméstico, mas também a nível das instituições da Cidade que ela participa. "Elas têm muito a dizer sobre o foco delas, o olhar que elas privilegiam, como se sentem mais seguras, acolhidas e respondidas por aquilo que precisam. Ouvir a criança é o primeiro passo para ter uma cidade confortável para ela", afirma.

E escutar não é saber o que ela precisa, mas principalmente como ela avalia o que está sendo feito. É importante não só ouvir e se encantar pelo repertório que ela traz, explica Luzia, mas legitimar o que é dito, levar para concretude. "Trabalhamos com a concepção de infâncias, ouvindo segmentos diferentes. Um grupo que está no CadÚnico tem uma percepção do que precisam. Da mesma forma, se você conversar com crianças de classe média elas terão percepção legítima do que necessitam".

A participação dos pequenos no mundo das decisões precisa considerar as diferenças e a identificação, a partir das falas deles, sobre as responsabilidades. "Entender o que depende do estado, o que depende do contexto familiar ou da comunidade em que a criança vive. Aí é viabilizado dentro das condições", detalha Luzia.

Conforme ela, crianças entre 7 e 12 anos têm uma expressão mais objetiva, enquanto crianças menores se expressam mais por desenhos. É preciso metodologia e técnica para ouvir. "Elas expressam o que veem na mídia, não é feito um trabalho direto com as crianças, nos próprios comitês ou nas escolas, sobre o que significa a política pública. Elas ficam presas ao horário eleitoral, aos chavões. Elas precisam entender as propostas. Parece utópico, mas é importante".

Dois anos na fila para colocar aparelho dentário

Maria Ester Jerônimo da Silva Santos, 10, mora perto da escola, caminha cerca de dez minutos todos os dias de manhã para estudar. Volta, almoça, faz as tarefas, lava a louça, assiste TV e aguarda a mãe, costureira, chegar do trabalho. Tem tarde que é de brincadeiras na Biblioteca Comunitária Criança Feliz, no Jardim Iracema, bairro onde mora. Tem outros em que a prima da mesma idade vai lhe fazer companhia. "A gente fica treinando o hino [nacional], que ela canta na escola dela", descreve.

Depois de uma boa conversa sobre shorts do Youtube e My Little Poney, a pergunta: o que é política para você? "É quando os prefeitos querem ajudar a Cidade a sair da poluição e zerar as filas nos postos de saúde", responde. Demandas reais de uma capital com 2,5 milhões de habitantes e que Ester identificou assistindo as propagandas eleitorais das campanhas de 2024, mas principalmente na vida real dela e de sua comunidade.

A espera da avó no hospital quando ficou doente e a necessidade de fazer um tratamento dentário. Essas são as referências de Ester para destacar a Saúde como principal demanda a ser trabalha pelos novos e velhos políticos. "Eu acho difícil zerar as filas, porque elas são enormes", frisou.

A garota está certa. A Santa Casa de Misericórdia de Fortaleza fez apenas 71 cirurgias nos seis primeiros meses do ano, quantidade 98% menor do que a marca de 2023. 

Ester não fala apenas como expectadora, mas como usuária de um sistema que não a contemplou como deveria. "Meus dentes nasceram antes dos outros ficarem moles, precisei fazer uns tratamentos. Eu esperei dois anos para conseguir um aparelho para ajeitar os dentes que ficaram tortos", conta. A espera ainda não acabou, Ester disse que o aparelho dentário está marcado para ser colocado no dia 30 desse mês. 

A menina consegue descrever como sua vida seria afetada se tivesse recebido o atendimento no tempo adequado. "Se eu tivesse sido atendida nos anos que eu fiquei esperando, eu não tinha tido dor de dente. Porque eles ficavam muito apertados, aí doía. E não ia ter aquela agonia de arrancar". 

Uma rua sem lixo e que dê para andar de bicicleta

Um beco de areia, onde moram diversas famílias, incluindo a da Maria Laura Silva Rodrigues, 6. É no bairro José de Alencar, na casa da avó, que ela fica enquanto a mãe trabalha. "Tá vendo ali o lixo? Tem muito agrotóxico, traz bicho, e fica bem pertinho da parada de ônibus", sinaliza a menina, que está na primeira infância (0 a 6 anos). Em Fortaleza, são cerca de 200 mil nesta faixa etária, representando 8,26% dos habitantes do Município. 

Pontos e taxa do lixo são temas recorrentes nos debates e propagandas eleitorais. Afinal, a Cidade recolhe mais lixo em ponto irregular do que na porta das casas. Lugares como o ponto de ônibus no qual Laura chega e sai diariamente.

 


Mas também no beco onde a família reside, por onde não passa nenhum caminhão de coleta. O beco é transversal a uma rua, onde também não há espaço para dois carros pequenos, nem calçamento, nem sinalização. 

Laura conta que precisa ficar na casa da avó porque sua escola, no bairro Sapiranga, ainda não é de tempo integral. Ela enche os olhos quando questionada sobre o que poderia fazer no contraturno escolar. "Lá tem muita coisa para ler e estou aprendendo, então seria legal".

O tema muda, mas ela volta para o lixo e explica que "o prefeito escreve umas coisas e depois manda os trabalhadores fazer aquelas coisas que são importantes". 

