No Sertão, o sinônimo de chuva é inverno, e ela é bem-vinda. Em 1979, o ano começou com boas perspectivas. Mas, após breve período de precipitações em todo o Estado, a estiagem tomou conta. O ano anterior já não tinha sido o ideal, com chuvas ligeiramente abaixo do padrão histórico.
Pelos cinco anos que se seguiram, de 1979, as precipitações ficaram sempre abaixo da média, na mais prolongada seca sobre a qual havia registro até então — que viria a ser superada pelo período de poucas precipitações entre 2012 e 2017.
Aquela seca chegou ao fim com a quadra chuvosa de 1984. Em outra realidade social e de infraestrutura, o período há mais de quatro décadas marcou a última grande fome relacionada à seca no Ceará, amplamente documentada nas páginas do O POVO.
O Brasil atravessada a transição do período ditatorial para o regime democrático. Houve o movimento pela Anistia e a campanha "Diretas Já". As estiagens eram recorrentes, mas a proporção e a duração não eram esperadas, o que ocasionou uma tragédia da fome, cujas estimativas apontam para milhares de mortes.
"Com poucas exceções, não chove no Estado do Ceará. Em alguns municípios as primeiras chuvas vêm garantindo as plantações e a água para o gado, mas na sua maioria a estiagem já está gerando uma série de complicações, inclusive desidratação, como é o caso de Sobral, onde o sol causticante já levou várias crianças aos hospitais”, diz edição do O POVO de 17 de fevereiro de 1979.
"Não foi a última grande seca, mas foi, talvez, a última que houve grande impacto social de aumento de fome, mendicância, migrações"
A hipótese de uma seca total chegou a ser “afastada” pelo então governador do Ceará, Virgílio Távora, em encontro com jornalistas no gabinete, em março de 1979, convidados por ele para falar sobre o problema.
“Considero afastada de todo a ocorrência de seca total no Ceará este ano. Venho acompanhando de perto e com muita atenção o comportamento das chuvas nas várias regiões do Estado e não posso chegar a outra conclusão”, disse Virgílio Távora, de acordo com O POVO de 26 de março de 1979.
Para o chefe do Executivo estadual, mesmo com a estiagem alastrando-se por determinadas regiões do Ceará, o quadro não comportaria “descrição exagerada” porque, para ele, isso contribuiria para “estabelecer a inquietação no Estado”.
“Não foi a última grande seca, mas foi, talvez, a última que houve grande impacto social de aumento de fome, mendicância, migrações”, explica Frederico de Castro Neves, professor titular aposentado do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Conforme o livro Genocídio do Nordeste 1979-1983, publicado pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), foram recolhidos nomes de quase cinco mil mortos na região, a maioria crianças. O livro reúne artigos de diversos autores sobre o assunto, em levantamento realizado de 1984 e 1985, com apoio de entidades e setores de movimentos populares.
O governador reconheceu, na ocasião, que existia, de fato, uma faixa crítica no Estado, compreendida por Inhamuns, Iguatu e o Médio Jaguaribe. Porém, a situação verificada foi mais severa que o esperado e desencadeou movimentos de êxodo, saques e mortes devido à fome.
O prenúncio de tempos difíceis ocorreu em 19 de março de 1979, Dia de São José, padroeiro do Ceará. A crença sertaneja aponta que, se não chover até esta data, é sinal de que o ano será de seca. O dia do padroeiro ocorre na véspera do equinócio de outono, o que favorece chuvas até esse período. Naquele ano, não choveu como esperado.
Em abril, reportagem do O POVO percorreu as estradas de Jaguaribe e conversou com pessoas, que estavam "sempre recordando o fato de não ter chovido no Dia de São José".
O então prefeito do Município, José Távora Pinheiro, atendeu O POVO e contou sobre o cenário: “A situação é difícil (...). Com a chuvinha de janeiro os agricultores plantaram. De lá para cá, as chuvas foram muito irregulares e a verdade é que tudo está perdido: feijão, milho e algodão”.
