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O papel das escolas no combate aos abusos sexuais infantis no Ceará
Reportagem Especial

O papel das escolas no combate aos abusos sexuais infantis no Ceará

O programa Previne, do MPCE, busca combater e prevenir casos de abuso infantil com atuação das escolas, criando um ambiente seguro e de apoio às vítimas

O papel das escolas no combate aos abusos sexuais infantis no Ceará

O programa Previne, do MPCE, busca combater e prevenir casos de abuso infantil com atuação das escolas, criando um ambiente seguro e de apoio às vítimas
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O abuso sexual infantil é uma das formas mais graves de violência enfrentadas por crianças e adolescentes. Somente em 2023, conforme os dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), o Brasil registrou mais de 60 mil casos de violações contra menores de 18 anos. Entre os estados, o Ceará foi o 11° que mais registrou ocorrências de violência sexual infantis, com um total de 877 denúncias e 1.778 violações contra a faixa etária.

Ainda segundo o painel do MDHC, que reúne dados de denúncias feitas pelo Disque 100 e Ligue 180, até agosto deste ano, o Ceará registrou 710 denúncias e 1.755 casos de violações sexuais infantis. Em comparação com o mesmo período do ano passado (janeiro a agosto), quando foram registrados 1.160 casos, houve um aumento de mais de 51%.

Clique nos pontos do gráfico abaixo para conferir os dados

 

As escolas, especialmente nas áreas mais distantes dos centros urbanos, são muitas vezes vistas como o único lugar seguro para identificar crimes e proteger as crianças que passam por casos semelhantes. Por isso, o Ministério Público do Ceará (MPCE) criou o programa Previne – Violência nas Escolas, não!, uma iniciativa para fortalecer o apoio das unidades escolares às vítimas.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96) já exige que as escolas incluam no currículo conteúdos e atividades voltadas para a prevenção da violência sexual e outras formas de violência, como o bullying.

Já no Ceará, a Lei nº 17.253, de 2020, sugere a criação de "Comissões de Proteção e Prevenção à Violência contra Crianças e Adolescentes" dentro das escolas. Essas Comissões, formadas por funcionários das unidades, visam desenvolver atividades de prevenção e proteção aos alunos contra diversas formas de violência, incluindo a sexual. Contudo, conforme a Lei Estadual, a criação dessas equipes é apenas recomendada, não obrigatória.

Abusos sexuais infantis no Ceará: O programa Previne – Violência nas Escolas, não! é uma iniciativa para fortalecer o apoio das unidades escolares às vítimas de violência(Foto: Adobestock)
Foto: Adobestock Abusos sexuais infantis no Ceará: O programa Previne – Violência nas Escolas, não! é uma iniciativa para fortalecer o apoio das unidades escolares às vítimas de violência

Para incentivar a implementação dessa medida, o MPCE lançou o projeto Previne em 2022, que torna obrigatória a formação das Comissões nas escolas dos municípios que decidirem aderir ao programa. A adesão ao projeto é opcional, cabendo a cada município escolher se deseja ou não participar. Além disso, escolas privadas também podem se inscrever por livre iniciativa. 

“As Comissões são formadas por três membros, que incluem o diretor, um professor e um outro funcionário. Depois de criadas, as Comissões participam de um curso, fornecido pelo Ministério Público. Ele aborda as diversas formas de violência tratadas pela lei, como abuso sexual, gravidez na adolescência, automutilação, e outras”, explica a procuradora de Justiça do MPCE e coordenadora titular do Centro de Apoio Operacional da Educação (Caoeduc), Elizabeth Almeida.

O curso aborda também os componentes do sistema de garantia de direitos, como o Conselho Tutelar. Segundo Elizabeth, “a ideia é fortalecer a rede de proteção em torno da escola, aproximando-a dos serviços que podem apoiar os alunos em situações de vulnerabilidade.” Após a formação, os membros da comissão de cada escola devem apresentar ao MPCE um plano de atividades para prevenir violências na unidade escolar, que será desenvolvido ao longo do ano.

“Ele deve ser personalizado para a realidade de cada escola. O principal objetivo é criar um ambiente onde os alunos se sintam seguros e encorajados a falar sobre violências que possam estar enfrentando. Além de trabalhar a prevenção para evitar que situações graves aconteçam”, explica a procuradora do MPCE.

