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Gentileza é semente que espera para brotar
Foto de Ana Márcia Diógenes
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Jornalista, professora e consultora. Mestre em Políticas Públicas, especialista em Responsabilidade Social e Psicologia Positiva. Foi diretora de Redação do O POVO, coordenadora do Unicef, secretária adjunta da Cultura e assesora Institucional do Cuca. É autora do livro De esfulepante a felicitante, uma questão de gentileza

Gentileza é semente que espera para brotar

Cena entre dois moradores de rua, catadores de lixo, chama a atenção para a alegria de ajudar sem expectativa de retorno
Tipo Opinião
Célebre capítulo da carreira do pintor Descartes Gadelha, a exposição 'Catadores do Jangurussu' ocupou o Mauc a partir de 20 de julho de 1989 (Foto: reprodução)
Foto: reprodução Célebre capítulo da carreira do pintor Descartes Gadelha, a exposição 'Catadores do Jangurussu' ocupou o Mauc a partir de 20 de julho de 1989

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Um morador de rua dormia semana passada, em pleno sol de Fortaleza, debaixo de um banco, por onde os raios flechavam seu corpo, no espaço entre as fileiras de madeira do assento. Outro morador das ruas, bem mais jovem, que passava na calçada, percebeu a insistência do sol, pegou um boné que estava em cima do banco e colocou para proteger o peito do colega, onde o calor parecia bater mais forte.

Acompanhei esta cena parada em um semáforo da Avenida Monsenhor Tabosa, por onde turistas caminhavam em busca de roupas, sapatos e bolsas. Fui observando e freando o carro devagar, para ganhar mais tempo e tentar ver o que poderia acontecer.

Ao sentir que algo havia sido colocado em cima dele, o morador, que estava debaixo do banco, se virou, reajustando a posição, e continuou a dormir. Sem parar de andar e olhando para trás, o jovem deu um sorriso de satisfação e continuou com sua caminhada, com um saco de recicláveis nas costas.

Os dois fazem parte da população que ocupa meus pensamentos desde que escrevi a ficção Buraco de dentro, em 2023. Só que estes são pessoas reais. Fazem parte dos mais de 800 mil catadores de lixo, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que habitam, desumanamente, o espaço urbano no Brasil. Apesar da mudança da denominação de catador de lixo para catador de reciclável, continuam sendo, como desde o tempo da escravidão, aqueles que trabalham, e comem, os restos de quem tem maior poder aquisitivo.

São os esquecidos das políticas públicas, por mais que o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis, de 2001, lute por melhorias, e que a Lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos, de 2010, preveja padrões sustentáveis de produção e consumo de bens, além da redução do volume e da periculosidade dos resíduos perigosos, dentre outros.

Mas, ali naquela cena, para além do descaso com que a maior parte da sociedade os trata, o que me prendeu a atenção e o pé no freio do cotidiano, foi o gesto de gentileza, de delicadeza, de preocupação. Presenciei a atenção para um semelhante, para um colega do infortúnio de morar nas ruas, do viver da coleta de recicláveis. Semelhantes na ausência de uma estrutura social que os ampare.

Me sensibilizou a atitude do jovem que teve a iniciativa de proteger quem dormia praticamente ao relento, apesar de todo o calor e barulho de uma rua sempre repleta de turistas. Não sai da minha memória o sorriso de satisfação do jovem pela ação feita, da não necessidade de ter sua atitude reconhecida. Não sai da minha própria satisfação perceber como a gentileza brota de onde se espera apenas secura pela aridez da convivência nas ruas.

E é neste ponto em que concentro minhas reflexões. A gentileza não é hereditária, embora o exemplo em casa possa garantir sua permanência na família. Não é doença tão pouco, mas pode ser contraída pelo toque afetivo de alguém gentil. O melhor: ela está em qualquer um que simplesmente se sinta feliz em fazer algo para ver o outro bem.

E pode ser encontrada em uma mão desconhecida que cobre o outro do sol, com um boné. Quanto mais inesperado o lugar, mais necessário que brote a gentileza.

Foto do Ana Márcia Diógenes

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