José Távora disse ainda, na ocasião, que a situação mais difícil era a da pecuária, pois não havia comida para o gado nem para outras criações. Segundo ele, muitos criadores estavam passando por maus momentos, com a perda de gados, cabras, bodes e carneiros por falta de alimentação adequada.
Icó, Cedro e Iguatu enfrentaram cenários semelhantes. O milho foi perdido, mas nas lavouras mantinha-se a esperança de salvar o arroz e o feijão. A falta de chuva e a crença em São José, padroeiro do Estado, voltaram a ser lembradas: “O céu não deu água no dia 19 de março, não podemos mais esperar por nada”, trouxe a edição do O POVO de 3 de abril de 1979.
Em uma etapa do “itinerário da estiagem”, percursos que O POVO percorreu em alguns municípios do Interior para retratar a situação da seca e da fome, a equipe deixou Iguatu rumo aos Inhamuns, com paradas em Acopiara e Mombaça.
Os caminhos eram cobertos pelo “ilusório verde”, campos que nasceram de chuvas passageiras, mas que não indicavam o real cenário em que estavam as regiões. “O mais chato é que o verde está por toda parte, por onde se tem andado, da zona Jaguaribana até o Iguatu. Se a gente não parar para ouvir as pessoas, os sertanejos, os agricultores, os criadores (...), certamente vai considerar tudo às mil maravilhas no Ceará”, narrou o repórter Carvalho Nogueira.
Em Acopiara, a fome já fazia morada. O prefeito do Município, o médico João Uchoa de Albuquerque, "impressionado com a situação, teve que se recolher ao leito". O gestor estava acamado, mas recebeu os jornalistas.
Após deixar a residência do prefeito, em uma das ruas de Acopiara, quando a equipe O POVO partia com destino a Mombaça, a cena de um homem sentado em um banco de carnaúba, em “frente à uma casinha, magro e amarelo”, enquanto olhava para o céu, capturou a atenção da equipe. Era Raimundo Alves Bezerra, que plantou “10 litros de milho, mas perdeu tudo”.
Seu Raimundo confessou ao jornal que havia mais de seis meses não comia carne e ele, junto de sua família, apenas tinham à disposição feijão e milho, mas nos dias seguintes só restaria um “pouquinho de milho”, porque o “feijão já estava no fim”, relatou o homem.
Já em Mombaça, o então prefeito, Walderez Diniz Vieira, e o vice, José Vinício de Lima Martins, disseram, na ocasião, não acreditar mais em chuva. Conforme relatou O POVO, eles estavam desolados, principalmente por não haver água potável.
Em Acopiara e Mombaça, havia medo. O prefeito de Acopiara estava aflito. Assim como o prefeito de Mombaça, como viria a descobrir o repórter. O temor era de invasões das cidades pelos "flagelados", pessoas que fugiam da seca e buscavam sobreviver em meio à estiagem.
João Uchoa, de Acopiara, estava apreensivo com a possibilidade, segundo ele, de três mil camponeses de Umari, uma das áreas mais castigadas pela seca, chegarem a ocupar o Município. Seriam pessoas que, naquele momento, não tinham “nem trabalho nem o que comer”, disse o prefeito.
A movimentação dos flagelados, que muitos gestores temiam, viria a acontecer diversas vezes na última grande fome. Em 1979, quando prefeitos já pareciam apreensivos, era apenas o começo de um período marcado pela luta pela sobrevivência em meio à seca prolongada.
Durante essa seca, “foi um grande momento de mobilização da população pobre tentando obter os seus direitos, vamos dizer assim, direito à vida, direito à comida, pela via direta”, explica o professor Fredericode Castro Neves.
Era ainda regime militar e o Exército assumiu o papel de organização e controle dessa população assolada pela fome, para que ela, no auge da necessidade, não tomasse para si a decisão de obter o alimento com a própria força.
