“Os sequestradores do Airbus da Cruzeiro do Sul apanharam o avião no aeroporto de Fortaleza”, relatou à época Nelson Otoch, que viria a ser deputado federal e que estava na aeronave interceptada quando a rota foi desviada para Cuba, no período da redemocratização do Brasil e fim do governo de João Figueiredo (1979-1985). O dramático episódio completou 40 anos em 2024.
Um cearense e um paulistano, ambos residentes em Fortaleza, foram responsáveis por sequestrar o avião Airbus-300, de prefixo PP-CLB, da
Natural do Ceará, Fernando Antônio Santiago, ex-bancário então com 20 anos, junto do paulista João Luis de Araújo, conhecido como “Santinho”, com 19 anos na época, comandaram o sequestro. A esposa de Fernando, Raimunda Aníbal Santiago, e a filha do casal, com apenas três meses, o acompanharam na ocasião.
Segundo reportagem do O POVO, na edição de 18 de abril de 1984, o voo transportava 172 passageiros e, dessas pessoas, 74 embarcaram em Fortaleza. Naquele dia, a aeronave, que iniciou o trajeto em São Paulo, deveria ter chegado à Manaus (AM), passando por escalas em Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA), Recife (PE), Fortaleza (CE), São Luís (MA) e Belém (PA).
As motivações do sequestro não foram esclarecidas nos primeiros dias após o ocorrido, mas havia especulação de que a trama tinha causa política. O desvio do voo ocorreu no período de redemocratização do Brasil, momento em que o país estava em processo de transição da ditadura militar (1964-1985) para o regime democrático.
Em edição do O POVO de 7 de fevereiro de 1984, José Araújo Vasconcelos, o diretor da escola onde Fernando Santiago e João Luiz de Araújo estudaram contabilidade, defendeu que os motivos para a interceptação do voo foram políticos. Já o irmão de Fernando, Edson Santiago, culpou João por “fazer a cabeça dos companheiros, incentivando-os a participarem de reuniões políticas”.
À época, a mãe de Fernando foi procurada pelo O POVO. “Só sei uma coisa: em Cuba ele deve estar muito feliz. A sua vontade era mesmo a de ir embora para lá, porque não gostava do regime daqui que, segundo sempre disse, causa muita fome, exploração e desemprego”, disse Antônia Santiago, que falava sobre estar cansada dos interrogatórios.
Segundo ela, Fernando “juntou com o que vinha guardando a indenização recebida do Banco Real” para realizar a viagem, mas disse que não lembrava em qual outro banco essa poupança vinha sendo guardada.
Os dias que se sucederam após o sequestro foram de incertezas para os órgãos responsáveis por realizar as investigações.
Conforme apurado no período, os líderes do sequestro integraram uma entidade estudantil no colégio em que estudavam, onde teriam “criado embaraços à coordenadoria, a tal ponto que a direção da escola, apoiada pela congregação de professores, extinguiu o órgão estudantil”, apontou O POVO na época.
Entre os participantes das atividades estudantis da entidade, a escola informou que havia uma estranho que integrava o grupo e que, mais tarde, no episódio do sequestro, seria mencionado como um dos possíveis membros da ação. Entra na história, o tal desconhecido, apontado como “Rui”.
Com nome e sobrenome, o estranho identificado era Rui Holanda, ex-filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT). A participação de Rui não foi comprovada, mas a Polícia Federal também o investigou.
Em meio à confusão ocasionada pelo crime de sequestro da aeronave, o PT estava sendo vinculado a Rui Holanda. Para se defender, a sigla divulgou, em nota oficial, que repudiava o ato cometido pelos então chamados, na época, de “piratas aéreos”.
“Repudiamos qualquer tentativa de querer envolver o Partido dos Trabalhadores em episódios que não lhes dizem respeito, com o claro propósito de semear confusão e tentar macular a sua imagem”, informa nota do partido, divulgada pela executiva regional e assinada pelo então presidente Gilvan Rocha. O texto foi veiculado pelo O POVO em 1984.
À época, a legenda destacou ser “um partido de massas, aberto e democrático, comprometido, unicamente, com as legítimas lutas dos trabalhadores”. Disse ainda que nas discussões internas e em documentos do partido, nada havia para dar incentivo a atos dessa natureza.
Empresário que viria a ser deputado federal em 1995, Nelson Otoch, falecido em agosto de 2022, estava no voo que foi interceptado. Ele e a família estavam a caminho de Orlando, nos Estados Unidos. Otoch contou que, após o avião levantar voo em São Luís, no Maranhão, a aeronave estava programada para pousar às 23h30min em Belém, no Pará.
