Não é incomum que um governo recém-eleito tente mostrar que tem “a força da mudança”. Do gestor da menor prefeitura ao presidente do país mais influente do mundo, toda nova gestão quer provar aos eleitores que vai cumprir o que prometeu.
E este ano, em 25 dias de mandato, Donald Trump mirou na transformação radical, em diversos aspectos, da política dos Estados Unidos e assinou 67 ordens executivas - um decreto presidencial que estabelece diretrizes da administração federal.
Completamente alinhados à agenda Maga - acrônimo em inglês para o slogan “Faça a América ser grandiosa novamente”- as ordens executivas implementam mudanças significativas em áreas como governança, economia, direitos civis, segurança nacional, e relações exteriores, deixando explícito o compromisso da administração Trump com uma abordagem nacionalista e conservadora.
Mas por que o número importa? Historicamente, os primeiros 100 dias de governo são considerados decisivos para os mandatos nos Estados Unidos desde o presidente Roosevelt, na década de 1930. É nesse período que o mandatário costuma imprimir sua marca e mostrar a abrangência do seu poder.
Em um levantamento exclusivo, O POVO+ mostra que, comparado com os últimos nove governos americanos, em meio século, Donald Trump já é o que mais assinou decretos nos primeiros 100 dias de mandato, mesmo que ainda faltem 75 dias para o marco.
Trump é o presidente que mais assinou decretos nos primeiros 100 dias
Durante sua primeira passagem pela Casa Branca, em 2017, o republicano assinou 33 decretos nos primeiros 100 dias. Ao longo do mandato (2017-2021), o total foi de 220. Em termos de comparação, seu antecessor, Barack Obama, assinou 277 ordens executivas ao longo dos oito anos em que foi presidente.
Já na primeira semana do atual mandato, Trump superou a si mesmo, e assinou 36 ordens. No levantamento feito para esta reportagem, buscamos do dia da posse, em 20 de janeiro de 2025 até o dia 14 de fevereiro de 2025, chegando ao total de 67 decretos.
As ordens executivas de Trump classificadas em cinco eixos
O artigo II da Constituição dos Estados Unidos confere ao presidente o poder executivo sobre o governo, incluindo a obrigação de “cuidar de que as leis sejam fielmente executadas”.
“Uma ordem executiva é uma diretiva escrita, assinada pelo presidente, que ordena que o governo tome medidas específicas para garantir que as leis sejam fielmente executadas”, explica Christopher Anders, diretor de Política e Assuntos Governamentais, Democracia e Tecnologia da União Americana das Liberdades Civis (ACLU).
“Isso pode significar, por exemplo dizer ao Departamento de Educação para implementar determinada regra, ou declarar uma nova prioridade política”, prossegue.
As ordens executivas, no entanto, não podem substituir estatutos e leis federais. Assim como no Brasil, novas legislações precisam ser primeiro aprovadas pelo Congresso e depois assinadas pelo presidente.
As ordens executivas não podem, portanto, antecipar esse processo. Além disso, a Constituição dá ao Congresso o controle sobre assuntos como impostos e gastos, além de certos poderes de guerra.
“A maioria das coisas que pensamos quando pensamos em leis vem do Congresso: o que conta como uma ofensa criminal, quanto o governo federal pode tributar da nossa renda, fazer tratados e até mesmo declarar uma guerra”, reforça Anders.
Sendo assim, com uma ordem executiva, o presidente não pode promulgar uma nova lei federal, mas pode dizer às Agências Federais como implementar uma lei.
“Por exemplo, apenas o Congresso pode declarar uma determinada droga legal ou ilegal. Mas com uma ordem executiva, o presidente pode dizer ao Departamento de Justiça se processar certos casos de apreensão de drogas é uma prioridade ou não”, pontua Christopher.
Christopher Anders explica também que todos os presidentes americanos, de George Washington a Joe Biden, emitiram ordens executivas e que elas fazem parte da rotina do governo.
“Embora algumas ordens executivas sejam bastante mundanas, como declarar um feriado federal ou um dia de luto, outras estão entre as ações mais importantes que o governo dos Estados Unidos já tomou”, afirma.
