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A tempestade perfeita
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Escritora. Estreou como romancista em 1989, com Boca do Inferno (prêmio Jabuti de revelação). É autora de Dias & Dias (2002, prêmio Jabuti de romance e prêmio da Academia Brasileira de Letras)

Ana Miranda crônica

A tempestade perfeita

Tipo Crônica

Catástrofe, uma tempestade desaba, o céu se risca de raios, trovões ecoam, rajadas de vento arrancam telhados, ruas parecem rios furiosos. Milhares de pessoas filmam a tormenta e vemos, como se fosse de nossa janela, as imagens impressionantes da força das águas a arrebatar uma casa que parece feita de papel e se esmaga contra a ponte, de carros e árvores arrastados, construções engolidas por deslizamentos, cidades arrasadas, pessoas que afundam, desaparecem...

Com as notícias das enchentes na Alemanha, Bélgica e Holanda, meu celular inundou-se de mensagens dos familiares e amigos pedindo notícias. Acho que eles me imaginam numa dessas tormentas, mas aqui em Amsterdã faz sol. Em algumas cidades da Holanda houve tempestade, mas quase nada aconteceu, desde a Idade Média os holandeses conhecem as águas, seu poder, seus mistérios. Eu diria, mesmo, que são o Povo das Águas. A maioria das cidades fica abaixo do nível do mar. Eles construíram o país negociando com Netuno, sereias, os gnomos Kabouters, com Nealênia e seu cão de olhos bondosos, com as águas de mares e rios, chuvas e borrascas.

Depois de uma terrível tempestade em 1953, quando morreram duas mil pessoas, os holandeses passaram a olhar para o futuro e fizeram grandes e pequenas coisas para prevenir enchentes. Construíram e reforçaram diques e barragens em toda a costa, o Deltawerken, e em Roterdã surgiu uma majestosa estrutura de aço operada por computadores para controlar o nível das águas, uma das maravilhas da engenharia moderna no mundo. Ao mesmo tempo, todos os dias onze homens trabalham para combater uma grave ameaça à mais avançada rede do planeta de proteção contra tempestades: esses pequenos heróis caçam ratos-almiscarados, usando gaiolas de metal e armadilhas com cenoura. Os caçadores de roedores de Flevoland realizam um serviço vital, pois esses ratos constroem ninhos nos diques e os danificam. Fazem lembrar o menino da antiga lenda holandesa, com o dedo no dique.

Além da água do mar, que está subindo com o degelo causado pelo aquecimento do planeta, os holandeses são ameaçados por ferozes tempestades vindas do noroeste, que passam pelo Mar do Norte e chegam à costa do país. Eles falam sempre na "perfect storm", a tempestade perfeita. Um dia virá a tempestade perfeita, dizem, e precisamos estar preparados. A tempestade perfeita é uma rara combinação de elementos meteorológicos, como excesso de água por minuto, ventos poderosos, raios, relâmpagos e trovões em intensidade assustadora, nuvens negras, pedras de granizo, mar revolto, águas que sobem devido à baixa pressão. Acontece a cada dez mil anos e pode causar milhões de vítimas.

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O termo "tempestade perfeita" passou a ser usado para qualquer situação na qual ocorre uma combinação improvável de circunstâncias que traz graves efeitos negativos, inesperados, indesejados. Hoje se usa o termo nas áreas de economia, finanças, política, sociologia, além da própria meteorologia. Fizeram filme, livros, análises de crises. No Brasil, uma tempestade perfeita parece que está se passando agora, juntando desgoverno e pandemia.

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