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Hortas, frutas e flores
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Escritora. Estreou como romancista em 1989, com Boca do Inferno (prêmio Jabuti de revelação). É autora de Dias & Dias (2002, prêmio Jabuti de romance e prêmio da Academia Brasileira de Letras)

Ana Miranda crônica

Hortas, frutas e flores

Tipo Crônica
3107_V&A (Foto: 3107_V&A)
Foto: 3107_V&A 3107_V&A

Pegamos o trem. Fomos fazer uma visita familiar em Utrecht, no centro da Holanda, fundada pelos romanos em 47, a mais antiga cidade do país. Torre gótica, cervejaria em um castelo, tesouros arqueológicos, pianolas, passeios subterrâneos... A cidade tem mais bicicletas que pessoas. Ali, coisa mais inefável, os pontos de ônibus são cobertos por plantas para atrair abelhas, limpar do ar a poeira fina e refrescar a cidade nos meses de verão. Quem cuida dessas plantas são os motoristas dos ônibus - elétricos, movidos à energia dos moinhos de vento.

Em Utrecht fiquei conhecendo uma das ideias mais terapêuticas e exemplares, que encheu meu coração de amor por sua delicadeza. Quando você passa de trem, já pode ver: umas misteriosas cabanas de madeira cercadas de plantas e flores, ao longo de um canal, bordejando bosques. Pequenas demais para serem casas, lindas demais para serem depósitos ou algo assim. São os vergéis da municipalidade.

A instituição usou um terreno próximo da cidade, onde corre um riacho. Fez um estacionamento, a entrada com uma placa informando o nome do lugar, Kloosterpark. Instalou um sistema de água, pavimentou trilhas, dividiu o terreno em lotes de uns cinquenta metros quadrados e os alugou a pequeno preço para moradores da cidade. Cada um fez a sua cerca, seu portãozinho, estufa, sua cabana para guardar ferramentas, onde sempre cabe uma mesa com cadeiras, ou um sofá de vime, talvez um fogareiro, bule, xícaras. Prateleiras guardam um regador, luvas, tesoura de poda, pulverizador, cestas... Do lado de fora, botas de borracha, carrinho de mão, rolo de tela, vasos, sacos de adubo, ancinho, pá, mangueira enrolada com manivela... Um tonel guarda a água da chuva.

Ali, cada inquilino planta um vergel. Cada vergel tem a personalidade do plantador. Uns gostam de flores, outros, mais utilitários, plantam uma horta com verduras e legumes, ou frutíferas, ou misturam de tudo isso um pouco. O resultado tem um ar silvestre, tudo lindamente desarrumado, com o desenho das mãos sensíveis. E as plantas têm liberdade, lembrando mesmo a natureza selvagem.

Fomos ao vergel de Claske. Ela plantou frutíferas, ervas, algumas flores, trepadeiras... é onde ela se refaz das tensões da vida. Experimenta a beleza do silêncio, da solitude. Na entrada, já vamos colhendo berries pretinhas ou vermelhas, suaves e adocicadas framboesas, os negros aveludados mirtilos... Pequenas árvores dão maçã, pêssego. Varais de arame sustentam videiras, cachos de uva despontam. Durante a pandemia, foi e tem sido o refúgio perfeito: ar livre, atividade do corpo e limpeza da mente. Os pensamentos fluem inspirados pelo encanto da amizade com as plantas. Elas são entidades de cura.

Naquele recanto, Claske envolve as crianças, seus netos, com a origem do alimento. Planta, semeia, sente a natureza nas mãos, toca a terra, vê nascer a vida vegetal, aduba, rega, lentamente crescem as plantas. Aprende a paciência e o essencial. Ali sua alma se enche de ternura, gratidão pelo milagre da natureza, os pensamentos se sublimam, a vida se torna mais próxima da felicidade, da paz.

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