Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
Escrevo para tentar ruminar as narrativas de um presidente da República sem felicidades. Que deixa seu corpo produzir desumanidades do tipo de "quem gosta de osso é cachorro".
Hoje, 31 de março de 2019 deveria ser um dia comum entre muitos. Um domingo de não se fazer nada, conversar miolo de pote ou ir ter com a mãe em sua guerrilha particular contra a memória que se esfarela.
Mas virou incômodo, ferida que não sarou. Criou casca, mas uma unha ou uma topada besta esfola o que nunca se fechou. Há 55 anos, várias famílias brasileiras estão atravessadas com o desaparecimento de quem a ditadura militar deu cabo e até hoje.
Torturadores, executores, ocultadores de cadáveres... Penso, é possível, os infelizes ainda escutam os aperreios de suas vítimas no juízo. Quem extermina o outro, diz um amigo espírita (não sei se creio), convive com a última hora do assassinado até não querer mais.
E que agonia! Ter sido convencido de que quem contrariava o regime militar, a partir de 64, deveria ser estuprada, morto, eletrocutado, ter as unhas arrancadas... Sumidos feito história sem um final.
Numa das leituras da última semana, cheguei a um relatório do Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Sessenta páginas sobre uma Avaliação das Necessidades de Familiares (ANF) que tiveram pessoas desaparecidas durante a ditadura.
No recorte, o ponto de vista de 58 famílias - filhos, mães, ex-companheiras, sobrinhos, irmãos, ex-maridos, netos, tios - de 32 pessoas ocultadas em valas do cemitério Dom Bosco, em Perus, São Paulo.
Entre as ossadas, o corpo de alguém com parentesco em Crateús, no Ceará. Estou atrás da identificação.
Pois bem, nos relatos dos familiares de quem foi descoberto em Perus há um padrão de discurso que se repete em quem ainda procura presos políticos desaparecidos. É uma lógica na narrativa de parentes das 177 pessoas que fazem falta na casa de alguém.
177 é o número oficial de desaparecidos estabelecido pelo relatório da Comissão da Verdade, de dezembro de 2014. É pelo menos...
No número oficial, 434 homens e mulheres foram reconhecidos como mortos e/ou desaparecidos. Fora os índios, os próprios militares, camponeses e outros personagens ainda à margem da estatística.
Sobre as necessidades, coisas bem básicas. Primeiro, o direito "de saber o paradeiro", "recuperar e identificar os restos mortais". Para "realizar rituais de recordação" e encerrar um luto.
Também a precisão tardia "de justiça". De "ter o sofrimento reconhecido publicamente e o Estado responsabilizado"... De testemunhar a "responsabilização individual" de quem matou... De precisar "honrar a memória da pessoa desaparecida".
Ter o direito de "receber apoio econômico, psicológico e psicossocial" para que se reconstrua a vida e ela siga depois de encerrada, finalmente, os 55 anos sem resposta.
Tão devastadora a ditadura que não cabe a um presidente da República ter desprezo pela vida de um opositor político.
Tão violenta a falta de paz que há parente que se sente mal por estar vivo enquanto o irmão ainda permanece desaparecido.
"Às vezes, eu me sinto a pessoa mais culpada do mundo. Culpada por ter sobrevivido, culpada por ir à praia e fazer algo que gosto"...
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