Abraham Lincoln, por exemplo, usou uma ordem executiva – a Proclamação de Emancipação – para abolir a escravidão durante a Guerra Civil Americana. Já em 1965, o presidente Lyndon Johnson emitiu a ordem executiva 11246, que proibia a discriminação no trabalho com base em raça, cor, religião e origem nacional para todas as organizações que recebessem contratos federais.
“Algumas das piores ações do governo federal também vieram por ordem executiva. Trump fez isso agora e Roosevelt, por exemplo, usou desse dispositivo para forçar a realocação e internação de nipo-americanos em campos de concentração”, avalia o diretor da ACLU.
Essa diretiva de 1965 também exigia que os contratados federais estabelecessem programas detalhados de ação afirmativa, para garantir a equidade nos postos de trabalho. A ordem executiva vigorou por 60 anos. Em um dos primeiros atos do atual mandato, Trump extinguiu todas as políticas federais de ações afirmativas.
Do total, 13 medidas estão ligadas ao eixo de Governança, Transparência e Justiça, incluindo investigações de atos governamentais passados, medidas contra a censura e ações relacionadas a ex-funcionários da inteligência.
A ação mais notória dentro do eixo foi a que concedeu o indulto presidencial a quase 1.600 de seus apoiadores que foram presos na invasão ao Capitólio, em 2021.
Ele se referiu várias vezes aos presos no tumulto como "reféns". Pelo menos 600 pessoas foram acusados de agredir ou impedir a ação agentes federais.
Trump também comutou as sentenças de membros dos Oath Keepers e Proud Boys, grupos de extrema direita que foram condenados por conspiração contra a ordem democrática.
O benefício também foi extendido a 23 pessoas descritas pela Casa Branca como "manifestantes pró-vida pacíficos". Dez delas foram processadas no governo Biden por bloquear o acesso e depredar uma clínica de aborto em Washington.
O presidente assinou ainda um perdão total e incondicional para Ross Ulbricht, o criador do Silk Road, um mercado da deepweb onde drogas ilegais eram vendidas. Ulbricht foi condenado à prisão perpétua em 2015 por conspiração de narcóticos e lavagem de dinheiro, mas Trump disse que isso foi um "exagero do governo".
Já no eixo Economia e Política Interna são 17 medidas, contando com a eliminação de programas de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI), a aceleração de projetos de energia no Alasca e a revisão e eliminação de regulamentações federais.
Como divulgado por uma reportagem do The Washington Post, as diretivas afetaram inclusive a Fundação Nacional de Ciências, que designou uma equipe para vasculhar milhares de projetos de pesquisa científica ativos, juntamente com uma lista de palavras-chave, na tentativa de determinar se eles incluem atividades que violam as ordens executivas.
A revisão já começou a reverberar inclusive em projetos internacionais, conforme revelou o colunista do UOL Jamil Chade. No dia 7 de fevereiro de 2025, os professores de direito Lorena Martoni de Freitas e Marco Antonio Sousa Alves receberam uma notificação oficial da Fulbright, programa de financiamento acadêmico ligado ao Birô de Assuntos Culturais e Educacionais dos Estados Unidos: se quisessem receber o dinheiro, teriam de tirar de seu projeto expressões como “direitos humanos”, “opressão de gênero, classe e raça” e “justiça social”.
Esse caso revela os esforços do governo Trump em impor uma agenda que suprime todas as discussões de diversidade e justiça social. Tanto que o eixo Cultura, Sociedade e Direitos Civis compreende 16 ordens executivas, que determinam, por exemplo, a definição de "sexo" em vez de "gênero" em documentos governamentais, definindo que o Estado para de reconhecer outras expressões que não sejam "homem" e "mulher".
Dentre as novas diretizes federais, está também o banimento de atletas transexuais de todas as competições esportivas. Antes de assinar a ordem executiva, Trump declarou que "a guerra contra os esportes femininos acabou", dizendo que, durante os Jogos Olímpicos de Los Angeles, "meu governo não ficará parado assistindo homens derrotarem e agredirem atletas femininas".
Ele afirmou ainda que ordenaria ao secretário de Segurança Interna "que negasse todo e qualquer pedido de visto feito por homens tentando entrar fraudulentamente nos Estados Unidos, identificando-se como atletas mulheres..."
Além disso, outras normativas estabelecem a proibição de financiamento federal para cuidados de saúde, de transição de gênero e o fim de programas de diversidade, equidade e inclusão em órgãos federais e nas escolas.
