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Fies e Prouni: o que dizem os dados sobre o financiamento do ensino superior em 10 anos
Reportagem Seriada

Fies e Prouni: o que dizem os dados sobre o financiamento do ensino superior em 10 anos

Análise de dados do Inep mostra que o acesso à educação superior tornou-se mais democrático nos últimos dez anos no Brasil. Investimento em políticas públicas de subsídio estudantil possibilitou que milhares de jovens transformassem suas próprias realidades. Junto com histórias de vida e de futuro, O POVO traz levantamento que mostra a evolução do ingresso ao universo acadêmico no Ceará
Episódio 1

Fies e Prouni: o que dizem os dados sobre o financiamento do ensino superior em 10 anos

Análise de dados do Inep mostra que o acesso à educação superior tornou-se mais democrático nos últimos dez anos no Brasil. Investimento em políticas públicas de subsídio estudantil possibilitou que milhares de jovens transformassem suas próprias realidades. Junto com histórias de vida e de futuro, O POVO traz levantamento que mostra a evolução do ingresso ao universo acadêmico no Ceará
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"Esta reportagem venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação 2023 na categoria produtor de conteúdo online"

 

 

O sonho de concluir o ensino médio e ingressar em uma faculdade ficou mais próximo da realidade das famílias brasileiras nos últimos dez anos. É o que revela uma análise de dados do Inep, no período de 2011 a 2021. Salvo lampejos aqui e ali de pessoas humildes e de escolas públicas alcançando tal feito, o acesso ao ensino superior era algo quase exclusivo de poucos grupos privilegiados. Com a implementação de políticas públicas no País, no entanto, novas histórias passaram a ser escritas por personagens até então excluídos da realidade acadêmica.

Historicamente, a entrada no ensino superior no Brasil foi limitada a membros pertencentes das classes A e B, conforme comenta a professora da Faculdade de Educação, da Universidade de São Paulo (USP), Maria Isabel de Almeida. “Tem um fenômeno muito antigo no acesso à universidade brasileira, que é o predomínio de uma classe média e classe média-alta, branca, frequentadora das instituições particulares de educação básica e isso está sendo desmontado”, declara.

Considerado um privilégio de poucos, esse assunto demorou a entrar na pauta de prioridade por parte do poder público. Resultado disso é que o País largou atrás nessa corrida ao redor do mundo. Mesmo na América Latina, por exemplo, o Brasil, potência econômica e de extensões continentais, não se destaca sequer entre os mais fortes da região.

 

"O Brasil é um dos mais injustos e, portanto, mais atrasados no que diz respeito a proporcionar oportunidades ao ensino superior", diz o professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), Wagner Bandeira Andriola. Coordenador do Mestrado em Políticas Públicas e Gestão da Educação Superior, da Faculdade de Educação, ele indica ainda que o Brasil está muito aquém dos vizinhos latinos: "Internacionalmente, então, é que estamos atrasados mesmo.”

Mas a situação poderia ser pior, caso algumas “conquistas recentes” não tivessem sido colocadas em pauta no País. Como relembra, programas voltados tanto para o ensino superior público, como para o ensino superior privado, passaram a contemplar pessoas de camadas sociais mais pobres no começo dos anos 2000 em diante.

De um lado, enquanto as políticas de cotas raciais, sociais e étnicas começaram a fazer parte da realidade estudantil nas universidades estatais, do outro lado dois projetos facilitaram o acesso às instituições privadas. São eles: o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies) e o Programa Universidade para Todos (Prouni), que juntos já distribuíram mais de 5 milhões de vagas ao redor do Brasil.

 

 

Vidas transformadas pela educação superior

Quem agarrou-se a uma das milhares de oportunidades foi Cristiellen Rodrigues, de 26 anos. Moradora do Pirambu e orgulhosamente responsável por presentear a mãe Izabel Cristina com um diploma de Arquitetura e Urbanismo, é dona de uma pele negra, cabelos cacheados e de uma história que exemplifica o poder transformador da educação na vida dos brasileiros – principalmente daqueles mais excluídos de seus próprios direitos.

 

Descendente de indígenas e de negros escravizados, ela comenta que desde criança teve a ambição de ingressar no ensino superior, pois se inspirava na atuação de suas professoras. Mas mesmo sem saber ao certo o que era uma faculdade e como acessá-la, Cris relembra a principal razão que lhe motivava a frequentar a escola.