Em 2022, 98 municípios se inscreveram na iniciativa. Contudo, segundo o MPCE, apenas 66 concluíram todos os compromissos assumidos e formaram as Comissões. Ao todo, cerca de 3.300 Comissões foram criadas em escolas públicas e privadas do Ceará.

Combate aos abusos sexuais infantis: em 2023, o Ceará registrou 877 denúncias de violência sexual contra crianças e 1.778 casos de violações (Foto: adobestock)
Foto: adobestock Combate aos abusos sexuais infantis: em 2023, o Ceará registrou 877 denúncias de violência sexual contra crianças e 1.778 casos de violações

Em janeiro de 2024, o Previne voltou a ser implementado. Mais uma vez com inscrição voluntária, os municípios puderam ingressar em dois projetos:

O primeiro, "Comissão em Ação", é destinado aos 66 municípios que concluíram a iniciativa anterior. Assim, as Comissões da rede municipal devem retomar a execução dos planos de prevenção em 2024 e 2025.

O segundo projeto, "Proteger e Prevenir," é voltado para municípios que não participaram ou não concluíram o Previne em 2022. Dessa forma, as escolas devem formar suas Comissões, garantindo que pelo menos dois membros tenham concluído o Curso de Formação das Comissões de Proteção e Prevenção à Violência contra a Criança e o Adolescente, oferecido online pelo MPCE.

As novas Comissões também devem enviar seus planos de prevenção, que devem incluir um diagnóstico das expressões de violência nas escolas e as ações a serem implementadas em 2025.

Clique nas setas para ver no mapa os municípios participantes dos projetos

 

Quanto à rede privada, um total de 34 instituições do Ceará se inscreveram por livre iniciativa ao programa.

De acordo com o MPCE, em cada município há articuladores que monitoram as ações das Comissões em cada escola durante o ano. “Eles são servidores da Secretaria de Educação e têm a função de comunicar as necessidades das escolas, além de ajudar na coordenação das atividades do programa,” explica a procuradora de Justiça do MPCE, Elizabeth Almeida.

 

 

O que muda quando uma escola implementa ações de prevenção contra abusos sexuais?

A defensora pública Mariana Lobo, supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas da Defensoria Pública do Ceará (DPCE), destaca o papel crucial dos professores em identificar sinais de possíveis abusos:

"Os professores podem perceber mudanças no comportamento dos alunos. Por exemplo, se um aluno começa a apresentar queda no rendimento ou faltas frequentes, isso pode ser um sentimento de que algo está errado”, aponta.

Mariana Lobo, defensora pública(Foto: MAURI MELO/O POVO)
Foto: MAURI MELO/O POVO Mariana Lobo, defensora pública

Segundo ela, é essencial que os profissionais conversem com o aluno e, se houver suspeitas de abuso, tomem as precauções necessárias, como acionar o Conselho Tutelar ou encaminhar o caso à Delegacia.

Abordar o tema do abuso desde cedo também é muito importante. "Uma criança pode não ter noção de que certas ações são abusos. Por exemplo, não compreender que um carinho inadequado de um familiar é algo errado. Quando a escola aborda esses temas, ela ajuda a criança a entender que esse tipo de comportamento é inaceitável”, explica.

Renato Pedrosa, presidente do Instituto Terre des Hommes Brasil (TDH), organização que defende os direitos das crianças e adolescentes, também reforça como as escolas podem participar do combate ao abuso sexual.

"Capacitando representantes da comunidade escolar e utilizando jogos pedagógicos para alertar crianças e adolescentes sobre como identificar abusos e pedir ajuda de forma segura. Além disso, ferramentas como teatros, cine-debates, produção de podcasts e cartilhas orientadas também são estratégias eficazes para conscientizar e proteger os jovens", exemplifica.

A diretora de uma escola (mantida em anonimato em proteção aos alunos), declara que o Previne já foi crucial em momentos desafiadores em sua gestão. Na época que o projeto foi lançado, em 2022, ela estava à frente de uma creche localizada em um município da Região Metropolitana de Fortaleza.

