Já dizia a poesia de Cora Coralina “Coração é terra que ninguém vê”. No sentido figurado esse órgão é a morada das emoções, dos sentimentos, da saudade e, principalmente, do amor. Mas para a fisiologia ele é um órgão vital, pois é ele que mantém os seres humanos vivos. É que bombeia o sangue pelo corpo todo e faz parte do sistema circulatório, que funciona em conjunto com os vasos sanguíneos e as artérias.
O estado de saúde do coração, ou a saúde cardíaca, é um fator determinante que impacta na qualidade de vida. Segundo o cardiômetro, da Sociedade Brasileira de Cardiologia, somente em 2024, até o dia 20 de outubro, foram registradas cerca de 325 mil mortes por doenças cardiovasculares. E somente no mês de outubro, foram cerca de 22 mil.
Entre as principais “doenças do coração” estão o Infarto Agudo do Miocárdio (IAM) e o Acidente Vascular Cerebral (AVC). Em 29 de outubro é celebrado o Dia Mundial do Acidente Vascular Cerebral, data para alertar a população sobre a doença.
O AVC, derrame cerebral ou Isquemia como também é conhecido, é uma das principais causas de morte, incapacitação e internações em todo o mundo. Ele ocorre pela morte de células do cérebro devido à interrupção do fluxo sanguíneo dentro do vaso (AVC isquêmico) ou pelo rompimento deste vaso (AVC hemorrágico).
Apesar de também acometer o coração é diferente do Infarto Agudo do Miocárdio (IAM), que acontece quando há diminuição ou interrupção da passagem de sangue para o coração.
Juntas, as doenças atingem centenas de milhares de brasileiros. Em grande parte dos casos, são causadas em pessoas com antecedentes familiares, diabetes, pessoas com hipertensão arterial, aterosclerose, doenças cardíacas, obesidade, fumantes, alcoólatras e sedentários.
Um estudo desenvolvido pela Sociedade Brasileira de Angiologia e Cirurgia Vascular (SBACV), com dados do Portal de Transparência dos Cartórios de Registro Civil, relata que o número de mortes por AVC ultrapassou o número de mortes por IAM, entre 2019 e junho de 2024 no Brasil.
Houve um aumento anual significativo, com destaque para 2020, quando os registros de óbito por AVC alcançaram 105.894, enquanto as mortes por infarto chegaram a 97.779. Em 2024, a diferença entre os óbitos por infarto e AVC, com dados até junho, atingiu 8,78%, tornando o infarto a menor causa de morte em comparação com o AVC.
Já no Ceará o cenário é inverso do nacional. De acordo com dados da Secretaria da Saúde do Estado do Ceará (Sesa), coletados em 2 de outubro desse ano, somente em 2024 foram registrados 2.662 óbitos por IAM contra 1.007 por AVC. Na análise de 2020 para cá o cenário é o mesmo, há quatro anos foram 4.004 mortes por Infarto e 1.736 por AVC.
Segundo a presidente da SBACV regional Ceará, Juliana Lopes Alfaia Tavares, é preciso lembrar que em 2020 passamos por uma fase da pandemia o que pode explicar os números nacionais.
“Mas analisando os números de 2024, são números alarmantes, em que os casos de AVC superaram os números de infarto em quase 10 mil casos e isso mostra que são números relevantes e que doenças de base não estão sendo controladas”, alerta, entre elas a diabetes, pressão alta, colesterol alto, sedentarismo, obesidade e tabagismo.
Em sua visão, faltam políticas públicas mais eficazes para incentivar a população a fazer o controle regular dessas doenças de base e também a conscientização da própria população. Além do acesso aos especialistas.
“Não é só tomar uma medicação para controlar, é toda uma mudança de estilo de vida. Diminuir o sedentarismo, fazer atividade física regularmente e fazer uma dieta um pouco mais adequada. Às vezes é um pouco difícil a gente pedir que as pessoas façam uma dieta mais adequada, quando muitas não conseguem nem ter o básico na mesa”, observa.
A médica neurologista, Luciana de Oliveira Neves, avalia que o AVC é uma doença democrática, pois atinge todas as idades, todos os sexos e todo mundo. “É uma das doenças que mais mata no mundo e que mais deixa sequelas. O que a realmente observa, um maior número de jovens, pessoas abaixo de 50 anos, às vezes até menos, tendo AVC”, observa.