“Quer dizer, o Exército acabou assumindo o lugar de distribuição de alimentos e organização de obras públicas, exatamente para evitar que a população pobre assumisse, ela mesma, a decisão sobre o que fazer, porque muitas vezes os alimentos eram armazenados para serem distribuídos à população e eram usados como especulação de preço”, descreve o professor.
“O Exército foi utilizado para isso, para tentar conter essa mobilização da população trabalhadora e esse potencial de revolta que ela tem”, pondera.
"É a fome, é a fome"
Em 1979, após meses de seca, os saques passaram a ocorrer com frequência. Em abril do mesmo ano, no município de Quixeramobim, uma súbita presença de cerca de 800 pessoas fugindo da estiagem surpreendeu a cidade.
Para o então prefeito Álvaro Carneiro, a explicação era simples. Os agricultores estavam impacientes e famintos. Ele considerava a movimentação normal, embora condenasse, conforme mostrou à época a edição do O POVO, o incentivo entre alguns dos flagelados a invadir o comércio, especialmente o armazém da Companhia Brasileira de Alimentos (Cobal).
As sedes da Cobal, iniciativa criada no governo do ex-presidente João Goulart, faziam parte de uma série de programas sociais de abastecimento e comercialização de alimentos para a população de baixa renda.
Ao mesmo tempo em que Quixeramobim recebia os castigados pela seca, também chegaram soldados do Exército, armados com metralhadoras e revólveres. Alegando medida de segurança, o tenente Soares, responsável pela equipe de militares, informou que o efetivo estava nas ruas para “qualquer eventualidade”.
Ainda no Município, os militares, que estavam em prontidão para controlar possíveis saques e perturbação da ordem, na verdade só registraram as condições miseráveis em que os retirantes estavam.
As pessoas que estavam se amontoando nos arredores da Cobal de Quixeramobim eram revistadas. Nem as sacolas das crianças eram dispensadas da vistoria, mas os militares não encontraram nenhum tipo de arma. Eram apenas pessoas, sem rumo, com fome, e esperando, talvez, um milagre.
Mas os saques vieram a ocorrer. “É a fome, é a fome”, gritava em desespero uma mãe viúva, junto de seus cinco filhos, após participar do saque do armazém da Cobal. Ela “mostrava para todo mundo três sacos de arroz, dois de farinha, dois sabonetes, e cinco pacotes de macarrão”, diz edição do O POVO de abril de 1979.
"Para conseguir isso, dona Sara, além do vestido rasgado, levou um murro de um policial que tentava evitar a invasão do armazém, mas, duas horas depois, ela revelava que tinha assegurado alimentação para seus filhos", narrou Rodolfo Spínola, enviado especial a Quixeramobim.
Mais de 500 pessoas ocuparam o centro de Apuiarés em abril de 1979, em busca de alimento e trabalho. Nos primeiros três dias desde o início da situação, a Prefeitura distribuiu farinha, bolacha e feijão para amenizar a situação. Mas a medida apenas aliviava a situação por um curto momento e, no outro dia, eles retornavam ao local.
Essa não foi uma cena exclusiva de Apuiarés, nem tão pouco só de Quixeramobim. Diversos municípios cearenses registraram o movimento pela sobrevivência e a luta pela comida.
"Se não chover, eu acho que a Guilherme Rocha (rua no Centro de Fortaleza) vai se encher de retirante, pois eu sou do Interior e sei como é seca. O pessoal só fala em vir ganhar a vida na Capital. Quando chega aqui, não encontra emprego"
Outros saques foram cometidos também em Iguatu. Cerca de 300 pessoas invadiram a sede da Cobal na cidade e saquearam o armazenamento no primeiro ano da última grande fome. “O saque foi rápido e os flagelados levaram, além de grande quantidade de cereais, uísque e cigarros”, descreveu o correspondente Julio Braga.
Nesse episódio de saque, e em meio a tantos outros, estavam em curso planos emergenciais do Governo do Estado, mas, famintos, os retirantes não tinham recursos para esperar por socorro.
Em Campos Sales, o cenário era o mesmo, mas com um grupo de menor número, cerca de 70 pessoas, que chegaram à cidade procurando por alimento e um trabalho.