Outras 12 ordens estão relacionadas à Segurança Nacional e Controle de Fronteiras, impondo a retomada da construção de um muro na fronteira sul, o aumento das tarifas sobre bens importados e o estabelecimento de forças-tarefas de segurança interna.
Um dos argumentos da Casa Branca é que as medidas estão sendo tomadas "para responsabilizar o México, o Canadá e a China por suas promessas de deter a imigração ilegal e impedir que o venenoso fentanil e outras drogas fluíssem para nosso país".
O fentanil está associado a dezenas de milhares de mortes por overdose nos EUA a cada ano, e e governo Trump diz que os produtos químicos vêm da China, enquanto gangues mexicanas os fornecem ilegalmente e administram laboratórios de fentanil no Canadá.
Em resposta, o primeiro-ministro canadense Justin Trudeau disse que seu país era responsável por menos de 1% do fentanil que entrava nos EUA. Os conflitos envolvendo as fronteiras motivaram a assinatura de outras 9 ordens executivas.
Ligadas ao eixo de Política Internacional e Relações Exteriores, os decretos anunciam o distanciamento dos Estados Unidos de parceiros internacionais, com destaque para a retirada dos EUA de acordos internacionais como o Acordo de Paris e a Organização Mundial da Saúde, bem como a revisão e suspensão da ajuda externa.
Esta é a segunda vez que Trump ordena que os EUA sejam retirados da OMS, e no momento da assinatura da ordem executiva, voltou a criticar a maneira como o organismo internacional lidou com a pandemia de Covid-19.
O texto do decreto justifica a retirada como resultado de "pagamentos injustamente onerosos" que os EUA fizeram à OMS. Sem o financiamento americano, especialistas apontam um forte impacto na capacidade da OMS de responder a emergências como um surto de ebola ou MPOX.
Além disso, podem haver outras consequências para a saúde dos próprios americanos se o progresso no combate a doenças infecciosas, como malária, tuberculose, HIV e Aids, for revertido.
65 Ordens Executivas de Trump alteram a organização política dos EUA
Análise
por Jurema Araújo*
As recentes medidas protecionistas anunciadas por Donald Trump reacenderam a instabilidade no comércio global. As tarifas impostas a produtos importados do México, Canadá e China configuram um cenário desafiador para as economias dependentes do comércio exterior.
Mas, para o Brasil, essas mudanças podem ser tanto ameaças quanto oportunidades. A questão é: estamos preparados para jogar esse novo xadrez econômico de maneira estratégica?
O impacto para o agronegócio brasileiro
O setor agropecuário brasileiro pode ser um dos mais impactados pelas mudanças tarifárias. A imposição de barreiras comerciais aos produtos chineses nos EUA, por exemplo, pode levar a China a buscar novos fornecedores — e o Brasil tem todas as condições para ocupar essa posição.
Ao mesmo tempo, no entanto, uma maior concorrência de produtos chineses desviados dos Estados Unidos pode pressionar a indústria brasileira em outros setores.
Esse cenário volátil exige que as empresas nacionais, especialmente do agronegócio, antecipem tendências e fortaleçam suas cadeias produtivas.
Além de ampliar a competitividade, diversificar mercados e buscar inovação devem ser prioridades. A simples reação às oscilações do comércio global não é suficiente.
A estratégia deve ser proativa e fundamentada em inteligência de mercado.
O papel do Conselho de Administração
O Conselho de Administração das empresas brasileiras desempenha um papel crucial nesse contexto. Mais do que supervisionar operações, deve ser responsável por antecipar riscos e identificar oportunidades.
Uma empresa que dependa de fornecedores ou mercados específicos pode ser severamente impactada por mudanças repentinas no cenário global.
Dessa forma, cabe ao Conselho garantir que a organização tenha flexibilidade e resiliência para lidar com eventuais pressões cambiais, custos crescentes e disputas comerciais internacionais.
O economista Joseph Schumpeter, em sua teoria da destruição criativa, nos lembra que a inovação e a capacidade de adaptação são os motores da sobrevivência no capitalismo.
Empresas que compreendem essa lógica e se preparam para mudanças estruturais têm mais chances de se manterem competitivas. Da mesma forma, os Conselhos precisam garantir que suas organizações estejam sempre um passo à frente das transformações globais.
