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Ler o mundo
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Escritora. Estreou como romancista em 1989, com Boca do Inferno (prêmio Jabuti de revelação). É autora de Dias & Dias (2002, prêmio Jabuti de romance e prêmio da Academia Brasileira de Letras)

Ana Miranda crônica

Ler o mundo

Tipo Crônica
Ilustração de Carlus Campos (Foto: Carlus Campos/O POVO)
Foto: Carlus Campos/O POVO Ilustração de Carlus Campos

Gosto mais de aprender do que de ensinar. Mas quando ajudava Anésia a aprender a ler as palavras, ficava imaginando o sentimento de uma professora, um professor, ao alfabetizar uma criança ou um adulto. Ao ver aquela criatura ler a primeira palavra. Deve ser um sentimento de alegria misturado à sensação da bondade e de missão cumprida. Um trabalho generoso, e talvez o mais importante numa sociedade. Ensinar. Dizem que no Japão todos se curvam diante do imperador, mas o imperador se curva somente diante dos professores.

Sim, eu sei, algumas das pessoas mais sábias do mundo nunca aprenderam as letras. O Saramago, mesmo, disse isso de seu avô: O homem mais sábio que eu conheci em minha vida não sabia ler nem escrever. Conheci algumas pessoas assim, lavradores, pescadores, músicos, jardineiros, poetas, pintores de parede... Uma vez meu neto me disse que, se eu fosse para o mar numa jangada, eu, que li milhares de livros, não iria sobreviver, mas o pescador, que nunca leu nenhum livro, voltaria vivo. E eu disse ao meu neto: Tem razão! Mas ele sabe ler o mundo! Aprendeu a ler as correntezas, as cores da água, as estrelas, o movimento das velas, os ventos... A leitura do mundo precede a leitura da palavra, dizia Paulo Freire.

Antes de aprender a ler as palavras, Anésia tinha aprendido a ler o mundo. Ela foi a minha única experiência de alfabetização, e a sensação que tenho é que alfabetizei a mim mesma de uma descoberta. Sentia-me uma pessoa melhor, graças a Anésia. Foi bonito. Aprendi mais do que ensinei. Sentia-me uma pequenina discípula de Paulo Freire. No começo de sua vida ele alfabetizou trezentos lavradores em quarenta dias. Por isso foi preso.

Quando criei um método de ensinar para Anésia, havia a leitura de algum livro de Paulo Freire, que ficara em minhas memórias não tão distantes. Pressentia que Anésia não compreenderia jamais as palavras se não tivesse uma percepção mais ampla do mundo e de si mesma. Essa lição, recebi dos grandes educadores que formularam as escolas em que estudei: Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro. Você aprende o amplo, a pensar, entender e a criar sua visão de mundo, depois vai fazer alguma coisa. Era uma educação maravilhosa, mas para pessoas privilegiadas. O Paulo Freire mostrou que todos merecem uma educação que ensine a pensar. Ou o país nunca será feliz.

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Paulo Freire faria cem anos, dia destes. Andei relendo suas palavras, vendo o quanto ele continua vivo, necessário, o quanto honra nosso Brasil diante do mundo. O quanto é amado. E perigoso para sistemas totalitários, elitistas, o quanto é temido por pessoas e sistemas assim. Ele anunciou o cerne do dilema que vivemos hoje em plenitude: Todos temos uma ideologia, a questão é se ela é inclusiva ou excludente. Existem mais de 350 escolas com seu nome, pelo mundo. Seu livro, Pedagogia do oprimido, é a terceira obra mais citada em trabalhos de humanidades em todo o planeta. O que ele diz, ainda precisamos ouvir. Todas as homenagens a ele foram pequenas diante de o quanto ele nos ensinou a sermos um país justo, iluminado. E foram homenagens a todos os professores.

Foto do Ana Miranda

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