Mês após mês, a situação se agravava. Em 1980, chegou a ser iminente o decreto de calamidade. “Estaremos atravessando uma situação até pior do que ano passado”, disse o governador em exercício do Ceará no período, Manoel de Castro Filho.
Além dos saques, a fuga em busca de meios para sobreviver marca muitos episódios de seca no Ceará. “Se não chover, eu acho que a Guilherme Rocha (rua no Centro de Fortaleza) vai se encher de retirante, pois eu sou do Interior e sei como é seca. O pessoal só fala em vir ganhar a vida na Capital. Quando chega aqui, não encontra emprego”, disse José Silveira, que estava em situação de rua e falou ao O POVO em 1979.
O ápice da seca ocorreu em 1983, ano em que a média anual de chuvas marcou 361,4 milímetros, muito abaixo da média de 809,1 mm, conforme dados da Funceme. De lá para cá, nunca mais o registro histórico apontou ano com tão poucas chuvas.
“Só Deus salva o Inhamuns”, disse o então deputado Júlio Gonçalves Rêgo, que na época estava cumprindo o quinto mandato na Assembleia Legislativa do Ceará (Alece).
O parlamentar esteve em Tauá, Parambu e Arneiroz, onde observou a grave situação. Júlio Rêgo destacou a revolta com a completa falta de água nessas regiões, o que levava famílias a se alimentarem de farinhas, rapadura e bolachas, sem a possibilidade de cozinhar feijões e outros cereais por não ter água para o preparo. Os animais também estavam sendo muito afetados.
O feijão, que não podia ser preparado onde não tinha água e tão costumeiro na mesa do cearense, passou a ser comercializado nas “Feiras do Povo”, em alguns municípios cearenses. Uma iniciativa do governo para disponibilizar feijão de corda a preços mais baixos para a população vulnerável. No Interior, o programa atendeu cidades, especialmente as pessoas inscritas nos “Bolsões da Seca”.
Alguns dos municípios atendidos foram: Santa Quitéria, Canindé, Irauçuba, Monsenhor Tabosa, Poranga, Sobral, Tamboril, Jaguaribe, Alto Santo, Icó, Quixeramobim, Boa Viagem, Iguatu, Fortaleza, entre outros.
Quando a última fome em massa assolou o Ceará, e grande parte do Nordeste, já tinham sido criados órgãos do Governo que atuam para amenizar e combater os efeitos das secas, como a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), desde 1959, e o Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs), fundado em 1909, sob o nome de Inspetoria de Obras Contra as Secas (Iocs).
A edição do O POVO de 17 de abril de 1979 informou haver 180 municípios em situação crítica, distribuídos nos estados do Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba. Eram e quase 2,5 milhões de pessoas atingidas.
Além das contribuições do Governo Federal, o Ceará tomou atitudes próprias também. Uma das iniciativas empregadas pelo Governo do Estado para amenizar a situação era usar “o avião da chuva”, que realizava operações de nucleação artificial, quando nuvens já existentes são bombardeadas com substâncias químicas aglutinadoras capazes de formar gotas de água.
Em 1979, as operações de nucleação começaram em janeiro, “quando se começou a sentir a estiagem em todo o Sertão cearense”, relatou o repórter Carvalho Nogueira. Coordenada pela Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme), a ação, em abril de 1979, ocorreu em Sobral, Santa Quitéria, Tamboril, Monsenhor Tabosa e Crateús.
Além da zona jaguaribana, Boa Viagem, Pedra Branca, Independência, Quixeramobim, Mombaça, Acopiara e o município de Tauá, na região dos Inhamuns.
Uma das iniciativas, ainda em 1979, foi a criação do Programa de Emergência, plano de assistência aos trabalhadores rurais nos municípios atingidos pela seca. Naquele momento, 41 municípios atingidos pela forte estiagem tiveram escritórios instalados.