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"A gente passava fome e necessidade, então a escola pública com merenda de graça era um incentivo muito grande. Eu pensava: ‘aqui é um lugar legal e eu me sinto segura’"

A jovem também descobriu ao longo dos anos que a educação poderia lhe proporcionar outras vantagens, como um leque maior de profissões para além daquelas que conhecia no seu cotidiano familiar: servente de pedreiro, cabeleireiro… Foi então que a estudante de escola pública conseguiu, após muito empenho e esforço, uma suada aprovação no curso de Matemática da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Mas o que era seu objetivo de vida, logo tornou-se frustração. Conforme frequentava as aulas, o brilho no olhar ia sumindo pouco a pouco, pois Cris se deparava com mais um grande desafio a ser enfrentado: o de se manter na instituição.

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"Percebi que a universidade pública não foi feita pra mim. Como é que um pobre, que precisa trabalhar para se manter, vai conseguir estudar em horário integral?"

Cristiellen, então, optou pela mudança. Conquistou uma bolsa de 100% pelo Prouni para cursar Arquitetura e Urbanismo, na Unichristus. Apesar da insegurança em trocar a instituição pública pela privada, migrou de área para poder continuar estudando e acabou se deparando com um universo completamente diferente daquele visto no Pirambu. “Foi um baque. Eu nunca nem tinha pisado na Aldeota, no Meireles, e quando cheguei por aqui, pensei: ‘estou em uma novela da Globo’”, brinca.

O comparativo entre as duas realidades era inevitável. Enquanto que em sua comunidade só existiam “umas três ruas asfaltadas”, nos bairros agora frequentados por Cris havia prédios enormes e carros de luxo por todo lado – objetos que lhe fizeram refletir e compreender sobre seu lugar no mundo e o porquê de pessoas iguais à ela, de pele escura, sofriam tanto com a falta de direitos, de estrutura e de dignidade.

 

“Eu descobri que a minha existência era ilegal. Vi que a minha família e tudo o que girava em torno dela era algo ilícito para as estruturas de poder. Foi um processo muito doloroso, mas importante para saber reconhecer as injustiças pelas quais passamos. Toda essa consciência só veio para mim a partir da educação, com toda certeza”, constata.

O valor do ensino superior também causou reflexos na vivência de outros jovens que fizeram uso do programa de financiamento direto. Exemplos disso são Keyss Moraes e Matheus Motta, que compartilham suas experiências na vida acadêmica, as quais lhes abriram caminhos no mercado de trabalho e lhe dão esperanças para seguir caminhando com os estudos.

 

 

Na trilha da educação e da comunicação

Clique na imagem abaixo para conhecer a história de Keyss Morais, graduanda em Jornalismo com bolsa do Prouni.

 
Keyss Morais i
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Foto: Fernanda Barros / O POVO



Dedicação que reflete no mercado de trabalho

Clique na imagem abaixo para conhecer a história de Matheus Motta, engenheiro mecânico formado com bolsa do Prouni.

 
Matheus Motta i
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Foto: Arquivo pessoal


 

Em baixa, Novo Fies impacta o número de matrículas

Em levantamento do O POVO, dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) apontam para uma evolução significativa no Ceará no número de alunos com algum tipo de financiamento entre 2011 e 2021. A série histórica, no entanto, também mostra sinais de desgaste no final desse período, o que, para especialistas, são reflexos principalmente ao que diz respeito ao Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies).

Para se ter ideia, a proporção de estudantes com financiamento partiu de 30,7%, em 2011, até chegar a 57,1%, em 2020. No período de 2014 a 2020, a propósito, o número de matrículas com algum tipo de subsídio sempre foi maior do que aqueles que estavam pagando a faculdade por conta própria. O cenário de estabilidade, porém, se desfez. É possível notar essa informação quando se coloca uma lupa sobre 2021, ano em que uma desaceleração nessa contagem foi conferida.

 

Pró-reitor de Administração da Unichristus, Estevão Rocha aponta para as limitações impostas pelo Governo Federal nos últimos anos, sobretudo ao Fies. “O Prouni se mantém inalterado há mais de dez anos. Quanto ao Fies, as restrições ocorridas nos últimos cinco anos contribuíram para a redução do número de matrículas nas IES (Instituições de ensino superior), impactando na quantidade de mão de obra qualificada para atuar em nosso Estado”, declara.

 

 

Para entender: Em 2018, foi apresentada pelo Ministério da Educação do presidente Michel Temer (MDB) uma reformulação chamada de “Novo Fies”, que ditava novas políticas ao programa.