Em 2022, o Ministério Público do Ceará lançou o projeto Previne que prevê a formação de Comissões de Proteção e Prevenção à Violência contra Crianças e Adolescentes dentro das escolas(Foto: adobestock)
Foto: adobestock Em 2022, o Ministério Público do Ceará lançou o projeto Previne que prevê a formação de Comissões de Proteção e Prevenção à Violência contra Crianças e Adolescentes dentro das escolas

“Naquele ano, detectamos três casos envolvendo abusos sexuais com nossos alunos, todos praticados por membros da família ou ligados a ela”, relata. Segundo a diretora, embora a experiência prévia da comunidade escolar com conflitos familiares tenha tornado mais fácil conversar e mediar os casos com os responsáveis, o maior desafio foi compreender e lidar com os procedimentos judiciais e de amparo social necessários.

No entanto, as instruções oferecidas durante o curso preparatório do Previne foram essenciais para direcionar corretamente os casos à rede de atenção e garantir o suporte adequado. “Percebemos que não éramos apenas nós, da gestão, a lidar com a situação. Havia uma equipe composta por representantes do Conselho Tutelar, Polícia, Defensoria Pública, Secretaria de Educação e profissionais de saúde. Essa colaboração foi fundamental”, enfatiza.

Atualmente à frente de uma outra escola do município, de ensino fundamental, ela explica que a unidade já está focando na prevenção. “Promovemos contação de histórias, reuniões com os pais e abordamos o cuidado com o corpo e com as relações interpessoais. Estamos sempre atentos e, ao notar algo suspeito, conversamos com a criança e acionamos os órgãos competentes”, conclui.

 

 

Abuso e gravidez de menina de 11 anos ressalta a importância da atuação das Escolas

Um dos municípios que ingressou este ano ao Previne foi Santa Quitéria, localizado na Região Norte. Recentemente, um caso alarmante foi denunciado ao Conselho Tutelar da cidade: uma menina, de apenas 11 anos, teria engravidado após ter sido estuprada pelo companheiro da avó. A bebê nasceu no último dia 13 de setembro.

De acordo com a secretária da Educação do município, Eliane Maciel, o caso foi notificado à Pasta após uma professora notar a mudança no corpo da menina. “Somente após um ultrassom, solicitado pelo Cras, foi que ficou confirmado que a menina estava grávida, em um estado avançado”, relatou.

De acordo com a gestora, a Secretaria recebeu a licença maternidade da aluna. Além disso, uma proposta de acompanhamento domiciliar para após o período já está em andamento. “Ela também tem agendado um acompanhamento psicológico, além de uma ajuda financeira, uma vez que a família é muito humilde”, detalhou.

No Ceará, 13 municípios não aderiram ao programa Previne(Foto: adobestock)
Foto: adobestock No Ceará, 13 municípios não aderiram ao programa Previne

A secretária Eliane Maciel ressalta que o município aderiu ao Previne 2024 em prazo apertado e próximo ao encerramento das inscrições, em março de 2024, devido aos conflitos políticos que ocorriam na época. “Antes, nós já tínhamos uma forte parceria com o Conselho Tutelar. O que vinha da comunidade escolar era direcionado para eles, que realizavam seu trabalho e retornavam as resoluções", relata.

Segundo ela, com o Previne, a capacitação para os responsáveis das Comissões facilitou a identificação de casos e o diálogo com os estudantes.

"O trabalho já começou com a identificação de situações de risco para os estudantes. Contamos na Secretaria com uma equipe de três psicólogos, um assistente social e uma psicopedagoga, que orientam as escolas. Além disso, firmamos uma parceria com a juíza da Vara Infantil, que realizou palestras sobre abuso sexual, esclarecendo para as crianças como buscar apoio", conclui.

 

 

Municípios que não aderiram ao Previne

Conforme ressaltou o Centro de Apoio Operacional da Educação do MPCE, que coordena o Previne, a adesão ao programa, que ainda é considerada uma iniciativa recente, é voluntária e a renovação será anual. "Alguns preferiram não participar neste momento. Contudo, o fato de alguns municípios não terem aderido em 2024 não impede que eles possam aderir em 2025", declarou o Centro.

 

Ao O POVO, a União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) declarou que, por meio de sua influência junto aos gestores educacionais municipais, busca “a adesão e sensibilização para a importância dessas Comissões. A continuidade desse trabalho depende do engajamento dos gestores municipais e da atuação ativa das Comissões”, disse, em nota.

O MPCE ainda destacou que o Previne não isenta os municípios de realizar, forma autônoma, ações de conscientização e prevenção contra o abuso sexual infantil.