O programa foi apresentado pela Secretaria da Agricultura do Estado a líderes do Grupo Executivo de Socorro à Calamidades Públicas (Gescap). Funcionava assim: o governo repassava verba para proprietários cujas terras empregavam mão de obra. Pequenos produtores rurais também estavam incluídos no benefício. Os escritórios de emergência recebiam alistamento de trabalhadores, mas não conseguiam incorporar todos.
A perfuração de poços profundos foi um dos procedimentos mais empregados. Em 1979, um convênio entre o Governo do Estado e a Conesp, empresa subsidiária da Sudene, recebeu o aporte de Cr$ 12 milhões para realizar 100 escavações nas cidades que decretaram emergência. O valor, corrigido pelo INPC, equivale a R$ 5.785.346,75 atuais.
No Ceará, articulações com a Sudene ocorreram desde o início da estiagem, quando o governador Virgílio Távora ainda não acreditava que viria a ter, no Estado, um cenário tão devastador. Durante todo o período da grande seca, inúmeras ações conjuntas, como os poços, foram realizadas.
Naquela época, "já havia essa tendência de procurar os órgãos públicos para se inserir em obras públicas que eram feitas para absorver essa mão de obra que ficava disponível”, conta Frederico.
Embora o Programa de Emergência tenha sido importante para abrandar os sintomas da longa estiagem, a iniciativa foi desativada pelo Governo Federal em março de 1980. Conforme informou O POVO em edição do mesmo ano, o balanço foi o seguinte: 227 mil cearenses foram inscritos, açudes, poços e cacimbas foram construídos em propriedades, além de 79 municípios terem sido atendidos.
Em 1980, com a permanência da difícil situação, a Sudene lançou outra vez o plano de assistência aos municípios atingidos, ainda, pela estiagem. Alguns estados do Nordeste foram atendidos além do Ceará, como Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte, que enfrentavam o mesmo quadro.
Em maio de 1980 o Estado do Ceará decretou Emergência em 98 municípios. A decisão foi tomada após reunião com a Sudene, que contou com a participação de governadores da Região Nordeste, além de secretários do Governo Federal.
Muitas reuniões foram feitas. No Cariri, encontro para discutir a seca reuniu representantes da Sudene, parlamentares e o Governo do Estado. A principal sugestão apresentada foi a construção do açude Umari.
Outra ação apresentada para amenizar a fome, naquele quadro emergencial, era a liberação, por parte do Dnocs, dos açudes para que a população pudesse pescar. Essa era uma das formas que o governo utilizava para atender aos famintos.
O plano de emergência do Governo Federal chegou a ser questionado algumas vezes por gestores cearenses, inclusive Virgílio Távora. Em fevereiro de 1982, prefeitos reunidos em encontro da, na época, Associação dos Prefeitos do Estado do Ceará (Aprece) discutiram realizações e limitações da iniciativa, relativas ao ano de 1981.
"O plano de emergência vem prestando grandes serviços, mas há uma série de distorções que precisamos combater", disse Kleber Gondim, à época prefeito de Aracati e presidente da Aprece.
Para ele, uma dessas distorções era o pagamento de salário individual, o que seria um problema ao pensar nas grandes famílias, em que apenas um dos membros poderia receber o auxílio.
”Não faz sentido um homem solteiro ganhar a mesma quantia que um pai de família com cinco filhos”, criticou.
Após o fim do Plano de Emergência, em maio de 1983, o Governo Federal criou os “Bolsões da Seca”, em meados de julho do mesmo ano. O programa foi implantado pela Sudene, no então governo do presidente João Figueiredo.
Na gestão do então governador cearense Manoel Castro Filho, o programa tinha orientação um pouco diferente, e a prioridade, de acordo com o governador, era o aproveitamento de recursos hídricos, da açudagem e da perfuração de poços.
Segundo ele, a diferença para o plano anterior era que os moradores ficariam concentrados onde já moravam. O programa era colocado em prática ao mesmo tempo que novos saques e movimentos migratórios continuavam intensos.
