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O primeiro encontro entre Lúcio Flávio Gondim e Tércia Montenegro se deu mediado por um livro: na escola, o hoje pesquisador, escritor e professor descobriu a autora cearense em "O Vendedor de Judas", um dos paradidáticos que leu ainda estudante. "Hoje, ele é um dos meus objetos de pesquisa", celebra Lúcio. Nesta sexta, 23, ele lança na Biblioteca Estadual do Ceará a publicação "Corpo de conto: anatomia provisória de Tércia Montenegro", fruto do mestrado em Letras pela Universidade Federal do Ceará.
Na publicação, o autor se debruça na produção de contos de Tércia Montenegro, especificamente a partir de quatro livros do gênero lançados pela cearense, além de produções independentes ou de coletâneas.
"O Vendedor de Judas", lançado em 1998, foi a estreia dela como autora, além de ter sido selecionado pelo governo federal como título recomendado ao Ensino Fundamental II, contexto pelo qual chegou a Lúcio. "Isso ficou guardado em mim como uma memória muito bonita de que alguém poderia escrever, estar vivo e muito perto", lembra.
A proximidade se concretizou quando ele ingressou na graduação em Letras na UFC, onde Tércia atua como professora universitária. Apesar de não ter sido aluno da escritora, Lúcio seguiu leitor e, como projeto de mestrado, decidiu pesquisar o "corpo" de contos da cearense.
"Encontrei neles uma recorrência: a ideia, a imagem de um corpo em estado de fragmentação", resume o autor. Os múltiplos sentidos do título — que aproxima a ideia do "corpus" da pesquisa acadêmica com a centralidade da corporeidade nos contos da autora — vão também para a estruturação do texto.
Em uma introdução, cinco capítulos e uma conclusão, "Corpo de conto" faz ligação entre partes do corpo humano e temas da obra de Tércia destacados pela pesquisa. "Ela aborda cinco tópicos: tempo, espaço, erotismo, gênero e morte. Todos esses aspectos vão pensar o corpo e foi esse o viés que me chamou atenção, havia em livros dos mais diversos certa unidade bastante clara para mim", explica.
Intitulando a introdução de "coluna vertebral", o capítulo sobre erotismo a partir da púbis, o sobre gênero a partir da pele e o de morte como "coração", o texto constrói reflexões que ligam a obra da cearense com temas, conceitos e discussões da contemporaneidade.
O próprio "corpo" como ideia, central ao trabalho e descrito por Lúcio como "a última grande instituição que nos restou no contemporâneo" , abre espaço para diferentes debates. "As grandes marcas de sociabilidade estão ou tensionadas, ou diluídas. O que nos restou fomos nós próprios, que somos questionados diante das nossas identificações e identidades", reflete.
"A Tércia coloca essas questões, por exemplo, no que é uma mulher sem a presença de um homem ou de um filho ou filha, no que é alguém que vai além da sua cidade ou estado", avança o autor.
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A concretização da publicação se deu com a aprovação do projeto no Edital de Incentivo às Artes da Secretaria de Cultura na categoria de pesquisa e memória literária, dado destacado por Lúcio. "Quando se pensa em memória, é a partir daquilo que já se foi, se perdeu, mas a gente precisa entendê-la como algo presentificado. Por que não pensar pesquisa e memória de alguém vivo, em produção?", instiga.
A pesquisa, ele também reconhece, funciona como forma de destacar a obra de contos de Tércia, por vezes de difícil acesso. "Foram contos que não eram acessíveis totalmente, com algumas edições já esgotadas, então também foi para tornar público esse manancial que temos contando as nossas narrativas como cearenses", celebra.