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O idiota da família
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Escritora. Estreou como romancista em 1989, com Boca do Inferno (prêmio Jabuti de revelação). É autora de Dias & Dias (2002, prêmio Jabuti de romance e prêmio da Academia Brasileira de Letras)

Ana Miranda crônica

O idiota da família

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Os idiotas têm um grande prestígio na literatura. Há dois maravilhosos personagens idiotas em livros clássicos. Um ficcional e um real. O primeiro é o príncipe Míchkin, no romance O Idiota, escrito por Dostoievski, talvez o maior de todos os romancistas. Míchkin é uma criatura quase irreal, um jovem tímido, delicado, cheio de ternura no coração, que tem uma visão de mundo impenetrável para as pessoas que o cercam. Seus gestos são incompreendidos: ama e defende uma mulher considerada devassa e neurótica; oferece parte de sua herança às pessoas que tentaram roubá-la; tenta salvar de seus próprios instintos destrutivos um homem que o agride e que é seu rival no amor... A bondade e o senso de justiça de Míchkin são enigmáticos, e os que vivem na sombra e na ignorância, incapazes de uma percepção mais profunda, o consideram idiota. Na construção do personagem está o Cristo que ama e perdoa, misturado ao delirante herói dom Quixote que luta contra moinhos de vento. O príncipe Míchkin é como um ideal de beleza da alma humana, com a pureza de uma criança, a sabedoria e a elevação de um ser iluminado.

O outro sublime idiota é o escritor Gustave Flaubert, que escreveu o romance hoje considerado o mais perfeito na construção da prosa e com uma maestria absoluta da arte de narrar: "Madame Bovary". Durante cinco anos Flaubert dedicou-se a uma extenuante e obsessiva busca da excelência com rigor, precisão, apuro. Essa obra-prima é feita de sutilezas, camadas que se entrelaçam, jogos de vozes, imagens, perfis, hesitações, cenários, causalidade e subjetividade dos acontecimentos... Flaubert foi estudado durante uns quinze anos por Jean-Paul Sartre, que escreveu cerca de três mil páginas sobre o romancista, publicadas com o título: O Idiota da Família.

Flaubert foi uma criança que aprendeu a ler muito tarde, chorava, ávido para aprender, sua impotência o desolava. Os familiares o consideravam "retardado". Superprotegido, desamado, preguiçoso, fanfarrão, teimoso, sentia-se inferior, era submisso, carente e tinha inúmeras "bobeiras". As frustrações, no entanto, foram matéria para sua construção pessoal e literária. Em O idiota da Família vemos as transformações daquela criança "retardada", de um adolescente sem interesse pelas aulas, um jovem entregue à boêmia e devassidão, reprovado nos exames de direito na universidade de Paris, tomado por crises nervosas, alucinações, perda de consciência em crises de epilepsia, até se tornar um dos maiores escritores da literatura universal. De idiota a gênio.

De forma que, se alguém nos chama de idiotas, não vem nisso nenhuma ofensa. Sejamos idiotas. O significado antigo da palavra, em sua origem grega, era: um cidadão privado, individual, que se aparta da vida pública. Ainda que a palavra seja, hoje, sinônimo de palerma, tolo, imbecil, lerdo, tonto, estulto, néscio, obtuso, mentecapto, parvo, entre outros, é melhor ser chamado de idiota do que, por exemplo, de genocida... Vamos defender a vida, ainda que ela seja "uma história contada por um idiota, repleta de som e fúria, e que nada significa", dizia Shakespeare.

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