Obras públicas passaram a absorver a mão de obra de agricultores desempregados. Sudene, Exército, além do Dnocs se engajaram nos Bolsões. O Ceará, junto da Paraíba, concentrou grande parte da atenção do Governo Federal.
"As frentes de emergência eram normalmente obras públicas organizadas, precariamente, pelo Estado ou pelo Governo Federal, normalmente construção de açudes ou pequenas barragens, construção de estradas, construção, às vezes, de prédios públicos, para tentar dar uma ocupação a essas pessoas que estavam circulando pelo pelo território”, explica o professor Frederico.
O professor expõe que essas frentes “eram suspensas assim que havia possibilidade ou expectativa de volta da chuva. Em alguns momentos se chamou de Bolsões da Seca, em outro momento assistência de emergência. E normalmente era um salário irrisório que era pago em troca de um pequeno serviço. Como eu falei, muitas vezes eram feitos açudes, barragens. Ficou até uma expressão curiosa aqui, que o pessoal chamava de "açude Sonrisal".
A partir de agosto de 1982, novos critérios foram estabelecidos para empregar os agricultores, quando não apenas chefes de família tiveram a possibilidade de se inscrever, mas também mulheres abandonadas, viúvas e, inclusive, menores de idade.
O trabalho desenvolvido nos Bolsões começou por Solonópole, no Sertão Central, com obras públicas usando os agricultores. Uma jornada de cinco dias por semana, das 5 às 12 horas, para um salário mensal de Cr$ 7.770. O valor em cruzeiros corrigido pelo IPCA (IBGE), de março de 1983 a fevereiro de 2025, é o equivalente hoje a R$ 285,68. A correção foi feita com a ferramenta Calculadora do Cidadão, do Banco Central.
O programa dos Bolsões também foi alvo de denúncias de irregularidades. No governo de Gonzaga Mota (1983-1987), ex-chefe do Executivo estadual, parlamentares da oposição visitaram algumas das frentes de serviço. Os principais problemas denunciados foram alistamentos realizados para beneficiar “correligionários desse ou daquele prefeito, de deputados e ‘coroneis’”, noticiou O POVO em edição de 1983.
Em 1984, outras irregularidades foram denunciadas por entidades em Iguatu, no Sertão do Salgado e no Alto Jaguaribe. Dessa vez, as denúncias eram sobre extorsão sofrida pelos agricultores inscritos, obrigados a dividir parte dos salários com chefes de turmas — o que hoje se chama rachadinha. Também foi denunciada existência de intermediários que cobravam para realizar o alistamento.
Em 30 de abril de 1984, a Sudene planejava interromper o programa. A desativação foi pensada para ocorrer em etapas, iniciando por municípios da faixa litorânea. Mais de um milhão de inscritos no Ceará, que atuavam nas frentes de serviços, seriam desmobilizados.
O encerramento lançou o medo de ser lançada na miséria toda essa parcela da população, que vivia sob insegurança alimentar e não tinha alternativas para compensar o valor pago pelo programa.
Após cinco anos de seca severa, o Ceará enfrentou uma temporada com chuvas intensas. No ano de 1984, o Calendário de Chuvas da Funceme indica que choveu 1.037,8 milímetros. Muito mais que a média, de 809,1 milímetros, e quase o triplo do registrado no ano anterior, quando choveu 361,4 milímetros. Novos transtornos ocorreram, como enchentes e , ainda, a falta de alimentos.
O início do ano foi marcado pela continuidade da estiagem, mas as precipitações vieram a ocorrer com abundância em abril. O Baixo Jaguaribe recebeu 137 toneladas de alimentos para atender a população que sofria com as enchentes na região, conforme registrou O POVO.
Municípios como Iguatu, Limoeiro do Norte, Aracati, Morada Nova e Tabuleiro receberam comida do Governo. Entre os itens, feijão, arroz, farinha, açúcar, charque, óleo, sal e café. Os produtos seriam para atender 22.700 pessoas no espaço de duas semanas.