CAPA - Combate aos abusos sexuais infantis no Ceará(Foto: adobestock)
Foto: adobestock CAPA - Combate aos abusos sexuais infantis no Ceará

A Prefeitura de Fortaleza foi questionada sobre a não adesão ao programa. Em nota, a Secretaria Municipal da Educação (SME), destacou que iniciou o processo de implantação das Comissões em 2020, desde que a Lei 17.253 foi publicada.  

"Atualmente, 100% das unidades escolares da Rede Municipal de Ensino possuem Comissão de Proteção e Prevenção à Violência contra crianças e adolescente (CPPV), constituídas por meio do acompanhamento realizado pela Célula de Mediação Social e Cultura de Paz, que articula e acompanha as ações de implementação e fortalecimento", disse, em nota. 

Segundo a Pasta, todas as escolas da rede municipal receberam uma placa em acrílico com a frase: “Somos uma escola que protege!” seguida de: “Esta instituição conta com uma Comissão de Proteção e Prevenção à Violência contra a criança e adolescente”, com o símbolo da campanha nacional.

A SME ainda comunicou que atua em parceria com a Inspetoria de Segurança Escolar (ISE) da Guarda Municipal para garantir a integridade física da comunidade escolar. "O trabalho inclui viaturas, equipes treinadas, patrulhamento ostensivo, rondas diárias, além de monitores de acesso, porteiros e câmeras de videomonitoramento nas escolas do município". 

 

 

Ações em escolas de Ensino Médio 

Enquanto a gestão das escolas públicas de nível infantil e fundamental é responsabilidade de cada município, é o Governo do Estado que coordena o ensino médio. De acordo com a Secretaria da Educação do Estado do Ceará (Seduc), todas as escolas de ensino médio, sejam elas em tempo integral ou regular, já contam com Comissões de Proteção e Prevenção à Violência contra a Criança e o Adolescente.

“Nas escolas estaduais, 163 turmas também ofertaram ainda no primeiro semestre de 2024.1, eletivas relacionadas à saúde íntima feminina. Outras 125 turmas trabalharam a eletiva de Educação Sexual, e 38 turmas ofereceram a Eletiva de Saúde da Mulher”, disse a Seduc. 

Renato Pedrosa, presidente do Instituto Terre des Hommes Brasil (TDH)(Foto: Secretaria de Direitos Humanos do Ceará )
Foto: Secretaria de Direitos Humanos do Ceará Renato Pedrosa, presidente do Instituto Terre des Hommes Brasil (TDH)

O presidente do Instituto Terre des Hommes Brasil (TDH), Renato Pedrosa, destaca que o Governo do Estado e a Prefeitura de Fortaleza ainda precisam aprimorar o fluxo de denúncias, o atendimento rápido às vítimas e a responsabilização dos agressores. 

"A rede de Educação precisa investir na qualificação e criar protocolos e procedimentos, principalmente diante da revelação espontânea da criança ou do adolescente vítima e/ou testemunha de violências", concluiu. 

No ultimo mês de setembro, o Terre des Hommes (TdH), em parceria com a Seduc, elaborou a cartilha “Se liga na prevenção ao abuso sexual contra crianças e adolescentes”. Com linguagem acessível, o guia fornece orientações para identificar, prevenir e denunciar abusos sexuais, voltada para estudantes e educadores.

 

 

Para além do Previne

O MPCE ainda desenvolve outros projetos no desígnio de sensibilizar sobre os deveres de proteção a crianças e adolescentes. Atualmente, o Centro de Apoio Operacional da Infância e Juventude (Caopij) está iniciando o projeto “Escuta Ativada”. Conforme o órgão ministerial, a ação visa induzir os municípios do estado do Ceará a criar os “Comitês Interinstitucionais de Escuta Protegida”.

Escuta ativa é quando alguém ouve com atenção e interesse o que o outro diz, mantendo um diálogo focado. Vai além de apenas ouvir as palavras, envolve prestar atenção ao que está sendo comunicado.

"Com a criação desses comitês, a política pública referente à escuta protegida ficará muito mais fortalecida e capilarizada, o que representará um ganho substancial na prevenção e repressão à violência contra crianças e adolescentes", disse o MPCE.

 

 

Canais de denúncia de abuso sexual contra crianças e adolescentes


  • Texto Lara Vieira
  • Edição Rubens Rodrigues e Fátima Sudário
  • Concepção visual Gil Dicelli (sobre imagem gerada por IA)
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