Uma das causas é a questão dos hábitos de vida, que incluem estresse, hipertensão, sedentarismo e obesidade. Sendo que a maior parte dos fatores de risco são fatores de risco modificáveis. Outro fator também, mas que ela vê como menos impactante, é a facilidade de diagnosticar, assim como a pesquisa de doenças genéticas, doenças hereditárias.
“Mas apesar do acesso ao conhecimento, é como se nós estivéssemos envelhecendo, na medida em que a gente está mais exposto aos fatores de risco cerebral e cardiovasculares. Tanto que hoje em dia a gente vê um aumento do número de mulheres com infarto, com AVC, do que antigamente”, pontua.
Luciana enfatiza, ainda, que o AVC é uma doença grave. Quando o paciente chega na emergência ele deve ter prioridade. “Existem vários tipos de AVC, desde o pequeno ao grande, mas, não necessariamente, se a pessoa tiver um AVC pequenininho ela vai ter uma sequela pequenininha também, pois depende do local atingido”, diz.
Hoje, aos 47 anos, Eurijane Torres de Menezes está aposentada, em virtude de um Acidente Vascular Cerebral (AVC) isquêmico com transformação hemorrágica que teve dez anos atrás.
“Sempre foi muito ativa, era professora de inglês, formada em Direito. Tinha biotipo magro, gostava de atividade física, de forma inconstante, casada, três filhos e era conhecida como a estressada na família”, relembra.
Por ter tido muitas sequelas, a irmã Aline Torres, a auxiliou com as respostas. Eurijane teve uma extensa lesão cerebral à esquerda. Na parte motora, ficou com
A mão direita é bem comprometida, mas consegue movimentar o braço num grau de moderado a severo de dificuldade. A área da lesão também comprometeu a fala e a linguagem. Ela se comunica com frases simples e usa palavras aleatórias para contar histórias.
Segundo a irmã, ela sabe o que quer falar, mas não consegue acessar as palavras, perde conectivos nas frases. Tem compreensão e memória preservadas, mas não escreve. O que a salvou foi o atendimento rápido e toda conduta médica.
As primeiras 48 horas foram indescritíveis e eram decisivas para ela resistir. Pelo tamanho da lesão cerebral, a perspectiva não era das melhores.
“Foram 12 dias de UTI, uma craniectomia, para descomprimir o cérebro, e mais uns 30 dias de internação hospitalar com algumas intercorrências, muita fé, oração e união, e todo empenho de uma equipe médica e interdisciplinar acompanhando tudo”, detalha Aline.
A alta hospitalar era apenas uma nova etapa. Porque a partir dali, começava uma nova jornada de reabilitação e adaptação a uma nova realidade de vida. A vida da Eurijane mudou 100%, ela precisou reaprender praticamente tudo.
Aline conta que devido o acometimento da fala e da linguagem, ela precisou se aposentar.
“Porém, é impressionante a forma que ela se reorganizou e lutou para se encaixar no novo padrão de vida, procurando a independência nas pequenas atividades do cotidiano. Hoje, ela está numa nova etapa, muito feliz fazendo atividade física, musculação adaptada, e muito realizada com o progresso”, diz a irmã de Eurijane.
Pelo histórico dela, o caso foi considerado “uma fatalidade”. Ela não apresentava sinais ou sintomas para passar pelo que passou.
“A Eurijane é uma grande guerreira. Ela teve uma força sobrenatural para enfrentar tudo que enfrentou e enfrenta até hoje. Nunca desistiu de viver e de lutar pela vida, acredito que isso fez e faz toda a diferença na vida dela. É cheia de alegria e resignação. E, lógico, a família tem uma participação ativa na história dela o que a fortalece muito”, finaliza Aline.
A médica cardiologista Danielli Lino confirma que, epidemiologicamente, a doença cardiovascular é a principal causa de óbito, no contexto de doenças crônicas não transmissíveis e o AVC e o IAM são as principais causas.
Hoje existe uma percepção médica de que, antes, você tinha uma faixa etária média, por volta dos 60 anos, segundo os estudos de pacientes com infarto.