Entre suas principais mudanças estavam modalidades de financiamento obtido junto a bancos privados, o que implica na cobrança de juros de mercado. Além disso, a cobrança de média mínima de 450 pontos no Enem e a redução do número de ofertas de vagas passaram a ser adotadas.

O novo modelo continuou em vigor na gestão de Jair Bolsonaro, sendo duramente criticado por entidades que representam os interesses das instituições de ensino superior.

 

 

“As novas regras do Fies acabaram tornando o programa um mero financiamento, esquecendo assim sua origem de caráter social”, compreende Celso Niskier, presidente da Associação Brasileira de Mantenedores de Ensino Superior (ABMES). Ele afirma que hoje no Brasil, inúmeros jovens estão sem estudar e sem trabalhar por encontrarem dificuldades para acessar o número limitado de vagas em universidades públicas, fora os impasses para se conseguir financiamento total nas instituições privadas.

Ao mesmo tempo, os dados do Inep destacam uma evolução na última década dos números absolutos tanto de matrículas totais como de matrículas com algum financiamento nas IES. É possível perceber também que a curva de alunos com financiamento não segue o mesmo comportamento que o crescimento total de matrículas entre 2020 e 2021. Enquanto o total de matrículas teve um pequeno avanço (+0,5%) nesse período, o número de matrículas com financiamento registrou queda de 13%, saindo de 133.329 para 115.553.

 

Niskier acrescenta que, entre outros fatores para essa diminuição acontecer, a dificuldade econômica do País se destaca, pois ela faz com que as pessoas percam o interesse em buscar qualquer tipo de financiamento, sobretudo na educação superior. Segundo o presidente da ABMES, em meio a esse cenário de incertezas, as famílias brasileiras passam a ser abraçadas pela redução de oportunidades e de expectativas de aumento de renda, vide a imprevisibilidade que se apresenta.

Para a presidente da Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup), Elizabeth Guedes, o que também explica a baixa procura por subsídios – principalmente o Fies – é a pouca oferta de aportes financeiros que cubram os estudos dos alunos em sua plenitude. Com isso, ela menciona ainda que durante os últimos anos, a chegada da pandemia de Covid-19 e a consequente crise econômica no Brasil influenciaram na hora dos estudantes optarem por não fazer um financiamento.

"Hoje, apenas uma pequena parcela consegue o subsídio em 100%, enquanto a outra parte tem que pagar boa parte da mensalidade para a faculdade diretamente e enquanto está cursando", diz.

Nesse cenário, novas dinâmicas passaram a ser buscadas pelas instituições privadas para não perder alunos e ao mesmo tempo tentar captar outros novos. “Muitas entidades criaram programas próprios de financiamento”, lembra Dyogo Cesar Batista Viana Patriota, assessor jurídico do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (Crub).

“Acredito que a procura por financiamento público até aumentou, mas o crédito, inclusive público, escasseou”, continua ele, apontando para uma conjuntura diferente a partir de 2023. "Há agora o desejo político de aumentar a abrangência do Fies”, diz, sendo acompanhado por Elizabeth Guedes:

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"O clima é de esperança para que o governo atual possa apresentar uma proposta que signifique inclusão de mais brasileiros no ensino superior."

 

Inadimplentes e perspectivas do Fies

O ministro da Educação, Camilo Santana (PT), já chegou a afirmar que tanto o Fies como o Prouni terão mais atenção do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em 8 de março, o ex-governador do Ceará anunciou a criação de um grupo de trabalho para promover estudos técnicos relacionados ao subsídio estatal.

Entre os principais objetivos estão a análise e a discussão dos casos de milhares de estudantes que encontram-se com dívidas por falta de pagamento. “Há uma inadimplência alta em relação ao Fies hoje. Alguns pontos importantes serão avaliados nessa nova discussão”, destaca Camilo. Os indicativos do grupo de trabalho deverão traçar diagnósticos sobre a situação do fundo nos próximos anos.


 

 

Metodologia

 

Os dados foram analisados pelo O POVO+, com base nos microdados do Censo da Educação Superior, realizado anualmente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Foram consideradas as informações sobre instituições e cursos do período de 2011 a 2021 no Ceará. Em seguida, foi realizada uma análise descritiva desses dados, com foco no financiamento estudantil.

Para garantir a transparência e a reprodutibilidade desta e de outras reportagens guiadas por dados, O POVO+ mantém uma página no Github na qual estão reunidos códigos e bases de dados produzidos para as publicações.

 

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