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Mottainai, a alma do prego
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Escritora. Estreou como romancista em 1989, com Boca do Inferno (prêmio Jabuti de revelação). É autora de Dias & Dias (2002, prêmio Jabuti de romance e prêmio da Academia Brasileira de Letras)

Ana Miranda crônica

Mottainai, a alma do prego

Tipo Crônica
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Dia destes encontrei um prego no chão. Quantas vezes nem parei para pegar um prego, parafuso, um botão, uma chave antiga, até mesmo uma moeda. Mas naquele dia, ao ver o prego logo me veio à mente a palavra: Mottainai! Tomei-me de amor pelo prego! Aquele objeto pequenino, tão simples, prateado. Curvei-me, peguei-o, soprei a areia, guardei-o na gaveta de blusas, como se fosse um neném magrinho. Senti-me quase feliz.

Harumi, filha do artista Zé Tarcísio, foi quem nos ensinou esta estranha palavra: Mottainai. Harumi mora no Japão e Mottainai é uma palavra japonesa. Dizem mesmo que não é uma palavra, mas uma ideia. Significa: Você não está sendo digno ao desperdiçar. Carrega a sensação de pesar. E, exclamada, quer dizer: Não desperdice! Mas, também significa que cada coisa no mundo tem uma alma. Tudo tem um valor em si mesmo. Tudo tem uma história.

A ideia nasceu no Japão, um grupo de ilhas pequenas intensamente povoadas e com poucos recursos. Lá, o desperdício é inaceitável. A ideia é que devemos usar tudo por todo o tempo de toda a sua existência. Um quimono rasga, é remendado, usado, rasga mais, é cortado em pedaços que são costurados formando um novo pano, é feito um novo quimono para ficar em casa, depois, mais desgastado, o quimono vira toalha de mesa, depois pano de chão, até se extinguir completamente. É uma arte.

E eles aconselham: comprar somente o necessário. Não desperdiçar coisas, mas também evitar perder tempo, esforço. Produzir o mínimo de lixo. Uma menina japonesa levou tão a sério a filosofia do Mottainai que resolveu provar ser possível viver sem produzir lixo. Ela quase conseguiu, em um dia criou apenas um pequenino volume de lixo que cabia numa xícara.

Tenho uma linda amiga que não é japonesa, é cearense, a Betinha, que pratica o Mottainai. Não compra roupas, apenas recicla, reaproveita alimentos, junta cascas e bagaços para adubo, usa o mínimo de água e energia, tudo ela faz por amor ao planeta. E um amigo escritor, Otto Lara Resende, aproveitava cada pedaço de papel que ficava em branco numa carta, num documento, num rascunho, recortava, juntava e fazia suas anotações para o romance ali, com uma letra bem pequenina para não ocupar espaço. Coisa mais emocionante aquele mosaico irregular de palavras, como um tesouro de pérolas. As palavras que ele usava no romance, guardava os papéis separadamente, nunca os jogava fora. Ficaram como um rastro precioso de sua ourivesaria literária. Eram a alma do livro de papel.

Mas, o que seria a alma daquele prego prateado e fino? Decerto a alma dos mineiros que tiraram o metal da terra, mais a dos que carregaram o metal num caminhão, mais a dos que transformaram o metal em prego, e o poliram, embalaram, levaram, mais a alma dos que venderam o prego, a do mestre de obras que o comprou, mais a alma do carpinteiro que perdeu o prego ao construir um telhado. E mais a minha alma, que se incorporou amorosamente ao pequeno prego, numa conexão misteriosa entre tudo o que existe no mundo. Ontem à noite precisamos aqui em casa pendurar um quadro, e lá fui eu buscar o prego na gaveta.

 

Foto do Ana Miranda

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