Um dia antes de o Vaticano dar início ao conclave, marcado para o dia 7 de maio de 2025, foi reportado à mídia europeia que parte dos 133 cardeais havia “consultado” o filme “Conclave” para ter uma referência visual de como funciona o processo.
Isso porque grande parte deles, nomeados recentemente pelo então Papa Francisco, ainda não tinha participado de um conclave antes.
Dirigido por Edward Berger e baseado no livro homônimo de Robert Harris, a trama acompanha Thomas Lawrence (Ralph Fiennes em atuação silenciosamente tocante), cardeal responsável por coordenar o processo eleitoral na Capela Sistina.
A trama investiga o embate entre as alas conservadoras, progressistas e moderadas da Igreja Católica, observando o jogo político que acontece sob a máscara da “escolha divina” ou, como dizem, da "inspiração do Divino Espírito Santo".
Pela sua estrutura de reviravoltas em torno do suspense de quem será eleito, o filme acabou atraindo um grande público acostumado com narrativas investigativas muito presentes no cinema e na TV. Descobrir o Papa eleito é como descobrir quem matou Odete Roitman, de “Vale Tudo”, ou quem herdará o trono bilionário de Logan Roy em “Succession”.
Concorrendo diretamente com o brasileiro “Ainda Estou Aqui”, o filme de Berger foi indicado a oito estatuetas do Oscar, incluindo Melhor Roteiro Adaptado, único que venceu na noite de premiação. Naquele mesmo mês, já circulavam as informações sobre o frágil estado de saúde de Francisco, o que atiçou ainda mais a discussão.
“Caso aconteça um conclave em plena campanha do Oscar, o filme pode acabar vencendo o Melhor Filme?” – a pergunta ácida rodava nas redes sociais. Quando apresentou o filme na premiação do SAG (Sindicato do Atores de Hollywood), o elenco desejou uma “rápida recuperação” a Francisco. “Amamos este papa”, declarou Isabella Rossellini.
Na trama, há um momento emblemático em que dois cardeais conversam sobre os candidatos seduzidos pelo poder. Quando Lawrence repete que ele não quer ser papa, seu amigo Bellini retruca furioso: “Todo mundo aqui quer”.
Isso acaba nos levando de volta para 1978, quando o brasileiro Dom Aloísio Lorscheider, arcebispo de Fortaleza, recusou assumir o papado, apesar de ter sido eleito, dando lugar ao cardeal que viria a ser João Paulo II.
É uma discussão forte na Igreja: todos querem mesmo assumir uma missão dessa até a morte?
O gesto dos religiosos assistirem ao filme às vésperas da eleição é curioso, especialmente, porque a Igreja se dignifica do fato de que a eleição acontece sob portas trancadas e sem qualquer influência do mundo externo.
“Conclave”, no entanto, não é um documentário ou uma ficção de narrativa neutra. Há uma forte crítica às forças que tentam arrastar a instituição de volta ao tempo medieval, muito mais próxima do Deus cruel do Velho Testamento do que do Jesus amoroso da segunda metade da Bíblia.
A eleição de Robert Francis Prevost como o Papa Leão XIV, declarado na quinta-feira, 8 de maio de 2025, até parece o rumo dado pelo filme. Prevost, afinal, era um cardeal aliado ao Francisco e, aparentemente, alinhado à sua percepção de justiça social como uma missão da Igreja.
Pela rapidez da sua eleição, será mesmo que teve algum embate robusto entre as alas políticas ou a Igreja traça agora um caminho comunhão?
Na ficção de “Conclave”, um dos cardeais aptos à eleição acaba sendo descartado porque Lawrence descobre que ele havia sido expulso pelo falecido Papa, informação que ele optou por ocultar. Do lado de cá, o cardeal italiano Angelo Becciu foi condenado por peculato e fraude, o que resultou na sua demissão por Francisco e na sua incapacidade de participar da eleição.
Na prática, essas questões só reforçam o quanto “Conclave” é um filme muito bem construído para retratar o processo com precisão. Mesmo tão próximo da realidade, porém, o desfecho do filme surpreende com a eleição de um cardeal novato que desafia a lógica patriarcal da religião, um gesto irreverente que questiona o peso da tradição ideológica.
Apesar dos detalhes cênicos e narrativos baseados na realidade, a trama se permite ser criativa para ultrapassar fronteiras que a Igreja, definitivamente, ainda não está pronta para encarar – mas se Francisco e Leão XIV também tiverem mesmo assistido ao filme, será que essa Igreja da ficção está tão aprisionada à fantasia? Veremos nas décadas adiante.
Arthur Gadelha é crítico de cinema