Após as 23h30min, quando perceberam que o pouso não iria ocorrer, os passageiros pediram informações aos tripulantes. “Depois de pressionar os comissários, recebemos informações muito vagas de que, provavelmente, estaria havendo mau tempo em Belém e que talvez fossemos para Manaus, mas nada com certeza”, contou.
Para Nelson, o nervosismo de comissários deixou transparecer que havia algum problema. “Notamos alguns comissários dizendo que 'estava tudo bem'. Um deles deixou escapar que estávamos passando por uma situação difícil, aí nós percebemos que estávamos sendo sequestrados”.
O ex-deputado disse também que uma informação “de boca em boca” sobre serem seis pessoas envolvidas no ato foi se espalhando entre os viajantes. Contavam que dois estavam na cabine com os comandantes e, os outros quatros, estariam disfarçados entre os passageiros. “Criou uma tensão muito grande para todo mundo, porque ninguém sabia quem era o sequestrador e quem era o sequestrado”, disse.
Os momentos de tensão foram longos. Nelson falou, em detalhes, que o avião pousou em Paramaribo, capital de Suriname, pequeno país localizado na costa nordeste da América do Sul: “Chegamos aqui (Suriname) às 1h10min da manhã sem saber onde estávamos e ficamos presos dentro do avião até as 4h30min”.
Segundo ele, os comissários aconselhavam a não realizarem “movimentos que pudessem parecer suspeitos” e que, para a segurança dos passageiros, todos deveriam continuar sentados”. Com apoio do cônsul do Brasil, negociações foram realizadas no local após o pouso da aeronave.
No Suriname, o comandante do avião recebeu suporte do cônsul do Brasil para negociar a retirada do policiamento do Exército que estava no local do pouso, além da entrega de mapas e rotas para que eles deixassem o país e seguissem para o destino que desejavam, Cuba.
O acordo também seria para trocar os passageiros por combustível. Com êxito nas negociações, a aeronave seguiu para Havana. Ao entrar no território cubano, o avião já não transportava mais nenhum passageiro. Todos foram desembarcados na escala forçada em Suriname. Apenas os 14 tripulantes estavam a bordo.
A aeronave pousou em Camaguey, ao leste de Havana, capital da Cuba, onde chegaram faltando 10 minutos para acabar o combustível. No local, as três pessoas apontadas como sequestradores se entregaram às autoridades cubanas e os tripulantes foram acomodados no país até retornarem às terras brasileiras.
No Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro (Galeão), os comandantes Milton Cruz e Jaime Danne falaram da experiência à imprensa, pouco depois de voltar de Cuba com outros 14 tripulantes. Na mesma entrevista, que ocorreu em área reservada para a tripulação e onde familiares os aguardavam, Jayme Maurício Dahne descreveu o episódio como “uma experiência terrível”.
“Os dois sequestradores eram frios, calculistas, não aceitavam diálogo e só davam ordens. Eu e o Milton seríamos os primeiros a morrer se as coisas saissem erradas”, contou Jayme Dahne, conforme reportagem do O POVO.
Segundo o comandante Milton Cruz, que contou detalhes na época, ninguém ficou ferido durante o sequestro e os membros da tripulação estavam bem após o acontecimento.
As relações diplomáticas entre Brasil e Cuba foram rompidas com a instauração da ditadura militar brasileira em 1964. Foram reatadas apenas em 1986. Com o afastamento entre as nações, as autoridades cubanas mantiveram restritas informações sobre o assunto.
"O episódio de sequestro da Airbus da Cruzeiro e seu desvio para Camaguey, no Centro de Cuba, continuava sendo cercado pela maior discrição", informou O POVO na época. “Idêntico silêncio era mantido sobre a identidade e a situação dos sequestradores, ignorando se foram transladados a Havana ou permanecem em Camaguey”, consta da edição do jornal.
O retorno dos sequestrados foi marcado por emoção. No dia seguinte ao sequestro, os passageiros desembarcaram em Belém (PA) e seguiram para destinos diversos. “Não faltaram as lágrimas dos parentes que os esperavam”, segundo conta a edição do O POVO da época, que narra a chegada de parte dos passageiros ao Aeroporto Internacional Pinto Martins, em Fortaleza.
Ainda de acordo com a matéria, alguns dos presentes no voo preferiram seguir viagem para o destino previsto antes da adversidade.
A tripulação, mantida mais tempo sob a guarda dos criminosos, voltou para as terras brasileiras no dia 6 de fevereiro de 1984. Desembarcaram no Rio de Janeiro os 14 tripulantes que foram mantidos na aeronave após o pouso em Suriname, onde os passageiros foram trocados por combustível.
