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Mortes na Base Aérea: 20 anos depois, crime prescreve sem culpados e traumas persistem
Reportagem Seriada

Mortes na Base Aérea: 20 anos depois, crime prescreve sem culpados e traumas persistem

O duplo homicídio dos soldados Francisco Cleoman Fontenele Filho e Robson Mendonça Cunha, mortos a tiros dentro das instalações da Base Aérea de Fortaleza, completa duas décadas. As mães ainda vivem as sequelas emocionais e físicas. A União ainda não pagou o total da indenização a que as famílias têm direito
Episódio 1

Mortes na Base Aérea: 20 anos depois, crime prescreve sem culpados e traumas persistem

O duplo homicídio dos soldados Francisco Cleoman Fontenele Filho e Robson Mendonça Cunha, mortos a tiros dentro das instalações da Base Aérea de Fortaleza, completa duas décadas. As mães ainda vivem as sequelas emocionais e físicas. A União ainda não pagou o total da indenização a que as famílias têm direito
Episódio 1
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Neste 10 de setembro de 2024, fecham-se os 20 anos de um crime rumoroso, até hoje sem castigo, um duplo homicídio cometido dentro da Base Aérea de Fortaleza (BAFz) sem autoria conhecida. E que por força da legislação militar está prescrevendo. Seguirá sem um culpado.

Dois jovens soldados, Francisco Cleoman Fontenele Filho de 19 anos, e Robson Mendonça Cunha, de 18, tiravam serviço como sentinelas do posto 14, próximo ao muro da corporação, ambos armados de pistola 9mm. Era pouco mais de seis da noite quando eles foram assassinados. Cada um morto com um tiro na cabeça.

Um Inquérito Policial Militar foi aberto, mas a investigação mais minuciosa, pela Polícia Federal, só recomeçou dois anos depois, em 2006. Houve um único réu apontado, o então capitão José Severino Cheregato, à época capelão da Base. Ele foi absolvido por unanimidade, em agosto de 2008. Depois disso, a Justiça Militar nunca mais julgou um possível responsável pelo crime.

Imaculada Mendonça, mãe do soldado Robson Mendonça Cunha, ainda preserva o fardamento do filho(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Imaculada Mendonça, mãe do soldado Robson Mendonça Cunha, ainda preserva o fardamento do filho

Exatamente neste 10 de setembro, a mesma data dos fatos há 20 anos, as regras do Código Penal Militar anunciam que o crime chegou à prescrição. Caducou, no jargão jurídico. Significa que não poderá mais nem ser punido. Possível até seria, dentro do regramento penal, mas só se uma informação nova, muito surpreendente, viesse à tona. O que é dado como improvável até pelos familiares das vítimas.

Nesse tempo, as perguntas martelaram o pensamento de Fátima Fontenele e Imaculada Mendonça, as mães dos dois rapazes: quem matou meu filho? E por quê? As motivações especuladas, de furtos de materiais que teriam sido testemunhados pelos soldados a possíveis conluios entre oficiais superiores da época, não vingaram nas fases de inquérito e ação penal.

O caso, na fase inicial da investigação, chegou a ser conduzido pericialmente como homicídio seguido de suicídio. Essa tese foi depois descartada em confronto de evidências, mas aí já havia machucado o sentimento dos parentes e amigos - por inverter a imagem dos que foram as vítimas.

Fátima Fontenele, mãe de Cleoman Filho, um dos soldados mortos na Base Aérea de Fortaleza, tem saúde debilitada diante da falta de respostas no caso, que completa 20 anos(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Fátima Fontenele, mãe de Cleoman Filho, um dos soldados mortos na Base Aérea de Fortaleza, tem saúde debilitada diante da falta de respostas no caso, que completa 20 anos

O que mudou em 20 anos de dúvida e espera por respostas? "Quase nada", diz Fátima, sobre os esclarecimentos que nunca lhe deram. O que surgiu de informação? "Da morte deles lá? Nada, né? Parou", lamenta Imaculada, resignada. Mas o muito que mudou no entorno das duas tragédias familiares gerou perdas e danos, sequelas emocionais e até as físicas irreparáveis.

