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O que diria Rachel?
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Escritora. Estreou como romancista em 1989, com Boca do Inferno (prêmio Jabuti de revelação). É autora de Dias & Dias (2002, prêmio Jabuti de romance e prêmio da Academia Brasileira de Letras)

Ana Miranda crônica

O que diria Rachel?

Tipo Crônica
CAPA - Escritora Ana Miranda na praia de Picos, em Icapuí. (Foto: Theo Van de Sande/ Divulgação)
Foto: Theo Van de Sande/ Divulgação CAPA - Escritora Ana Miranda na praia de Picos, em Icapuí.

Desde 2003, quando a nossa Rachel foi morar no céu, o mundo mudou como nunca, com tanta velocidade, variedade e amplidão. Nossos hábitos mudaram, nossas mentalidades, nossa rotina mudou, surgiu um fundo abismo repartindo o país, e não somos mais livres para abraçar, sorrir, tossir ou viajar. Quando matuto nessas transformações, Rachel me vem à lembrança, com seu sorriso sincero e seu colar de pérolas de uma volta, seu vestido de poás. Linda. Seus cabelos sem vaidades. Suas frases diretas. Parceira da verdade, ela dizia gostar de frases que doem. Doer, para quem entende a Rachel, significa as frases que ninguém quer dizer, mas precisam ser ditas. Ela estava sempre em busca dessas frases e as dizia, e era nela que doíam mais.

E penso: o que diria hoje a Rachel? Não é difícil imaginar. Ela não estaria, nunca, a favor de alguém que gostasse de cortar árvores para fazer dinheiro, Rachel escreveu diversas vezes como sentia orgulho de seu pai ter preservado os angicos, cumarus, paus d'arco, violetas da fazenda, enquanto muita gente na região ganhava dinheiro vendendo as madeiras para lenha de locomotiva. Nunca estaria a favor de um mandatário que tivesse desprezo pelos pobres, Rachel amava o povo da sua fazenda e era amada por eles, lavradores, carpinteiros, cozinheiras, doceiras, pedreiros, vaqueiros, a todos ela recebia com fartura de afeto, proteção, café, cuscuz e bolo, na mesa de madeira da sala. Nunca iria apoiar alguém que atacasse os livros, o conhecimento, o saber, a inteligência, a educação, a informação precisa, pois era nisso que Rachel acreditava, essa foi sua escaramuça. E Rachel tinha compostura, possuía uma altivez e austeridade sertanejas, um respeito reverencial pelo outro, ia ficar horrorizada com a falta de decoro e consideração para com o múnus, de atuais governantes. Talvez ela ficasse amiga do Mourão e lhe diria, Mourão, tu és um índio! Tome tento, homem!

Sinceramente, acho que ela não iria gostar nada do isolamento social, todos a sua volta ficariam rodeando seus passos, tentando que Rachel não abraçasse os amigos, visitantes, fãs, leitores. Decerto ela viria para o Ceará, para a fazenda Não Me Deixes, e sozinha no pequeno chalé iria escrever mais uma obra-prima dos sertões secos, agora repletos de motocicletas em vez de cavalos, antenas em vez de aboios, celulares em vez de cabritos. Será que Rachel teria um telefone celular? Acho que não, embora ela não escrevesse à mão, adotou sem hesitar a máquina de datilografia, pois era jornalista. Certíssimo, que ela iria defender a classe.

E como se sentiria mal ao esconder com uma máscara de pano o seu sorriso tão aberto! E como sofreria com a partida de amigos, de tanta gente que nem estava previsto partir e partiu por ignorância da política e desumanidade. E ela diria, Não acredito em Deus, minha gente, mas tive aqui uma conversa franca com Ele, e Ele disse... assim começaria uma crônica da Rachel. Para mim, sei que ela diria: Minha filha, quer um bolinho com chá? Eu não acredito em Deus, minha filha, mas que Deus te abençoe e te dê força na tua luta neste mundo.

Foto do Ana Miranda

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