No primeiro voo após o sequestro que desviou o avião para Cuba, a aeronave pousou em Fortaleza também em 6 de fevereiro, com a tripulação toda substituída. Entre os 64 passageiros que estavam a bordo, desembarcou a artista Dercy Gonçalves, que realizaria show na capital cearense.
Após prisão em Cuba, os sequestradores retornaram ao Brasil. O diretor Bené Saboia contou a história em um documentário intitulado Último Pau de Arara, de 2001. Na produção, é citado que Fernando Santiago já solicitava a saída do país, na condição de turista, para ele e a esposa, antes do planejamento da interceptação da rota da aeronave.
O documentário aponta que o livro A Ilha, de Fernando de Morais, inspirou a ação nas alturas. A obra é conhecida por apresentar uma realidade socialista em Cuba. “Fidel Castro para mim representa o maior revolucionário, a pessoa mais humana que existe”, disse Fernando em entrevista para o documentário, ainda país no caribenho, no ano de 1988.
Em detalhes, João Luís, o “Santinho”, comentou que não houve problemas para embarcar com as armas. “O engenheiro de voo disse que não tinha mapas, e eu, nos preparativos para essa viagem-sequestro, lembro que recortei o Mapa-múndi e coloquei na bolsa. E eu mostrei para ele”, disse, no que foi respondido com um “não era esse tipo de mapa”, por um dos tripulantes.
“O momento que o avião estava subindo foi o momento que nós escolhemos, porque estava todo mundo sentado, imobilizado”, detalhou Fernando Santiago. Ele confirmou a motivação política do ato e disse: “O país (Brasil) vivia em um momento de abertura que nós não acreditávamos”.
A aeronave estava com pouco combustível, mas isso não foi o suficiente para atrapalhar os planos dos sequestradores, que ameaçaram ser “Cuba ou lugar nenhum” o destino do voo. Após desembarcarem em Havana, os investigados passaram mais de um mês detidos em uma casa, mas João Luís descreveu como não sendo uma prisão, embora eles estivessem limitados a ficar dentro da residência.
O interrogatório das autoridades cubanas girou em torno da conjuntura política do Brasil, conforme disse o “Santinho” na entrevista para o filme. De volta ao Brasil, Fernando Santiago e João Luís, após formados em História e Psicologia em Cuba, respectivamente, tomaram rumos diferentes.
Em 2001, quando houve o lançamento de Último Pau de Arara, Fernando estava no cargo de diretor do Departamento de Comércio da Secretaria de Estado da Indústria, Comércio e Mineração do Amapá. Já João passou a atender em hospitais e a ensinar espanhol no Ceará, segundo informações da obra audiovisual de Bené Saboia.
Aquele foi o segundo sequestro registrado naquela mesma rota para Manaus, também com destino a Cuba. O primeiro ocorreu em 8 de outubro de 1969. No caso anterior, quando um jato Caravelle da Cruzeiro do Sul foi desviado para Havana, 43 passageiros estavam a bordo.
Aquele primeiro sequestro teve, aparentemente, teor político mais evidente. O sequestro foi realizado na data de aniversário do guerrilheiro Ernesto Che Guevara, figura importante na Revolução Cubana (1953-1959).
Dois cearenses estavam naquele voo — o ex-oficial Pompilio Rodrigues Lemos, como parte da tripulação, e o ex-juiz de futebol, Gilberto Ferreira.
Resgatar a história através de documentos que apresentam fatos, relatos e imagens para a produção desta reportagem detalha um trabalho minucioso que exige tanto técnica quanto sensibilidade.
Miguel Pontes, pesquisador do O POVO Doc, explica que o processo de busca por estes conteúdos históricos começa quando o jornalista solicita o levantamento sobre o tema, seja uma foto ou PDF, relacionado ao evento que será abordado. O acervo O POVO Doc contém todas as publicações do O POVO desde a primeira edição, em 1928.
O pesquisador conta que o pedido de resgate do acervo sobre o sequestro do avião Airbus-300 foi neste mês.
"A partir deste pedido, começamos a pesquisar o material. Como era 1984, coloquei o período de 1980 até 1990 e joguei os termos 'sequestro', 'voo', 'Cruzeiro do Sul', e o sistema retornou os resultados em PDF. Fui abrindo cada um e separando o material que encontrei. Se não me engano, foram 24 páginas que citavam o ocorrido, desde assuntos grandes até pequenas restrições".