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MINHA BISAVÓ NUNCA SE DESPIU
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

MINHA BISAVÓ NUNCA SE DESPIU

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Não sou médico, mas não queria ser tratado por um grupo que vi abordar um paciente com diagnóstico de câncer de pescoço.

O homem, meio intimidado, confuso com a doença surpreendente, sequer recebeu bom dia dos doutores. Alguém avisou que aquele era o paciente e eles, de costas, um por um, quando deu vontade, se viraram para apalpá-lo.

Sem perguntas. Eram como se existisse ali apenas um pescoço ou o câncer sentado na cadeira. Tatearam, disseram alguma fala entre eles e nem perceberam que o rapaz passou a sentir mais dores após cada amolegada. Ou era a apreensão.

Não sei se já fui assim como jornalista. Devo ter sido. Ter considerado o entrevistado um invisível, fazendo valer apenas as convicções de repórter. Mesmo perguntando, devo ter exilado alguém no silêncio. Pode ter acontecido.

Fiquei com decepção de mim aos ver os médicos. E quis ter estudado sobre o câncer de pescoço para ajudar o homem acometido por interrogações. Tive vontade de ser médico naquela hora aflita.

De repente, quando a vidinha dele seguia sem furacões, veio a notícia de que, no corpo, algo estranho lhe fazia sentir dolorido, febril, diferente do habitual e amanhecidas desconfortáveis.

De uma hora para outra, virar paciente (não sei se caberia outro nome que não carregasse tanta inferioridade)! Não é fácil lidar com medos novos, chorar de tristeza pelo que invadiu a existência fugidia.

Não é todo mundo que tem vocação para ser paciente. Numa hora em que mais se precisa saber das coisas, ter claro o que há e como fazê-lo para atravessar uma tocaia, falta o cuidar de quem estudou o assombroso.

Perguntar, voltando a minha vergonha pelos médicos, é um ato de amor. Quando se pergunta algo a um ser humano ou a bicho, o perguntador faz as honras de se importar com o outro. Alguém vai deixar de ser invisível e passa a ter outra existência ali. Estará incluído.

A começar pelo ato mais besta de um começo de conversa, mas de uma gentileza passarinha: perguntar-lhe o nome. Saber a graça de quem está num barco à deriva à espera de um faroleiro.

Minha bisavó Mariana era uma paciente sem vocação. Infelizmente, nunca se despiu para um médico ou médica, jamais fez uma prevenção. Tinha pudores do século dela, era filha de português, evangélica na letra culposa das escrituras e fez apenas uma filha sem nunca tirar a camisola.

Definhou com um câncer que se escondeu em seu intestino, dolorida, carecida de uma empatia médica. Alguém que se colocasse no lugar dela. Nem que fosse para confortá-la e reduzir seu medo de pegar o barco para a outra margem.

Uma amiga me disse que tem dó de ver o pai envergonhado porque de uma hora para outra a saúde boa se desmoronou e ele teve de virar paciente. Tendo que se despir, que alguém enxugue suas vergonhas, que lhe troque, agora, a fralda...

Não é fácil ir dormir bem e acordar, um dia, com uma moléstia devastadora. Ter de mudar a rotina, esgotar as economias, se sentir um sopro. Não deve ser fácil também ser médico, ter de buscar a cura dos outros... Mas deve ser emocionante aprender medicina para os outros.

Como é bonito, para mim, reportar, ouvir desconhecidos, se importar com a vida de alguém, com uma Cidade. Querer, porque querer, que as narrativas revigorem a possibilidade, evitem mortes, reparem injustiças...

Tive desencanto com os médicos ignorando a aflição do paciente com câncer no pescoço, mas conheço doutores generosos com quem adoece...

Dias Branco, Stela Furlani, Alencar Furtado, Valdester Júnior, Antônio José (Tanta), Mário Mamede, Alexandre Montalverne, João Nelson, Fernando Benevides, Ana Virgínia, Marcos Nasser, Raquel Rigotto... E outros.

Foto do Demitri Túlio

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