A situação foi grave o bastante para que os “Bolsões da Seca” continuassem nas áreas atingidas, assegurou o superintendente da Sudene na época, Valfrido Salmito. Registro de centenas de desabrigados pelas enchentes ocorreram, como nos municípios de Itaiçaba, Aracati e Iguatu.
A situação foi ainda mais grave em 1985, quando foram registrados 1.772,9 milímetros de chuva. É o ano mais chuvoso sobre o qual há registros.
A grande seca de 1979 a 1983 foi a última a registrar fome em massa, mas isso não significa que, em menor escala, a calamidade não continuasse a atingir o Sertão. Em 1993, anos após o ápice da última grande fome relacionada à seca no Estado, a morte visitou, mais uma vez, famílias do Ceará e por esse mesmo motivo.
A edição do O POVO de 7 de janeiro daquele ano noticiou: "Criança filha de retirantes morre de fome". A reportagem mostrou o drama de mais de 400 famílias que viviam em condições precárias às margens da BR-020, no município de Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF).
"A minha irmã morreu porque a gente não tinha nada para cozinhar. Quando a 'mãinha' conseguiu um pouco de arroz para fazer, a Marciana já não estava aguentando mais e logo depois ela faleceu"
"Como grande parte da comunidade está sem emprego ou veio do Interior fugindo da seca, a situação se agrava a cada dia que passa", dizia o texto do O POVO. Sem água, luz e, principalmente, alimento, essas eram as circunstâncias em que sobreviviam os retirantes.
“A minha irmã morreu porque a gente não tinha nada para cozinhar. Quando a 'mãinha' conseguiu um pouco de arroz para fazer, a Marciana já não estava aguentando mais e logo depois ela faleceu”, contou Francisca Dilma, então com 10 anos de idade.
A irmã dela, de um ano e meio, padeceu de fome após uma longa jornada de fuga da seca, em 1993. Com origem em Campos Sales, distante 546 km de Fortaleza, a família passou “um mês de viagem sob as piores condições possíveis”, diz a edição da época.
Ao chegar a Caucaia, a comunidade se instalou em construções de barro e madeira, outros tinham somente “uma frágil estrutura de folha de carnaúba”, conta no texto, que trouxe, ainda, a descrição de abrigos cobertos com papelão.
Em 1979, "não foi a última grande seca, mas foi, talvez, a última que houve grande impacto social de aumento de fome", explicou o professor Frederico Neves. Na seca que durou de 2012 a 2016, segundo a Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme), o Estado apresentou a pior seca prolongada desde 1910, em quantidade de chuva, conforme informações compartilhadas pelo órgão em 12 de setembro de 2016.
Desde 1910, em apenas dois momentos o Ceará experimentou uma estiagem tão prolongada, a de 1979 a 1983, superada em duração pela que se estendeu de 2012 a 2017. Mas, devido às condições de vulnerabilidade no Sertão, a que terminou há pouco mais de 40 anos foi mais sentida pela população. Veja histórico de chuvas no Ceará:
Histórico de chuvas no Ceará
Na década passada, a fome, como parte da seca, intensificou-se novamente. Em 2013, o repórter fotográfico paraibano Severino Silva esteve em 12 municípios do Nordeste, inclusive no Ceará, para registrar o que se passava nesses lugares durante a seca meteorológica. O profissional compartilhou com O POVO detalhes que seus olhos capturaram no caminho.
“Muito bicho morto na estrada. E aí eu perguntava, só que me disseram o seguinte: de manhã cedo tinham sido levados os bichos próprios, para tentar arrumar uma água, botar ele em outro lugar. Aqueles que iam caindo na estrada iam ficando. Se eles parassem para socorrer aquele que caiu, iam perder mais animais. Aquela quantidade de bicho morto na estrada era de cortar o coração”, narrou Severino.
Acompanhado do jornalista do O Dia Alexandre Medeiros, Severino percorreu 12 municípios dos estados do Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte, ao longo de 1.466 quilômetros. A reportagem seriada "A seca tem rosto, nome e sobrenome" venceu o prêmio Tim Lopes de Jornalismo Investigativo de 2013, na categoria Meio Ambiente.