Qualquer recorte feito da história é doloroso. O drama das mães é comovente. Fátima hoje tem 71 anos. Aposentada, ficou viúva em 16 de outubro de 2023. Cleoman pai era artista plástico, morreu vitimado por um câncer na laringe. O tratamento chegou a durar dez meses e foi custeado justamente com uma "parte do dinheiro do filho dele".

Assim descreveu Patrícia Fontenele, irmã de "Pêu" - era como os mais próximos chamavam o rapaz. As duas famílias recebem uma pensão cada, equivalente ao soldo de um 3º sargento da Força Aérea. Pouco menos de R$ 3.500 por mês. Mas o pai havia negociado, num valor menor, uma parcela do precatório que deveria ter sido pago pela União.

Imaculada Mendonça, mãe do soldado Robson Mendonça Cunha, lamenta que em 20 anos o caso seja encerrado sem uma solução(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Imaculada Mendonça, mãe do soldado Robson Mendonça Cunha, lamenta que em 20 anos o caso seja encerrado sem uma solução

Em duas décadas, ainda não foi pago o total da indenização por danos morais cobrada em ação judicial. Corresponderia a 200 salários mínimos. Teria sido repassado, anos atrás, um valor equivalente à metade desse tempo. Há decisão sacramentada no Superior Tribunal de Justiça (STJ), mas a União estaria fazendo o repasse em precatórios, por agendamento etário dos beneficiários.

O processo havia parado em 2021, os pagamentos recomeçaram em 2022. O primeiro grupo que recebeu tinha a partir de 80 anos de idade. No ano passado, foram os da faixa dos 75-80. A categoria 70-75 seria a próxima. "Estamos com esperança que saia em setembro", torce Patrícia.

Imaculada, mãe de Robson, aos 59 anos, também cita suas dores de corpo e mente. "Passei por muitos momentos difíceis, não só com a morte dele. Hoje eu tenho depressão, já há oito anos. Me trato lá mesmo. Sou atendida (como pensionista) no serviço médico psiquiátrico da Base", revela. Sofre com crises de ansiedade. Admite que prefere pensar mais na data de nascimento do filho (12/11/1985) do que no dia da morte.

Robson não gostava de ver o avô materno, seu José Leandro, à época com 71 anos, convalescendo de esclerose múltipla. "Fico muito triste de ver o senhor desse jeito", teria dito, segundo a mãe, justamente no dia que saiu de casa pela última vez para o expediente militar. "Foi a última vez que eu vi ele. 'Mãe, sábado eu tô aqui bem cedinho viu?'. Porque ele ia sair com minha irmã", relembra Imaculada.

Fátima e Patrícia Fontenele, mãe e irmã do soldado Francisco Cleoman Fontenele Filho (Pêu), um dos dois assassinados nas instalações da Base Aérea de Fortaleza, em 10 de setembro de 2004(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Fátima e Patrícia Fontenele, mãe e irmã do soldado Francisco Cleoman Fontenele Filho (Pêu), um dos dois assassinados nas instalações da Base Aérea de Fortaleza, em 10 de setembro de 2004

Patrícia tem amparado a mãe em outras fragilidades. Fátima se recupera de uma fratura no pé, ocorrência doméstica do ano passado, que se deu 21 dias após a morte do marido. Quando a morte de Cleoman Filho (a mãe não citava o apelido) ainda fazia dez anos, Fátima sofreu um Acidente Vascular Cerebral.

Foi no mesmo momento em que liam para ela uma carta espírita de seu menino. A mensagem dizia que ela "teria um problema de saúde" e que "esse crime não seria desvendado nessa vida". Por conta do derrame e da diabetes, ela perdeu movimentos e a visão direita. "Mamãe teve muito prejuízo da emoção toda". Imaculada reitera: “Eu blasfemei muito. Achei que Deus não existia para mim. Hoje eu tô de pé por causa dele. Ele é minha força”.

