Logo O POVO+
Filosofia do pratinho
Foto de Henrique Araújo
clique para exibir bio do colunista

Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Filosofia do pratinho

Mais que iguaria, o pratinho é uma filosofia. Consiste no aproveitamento máximo de espaço, extraindo o melhor de cada acompanhamento sem desperdiçar um farelo num curto intervalo de tempo. Um pratinho faz caber na mesma cumbuca mínima todo o sumo da existência. É uma obra de arte do minimalismo gastronômico.

E é também a prova de que cinco diferentes tipos de comida podem ocupar o mesmo lugar no mundo, desafiando as leis da Física. Nele se harmonizam condimentos e texturas, como a linguiça e o vatapá, a paçoca e a salada, o arroz e o que mais couber no prato, resultado do engenho popular que fermenta na necessidade. E cabe muita coisa na fome da gente.

Mas, ontologicamente falando, o que é o pratinho? Nascido em junho, por excelência o mês dos pratinhos, arrisco uma definição. Pratinho é todo ajuntamento de comida aparentemente desconexa mas que no final das contas se revela equilibrado e uno como apenas o espírito santo é.

O básico é arroz, paçoca e vatapá. Os mais requintados trazem também salada e outro tipo de carne, como frango desfiado (!). Há os extravagantes, porém, que a essa misturada toda ainda acrescentam strogonoff (!!) ou lasanha (!!!), mostrando que a versatilidade do pratinho excede qualquer limite de bom-senso e dever de autopreservação.

Chamá-lo pratinho já diz muito da nossa relação com a coisa - o diminutivo denota o bem-querer envolvido no ato. É como encontrar um amigo ou amiga na esquina a fim de colocar o papo em dia. Não apenas nutrir o corpo, mas ter com o alimento esse vínculo que ultrapassa o superficial.

Quem come pratinho nunca está sozinho, ainda que esteja de fato. Entende? Não? É fácil. Qualquer pessoa que se põe a devorá-lo se coloca automaticamente numa posição de carisma e profunda humildade perante os desafios da vida. É como meditar, só que de barriga cheia. Experimentem.

Reparem no meio-sorriso que se abre sempre que, ao passar na rua, a gente flagra o indivíduo levemente emborcado sobre o prato. Ou em pé, cavoucando de tempos em tempos o garfo de plástico nesse pequeno Everest por cujo topo começamos uma escalada às avessas, indo do cume até a base.

É ou não é simpático? Ninguém quer guerra com alguém com um pratinho na mão.

Também é verdade que os comedores de pratinho são uma comunidade numerosa e internacionalmente influente, como o Priorado de Sião ou os fãs de BTS. Não importa a festa, se um show de banda de forró na Praia de Iracema ou do Caetano no Centro de Eventos, o dito-cujo sai à procura do pratinho tão logo o espetáculo se encerre. Ou antes mesmo disso. De modo que a noite só se encerra depois da pratada de pratinho.

E disso resulta outra de suas magias, que é a de preencher tudo com pouco. Ou de parecer pouco, mas se provar muito. O pratinho é o típico "falso-gordo" ou "falsa-gorda", essa noção ambígua cunhada na língua do povo para designar a pessoa que, aparentando adiposidade extra, é na verdade magra.

No caminho inverso, o pratinho é o "falso-magro". A gente olha e pensa que não mata a fome, mas, depois da última colherada, fica como diz a miss Piauí: "lotada".

Foto do Henrique Araújo

Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?