"Essas pessoas, o que a gente ouviu, elas não sabiam por quanto tempo iam ficar com fome. Em alguns depoimentos, o pai dizia que o mais triste era ver os filhos com fome pedindo alguma coisa para comer, e ele não ter”, descreveu o repórter fotográfico.
Nas andanças, Severino percebeu que a fome era moeda de troca para pessoas com interesses políticos. “Em Pernambuco, acompanhei o pessoal do Exército distribuindo água. Tinha algumas pessoas de má-fé, que, quando chegava o caminhão do Exército, iam sempre alguém dizendo que foi através dele que chegou aquele caminhão”.
Parece até cena de filme. No Auto da Compadecida 2, sucesso de bilheteria no cinema nacional desde a estreia, em 25 de dezembro, o coronel Hernani, interpretado por Humberto Martins, associa a própria imagem ao caminhão de água distribuída na região. Ele viria a ser candidato a prefeito logo depois.
De lá para cá, inúmeros investimentos de governos nas esferas estadual e federal foram feitos em segurança hídrica da população. Os programas contribuíram para amenizar fortes estiagens que o Estado viria a passar desde a última grande fome.
No Ceará, projetos como a construção do maior açude do Brasil, o Castanhão, obra que começou efetivamente em 1995, surgiu em meio a polêmicas e expectativa de grandes planos.
Ele foi entregue em 2002, no Vale do Jaguaribe, no então governo de Fernando Henrique Cardoso. A barragem tem a capacidade de armazenar 6,7 bilhões de metros cúbicos (m³) e atende aproximadamente 5 milhões de pessoas, segundo o Dnocs.
Nos governos de Tasso Jereissati, outro importante avanço para a segurança hídrica implementado foram os canais de integração, que conectam bacias e permitem o deslocamento das águas de açudes, o que possibilitou o acesso ao recurso por lugares antes não abastecidos.
Um marco importante foi a transposição do Rio São Francisco para o Ceará, obra que atravessou os governos de Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro.
Ao chegar ao Ceará, a água é distribuída por meio do Cinturão das Águas, que tem 145,3 km de caminhamento, compreendendo segmentos de canal a céu aberto, túneis e sifões. A obra está dividida em cinco lotes com cerca de 80,5% de execução, segundo informações de novembro de 2024. A previsão de conclusão é para junho de 2026.
Além disso, há o Eixão das Águas, conjunto de obras que conecta o açude Castanhão à Região Metropolitana de Fortaleza (RMF). É composto por uma estação de bombeamento, canais, adutoras, sifões e túnel, que reforça o abastecimento em diversas regiões do Estado. Para 2025, o governador Elmano de Freitas (PT) realizou a assinatura da segunda etapa de duplicação do Eixão, o que dobrará a capacidade de levar água para Fortaleza, segundo o governador.
Outra medida é o programa Malha d’Água, iniciativa do Governo do Estado, idealizada pela Secretaria dos Recursos Hídricos (SRH), que realiza o adensamento da rede de adutoras do Ceará e conecta reservatórios de maior porte aos centros urbanos. A primeira etapa teve início em setembro de 2022, com a execução do Sistema Adutor Banabuiú-Sertão Central.
Na esfera federal, os programas de assistência e sociais são destaque no combate à fome e no auxílio à sobrevivência em meio à estiagem, como o Bolsa Família.
Para o futuro, a Usina de Dessalinização (Dessal), como mostrou reportagem de Samuel Pimentel, do O POVO, deve funcionar como reserva de emergência para o abastecimento. A dessalinização, em caso de seca extrema, entraria como um recurso complementar.
Embora a estiagem seja o maior problema, não é o único. O desperdício de recursos hídricos na distribuição de água no Ceará foi de 44,38% em 2022, conforme levantamento do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), do Ministério das Cidades. A falta de água e a perda dela são incômodos ainda atuais no Estado, embora muitos avanços tenham ocorrido.