Laura lembrou até de quando uma mosca pousou no seu pirulito e depois ela ficou doente. "Quando eu tava indo para a escola, vomitei foi muito e tive que ir pro hospital", disse, conectando questões de infraestrutura e meio ambiente urbano, educação e saúde.

Sustentabilidade e meio ambiente são temáticas que envolvem diferentes questões políticas de uma cidade e estão mais próximas das crianças. Cuidar do mundo e ser veterinária está nos planos de Laura. 

O assunto Eleições 2024 é comum no entorno social da menina. Nos muros, nas portas, nos veículos do bairro é possível constatar os diversos números dos candidatos. Tanto que ela trouxe o voto para si, mesmo ainda não estando apta para ir às urnas no dia 27 de outubro.

Areninha, esporte e lazer são prioridades

Como muitos meninos e meninas de 10 anos, futebol é a prioridade do José Gabriel Silva de Lima, que mora no Barroso. Para ele, política e eleições é a "disputa para melhorar a Cidade nas ruas e no transporte". A rotina é parecida com a das outras crianças: escola, casa, espera pela mãe que está trabalhando. Mas às 16 horas, Gabriel tem um compromisso diário: o jogo no campinho de areia na esquina de casa. 

No entendimento sobre o que Fortaleza mais precisa, Gabriel destaca o transporte público e os "bloquinhos no chão", que seriam espaços reservados para os ciclistas, as ciclofaixas. Atualmente, de acordo com a Prefeitura, a Capital tem 427 km de ciclofaixas, ciclovias ciclorrotas ou passeios compartilhados. 

"Se tem um espaço, você pode ir um pouquinho mais rápido, sem o perigo dos carros", destaca o benefício das intervenções feitas. Gabriel já morou no Rio de Janeiro, onde o pai trabalhava e reside atualmente. Hoje, o menino mora em Fortaleza com a mãe, que é auxiliar de cozinha em um hospital, e a irmã de 13 anos. 

Na escola, ele joga no chão cimentado, mas diz preferir a areia do campinho, onde é melhor para cair. Mas o bom mesmo, de acordo com ele, seria jogar num campo "tipo a areninha do Remo", que fica no bairro. Para ele, o lazer das crianças não estaria entre as prioridades de um prefeito eleito. "Eu achava que não tinha a ver, que não importava". 

Questionado sobre o maior benefício que o jogo de futebol no campinho na esquina de casa traz, Gabriel diz que é saúde e forças nas pernas, para que um dia ele possa fazer parte dos jogadores de base em algum clube de futebol. De preferência, o Fortaleza Esporte Clube. "No Rio eu treinava no Flamengo e sempre ia para uns espaços de esporte, com pista de skate, lugar pra soltar arraia também". 

O esporte é saúde e, de acordo com o menino, nós precisamos de saúde para viver. "Se eu pudesse pedir alguma coisa para o prefeito, ia pedir uma areninha lá no meu campo". Fortaleza tem mais de 100 areninhas, de acordo com informações disponíveis no site da Prefeitura. Os locais, que devem ser de proteção e lazer, já registraram doiversos episódios de violência, com morte de criança.

(In) Segurança das ruas e nas escolas

A oficina na Biblioteca Comunitária Adianto, na Barra do Ceará, estava quase no fim. Dezena de crianças saem correndo, passam pela rua estreita e colorida, sobem as escadas, a árvore, atravessam a rua. A atividade havia sido oferecida por servidores do Governo do Estado. O que Ana Maria Alves de Brito, 11, e Sarah Rebeca Sousa de Oliveira, 11, não sabiam é que ali uma política público voltada à infância estava sendo colocada em prática. 

"Tivemos aula de grafite, fizemos alongamento e no final tivemos um lanche", explica Sarah, ressaltando que na próxima aula os tios iriam trazer mais material para outras atividades. A  vontade é pintar as diferentes travessas que rodeiam a Biblioteca, na Barra do Ceará. "Não vai sobrar nenhum cantinho, tudo vai ser pintado e vai ficar lindo. E vai trazer mais gente para a Biblioteca. É melhor estar aqui do que na rua", complementa Sarah.

O suporte da Biblioteca, segundo a garota, ajuda a suprir as lacunas que, segundo ela, existem na frequência dos professores na escola onde ela estuda. Mediação de conflitos entre estudantes também é uma questão que merece atenção. "Tem muita briga, muito apelido de bullying", adiciona Ana Maria. 

Ela conta que houve algumas iniciativas para que crianças de escolas diferentes se integrassem, mas que também não teria surtido efeitos visíveis. "Fizeram um jogo de basquete, mas não deu certo, porque um time acertava e o outro já dizia que estava errado", lembra. A relação instável entre os alunos pode refletir o cenário de insegurança que domina alguns bairros da Capital. 

"Um dia, tinha um menino dizendo que estava apaixonado por uma menina e o pai dela foi lá resolver. Ele é de facção, então colocaram um vigia em cada portão", lembrou Sarah. A política chega no contexto de disputa e briga. De acordo com Sarah, os amigos ficam brigando entre si sobre em qual candidato irá votar. "E ninguém nem vota ainda", frisou a menina. 

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