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O verbo Zuilar
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Escritora. Estreou como romancista em 1989, com Boca do Inferno (prêmio Jabuti de revelação). É autora de Dias & Dias (2002, prêmio Jabuti de romance e prêmio da Academia Brasileira de Letras)

Ana Miranda crônica

O verbo Zuilar

Tipo Crônica
2002anaMIRANDA (Foto: 2002anaMIRANDA)
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Eu zuilo, tu zuilas, ele Zuila, nós zuilamos... Esse verbo foi inventado por Dodora, a nossa esmeralda. Significa viver com entusiasmo, ímpeto, paixão. Inspirou-se numa senhora chamada Zuila, que Dodora conheceu pessoalmente e soube de suas histórias contadas pelas filhas e amigos.

Zuila foi uma sertaneja linda, uma beleza que não compreendiam na pequena Icó, a beleza cabocla: olhos grandes, lábios grossos, naqueles tempos as moças bonitas eram as de lábios finos, cabelos louros. E as tias diziam que Zuila nunca ia casar, porque era feia. Mas um dia um doutor foi construir um posto agrícola em Lima Campos, viu a mocinha vaidosa caminhando numa estrada poeirenta, de sombrinha, colar de contas e vestido de chita florida que ela mesma costurava, e se apaixonou para toda a eternidade. Antes de casar, enviou a amada para se refinar na Escola Doméstica de Natal. Ali começou uma história de Cinderela.

Bailes no Ideal Clube, partidas de tênis, carro conversível, vila de bangalôs, palazzo pijama, lista das dez mais elegantes... Doutor Raul, engenheiro agrícola, passava o dia trabalhando, e a casa de Zuila era feminina: três filhas, babás maravilhosas, cozinheiras, costureiras, bordadeiras, exímias rendeiras, engomadeira só para as camisas de linho do doutor; cantorias, risadas, Clair de Lune na Praia de Iracema. Um sobrinho de Zuila diz que ali era onde as crianças gostavam mais de passar o dia, pois se sentiam livres. O verbo zuilar também significa amar a liberdade. E amor ao outro. Ela criou filhos de retirantes, acolheu meninos de rua, pessoas abandonadas, vítimas de preconceito, suas histórias dariam romances de Jorge Amado, sensuais, alegres e combativos.

Zuila viveu 103 anos com entusiasmo, ímpeto, paixão pela vida. Morou em diversos lugares sempre revolucionando costumes e ideias, cercada de admiradores, aprendizes, seguidores. Passou por sofrimentos, mas viveu sempre em busca da felicidade para si e para o mundo. Na sua festa de cem anos ela passou a noite a dançar valsa e a receber flores, frutas da infância, brisas de anjos, abraços de centenas de pessoas. Há uns dias ela saiu do casulo, tornou-se borboleta, voou para o céu, virou a estrela que sempre foi, a lua enamorada, a lembrança adorável. Tivemos todos de zuilar, ou seja, não chorar, ela preferia os sorrisos às lágrimas, a música ao choro, a dança à tristeza.

E domingo foi dia de zuilar. Calçamos luvas azuis, compramos sacos reforçados, prendemos os cabelos e descemos até a praia. Moças nativas lindas, pescadores, crianças, nos juntamos a moradores da areia. Fomos tirar o lixo que seres humanos jogam no paraíso, em gestos de insanidade e estupidez. Foram dúzias de sacos com detritos recolhidos. Só três crianças e eu, numa equipe, enchemos seis sacos com garrafas, pedaços de isopor, plásticos, embalagens chinesas, chinelas, escovas de dentes, condons... Zuila amava as belas praias cearenses. E com voz de borboleta ela dizia: Filha, não sinta raiva, somos todos irmãos. Fomos zuilar com as crianças, um sorvete para cada um, celebrar o amor pela natureza, dar risadas nas dunas.

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