 

Linha do tempo do caso das mortes na Base Aérea de Fortaleza

 

 

Absolvido, capelão foi único réu do caso; em 2023, foi excluído da FAB após peculato

José Severino Cheregato, ex-capelão da Base Aérea de Fortaleza, único réu no processo do duplo homicídio ocorrido em 2004 e absolvido de todas as acusações pelo crime no julgamento realizado em 7 de agosto de 2008, não faz mais parte dos quadros da Força Aérea Brasileira (FAB).

Segundo os advogados Paulo Quezado e João Marcelo Pedrosa, que atuaram na defesa no processo criminal, Cheregato foi excluído da Aeronáutica, após um longo processo administrativo disciplinar julgado pelo Superior Tribunal Militar (STM) e executado no ano passado. "Ele foi declarado indigno para o oficialato", confirmou Pedrosa.

A legislação militar prevê que toda condenação superior a dois anos, em que é imputado crime contra a administração pública militar, se for oficial, é aberto um processo de possível indignidade para o oficialato.

Edição do O POVO de 8 de agosto de 2008, que noticiou a absolvição, por unanimidade, do capelão José Severino Cheregato no processo pelo duplo homicídio(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Edição do O POVO de 8 de agosto de 2008, que noticiou a absolvição, por unanimidade, do capelão José Severino Cheregato no processo pelo duplo homicídio

Chegerato deixou de ser militar, perdeu a patente de capitão e o direito aos proventos. A conduta foi avaliada por ele ter sido condenado a três anos pelo crime de peculato, por desvio de dinheiro da capelania. A história foi descoberta durante as diligências feitas pelo Ministério Público Militar (MPM) sobre o duplo homicídio.

"Hoje ele vive do seu exercício de padre. É importante dizer que ele nunca foi punido pelo Ordinariado Militar", destacou Pedrosa, citando a Circunscrição Eclesiástica da Igreja Católica, responsável pelas capelanias militares no País.

Um álibi apresentado pela defesa foi decisivo para absolver Cheregato no processo sobre as duas mortes. No horário apontado para o crime, em 10 de setembro de 2004, o então capelão celebrava uma missa de sétimo dia na Capela de Nossa Senhora de Loreto, dentro da Base Aérea, “a pelo menos 2 km do local dos fatos”.

Cheregato estaria ainda residindo em Manaus, para onde foi transferido desde 2006. O POVO pediu para falar com o ex-capelão da BAFz, mas Quezado e Pedrosa informaram que ele estaria "muito debilitado" por graves problemas de saúde. A defesa ainda tenta a revisão criminal, em processamento no STM. "É para anular a condenação dele toda especificamente pelo peculato", afirma Pedrosa.

O POVO procurou os comandos da Aeronáutica, em Brasília, e da Base Aérea de Fortaleza. Para que se manifestassem, entre vários pontos, sobre o duplo homicídio cometido 20 anos atrás, sobre os valores indenizatórios às famílias dos dois soldados e sobre o atual efetivo da unidade.

Portão de acesso da Base Aérea de Fortaleza, que sediará o campus do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA)(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Portão de acesso da Base Aérea de Fortaleza, que sediará o campus do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA)

Numa única nota, emitida pelo Centro de Comunicação Social da Aeronáutica (Cecomsaer), sem responder a todos os questionamentos, a Força Aérea Brasileira (FAB) informou: “o caso em questão foi conduzido para a Justiça Militar da União.

Com relação aos números sobre a estrutura de militares que formam o efetivo da Base Aérea de Fortaleza, a FAB destaca que os dados são de informação reservada para a garantia da segurança organizacional”.

O Comando da Aeronáutica ressaltou, ainda, que “desenvolve programas de valorização da vida, que são difundidos para todo efetivo de militares por meio de campanhas mensais e anuais da Instituição”. 

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