Estratégia para evitar o xeque-mate
Diante desse novo xadrez do comércio internacional, o Brasil precisa agir estrategicamente para evitar o xeque-mate da competitividade. Algumas medidas são essenciais:
Diversificação de mercados: Reduzir a dependência de um único parceiro comercial é fundamental. O Brasil deve ampliar sua presença em mercados alternativos para minimizar impactos de disputas entre grandes potências.
Inovação e tecnologia: Empresas que investem em processos modernos e eficientes aumentam sua competitividade global. O avanço tecnológico pode ser um diferencial crucial para se destacar em um ambiente econômico cada vez mais acirrado.
Monitoramento de políticas internacionais: Estar atento às movimentações geopolíticas permite uma melhor adaptação às novas realidades do comércio exterior. A previsibilidade pode ser um grande trunfo para evitar surpresas desagradáveis.
Governança corporativa sólida: Conselhos de Administração bem estruturados ajudam empresas a lidarem com volatilidade econômica e a planejarem ações estratégicas para o longo prazo.
O comércio global sempre foi e continuará sendo um jogo de forças dinâmico. Empresas que entendem essa realidade e se preparam para as mudanças conseguem não apenas sobreviver, mas prosperar.
O Brasil tem a oportunidade de se posicionar estrategicamente nesse tabuleiro internacional. Resta saber se vamos fazer os movimentos certos ou simplesmente reagir às jogadas dos outros jogadores.
* Jurema Araújo é conselheira Certificada pelo IBGC Instituto de Governança Corporativa desde 2013 (CCA - IBGC) Selecionada para a 4ª. Turma do Programa de Diversidade em Conselhos de Administração do IBGC em 2019/2020. Membro do Conselho Curador da Fundação Foco (Otacílio Coser) desde setembro 2019 (foco.org.br), com 27 anos de experiência profissional em marketing e vendas em diversos setores, além de 15 anos de experiência C-Level como Gerente Geral,Diretora-Presidente, Diretora de Marketing e Diretora de Vendas
Na construção desta reportagem, O POVO+ consultou arquivos públicos do governo federal dos Estados Unidos da América. Para contabilizar as ordens executivas de cada presidente, utilizamos os registros do Federal Register, que é o Diário Oficial do Governo Federal dos Estados Unidos da América.
O periódico existe desde 14 de março de 1936, e contém publicações rotineiras e notificações públicas das agências do governo americano. A partir de dados públicos, verificamos desde o presidente Gerald R. Ford, que assumiu o mandato em 1974, compreendendo um ciclo de 50 anos.
Para chegar aos documentos originais de todas as ordens executivas assinadas pelo presidente Donald Trump no período de 20 de janeiro a 12 de fevereiro de 2025, utilizamos registros do Federal Register e do Escritório de Publicações do Governo dos Estados Unidos.
Algumas ordens executivas ainda não estavam registradas nas plataformas, e foram coletadas diretamente do site oficial da Casa Branca, que mantém uma página chamada "Atos Presidenciais", que indexa - dentre outros assuntos - todos os decretos assinados pelo presidente.
A partir dos documentos originais, traduzimos os títulos e categorizamos cada ordem executiva dentro de cinco eixos, estabelecidos a partir de uma análise dos temas mais comuns.
Para chegar aos eixos temáticos, esta reportagem também contou com o auxílio de ferramentas de Inteligência Artificial. Na ferramenta Notebook LM, do Google, fizemos o upload das tabelas retiradas dos registros públicos e a partir de comandos (prompts) específicos, chegamos aos resultados apresentados.
Na mesma ferramenta, outro conjunto de prompts nos ajudou a contabilizar a quantidade de ordens executivas assinadas nos primeiros 100 dias de governo dos outros presidentes.
O Notebook LM trabalha exclusivamente com a base de dados fornecida pelo usuário e não extrai dados da internet ou outras fontes. Não foram usadas quaisquer ferramentas de IA generativas para texto, áudio ou imagens.
Para garantir transparência e reprodutibilidade, uma versão pública dos dados coletados está disponível ao leitor.
"O que você acha do novo pacote de medidas do governo Trump? Me conta aqui nos comentários. Eu sou Mateus Mota, repórter do O POVO+ e aqui você encontra mais conteúdos sobre política, economia, comportamento, e muito mais! "