“Mas estamos vendo, nos internamentos, que cada vez mais aparecerem pacientes jovens, com 40 anos, até mesmo com 30 anos”, disse.
E justifica que, além dos problemas multifatoriais, é uma geração que não promoveu hábitos de vida saudáveis. “Chamamos da geração do fast food, da comida rápida, da obesidade, do sedentarismo e do tabagismo”, afirma.
Tinham ocorridos avanços epidemiológicos em relação ao tabagismo, mas que agora ressurgem com os cigarros eletrônico. “Também temos outras questões relacionadas a essa população mais jovem que a gente também não vinha anteriormente. Como, por exemplo, o uso de anabolizantes nas academias”, alerta.
Os anabolizantes, além de prejudicarem os níveis de colesterol, também inflamam as artérias do coração, podendo sim aumentar o risco da formação dessas placas de gordura e as suas rupturas.
“Todos esses fatores estão fazendo com que apareçam mais nas portas de emergências, nas UTIs e nas enfermarias, que cuidam de pacientes com infarto, nessa faixa etária que nós não víamos.
Com mais de 16 anos como médica, Danielli disse que antigamente, quando aparecia um paciente com 40 anos era um evento, hoje, não. “Tenho leitos com pacientes com 45 anos, tenho um paciente com 38 anos no meu leito com um Infarto Agudo do Miocárdio”, disse.
A carga horária de trabalho excessiva, a má alimentação e o sedentarismo fizeram com que Francisco Antônio dos Santos, 45, criasse placas de gorduras nas artérias o que levou a sofrer o primeiro princípio de infarto em outubro de 2023, quando estava com 44 anos.
Essas gorduras costumam ser um sinal de aterosclerose, doença cardiovascular que se caracteriza pelo acúmulo de material gorduroso nas paredes das artérias.
Esse acúmulo pode levar ao estreitamento ou bloqueio do fluxo sanguíneo, o que pode causar problemas graves de saúde, como infarto e Acidente Vascular Cerebral (AVC).
Há 23 anos trabalhando como motorista de transporte coletivo, ônibus, ele ainda está em tratamento, que em geral, leva seis meses a um ano, no Hospital de Messejana Dr. Carlos Alberto Studart Gomes, em Fortaleza, no Ceará.
“Em abril sofri uma nova revascularização pra desobstruir uma nova artéria e colocação de Stent (prótese que é inserida para restaurar o fluxo sanguíneo e permitir que o coração volte a receber oxigênio, reduzindo o risco de eventos cardíacos e como tratamento de escolha em pacientes com infarto do miocárdio). Fui internado durante 15 dias, recebi alta e estou no programa de reabilitação. O tratamento é de seis meses a um ano”, informa Santos.
Como sequela ele conta que está com o coração comprometido e está fazendo uso de medicação contínua para o resto da vida. Tudo mudou em sua vida, já que teve uma alteração radical no dia a dia a começar pelo trabalho.
Ele está impossibilitado de voltar a exercer a profissão, em virtude de um risco iminente de um novo infarto. A alimentação também sofreu um impacto e está diferente. Santos tenta seguir à risca. A caminhada também se tornou obrigação.
Hoje, sua grande dificuldade é com a medicação, pois por ser cara, o hospital não disponibiliza para menores de 60 anos. Para os jovens ele aconselha cuidar mais da alimentação, fazer exercícios físicos regularmente e dormir bem, pois isso vai ajudar a ter uma qualidade de vida melhor.
Aos 41 anos, o pedreiro Francisco Mendes, 45, sofreu um infarto. Nessa fase da sua vida ele mantinha uma alimentação normal, adequada dentro dos padrões, mas era sedentário.
Seu tratamento durou cerca de um ano com a necessidade de tomar medicações para estabilizar o seu quadro. Entre as sequelas que teve por três anos estão dores fortes e palpitações que persistiram por três anos. Atualmente, sem dores, ele também frequenta terapias no Hospital de Messejana Dr. Carlos Alberto Studart Gomes.
“O que mudou na sua vida depois desse problema de saúde é que adquiri hábitos novos como a caminhada e tenho uma alimentação mais saudável. E se pudesse aconselhar outras pessoas para não passar pelo que passei é que façam exercícios e tenham essa alimentação mais saudável”, disse Mendes.