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A voz da Sumaúma
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Escritora. Estreou como romancista em 1989, com Boca do Inferno (prêmio Jabuti de revelação). É autora de Dias & Dias (2002, prêmio Jabuti de romance e prêmio da Academia Brasileira de Letras)

Ana Miranda crônica

A voz da Sumaúma

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Tipo Crônica

Sumaúma, árvore majestosa, a mais alta e frondosa da Amazônia, une o céu e a terra, dizem os xamãs. Ela retira água e nutrientes das profundezas subterrâneas, com os quais alimenta outras árvores, por isso é chamada Árvore Mãe ou Árvore da Vida. Suas raízes parecem falar: indígenas as golpeiam com uma baqueta, ou um casco de jaboti, em séries ritmadas, avisando sobre invasores ou convidando para um ritual; e o som das batidas ecoa por longas distâncias no interior da floresta que tem a acústica de uma catedral, diz minha irmã, que cantou sob copas e em clareiras. Para os humanos, fornece muito mais do que ar puro e alimento, mais que rios voadores e sobrevivência, mais que uma paina leve, sedosa. Oferece admiração, perplexidade diante daquela força da natureza, por nossa pequenez humana e o sentimento do sagrado. Que deus está ali?

Sumaúma é, também, uma revista com voz combativa a favor do meio ambiente, que conta histórias e reflexões de povos da Amazônia, traz conhecimento sobre clima, flora, fauna, grita contra ameaças que afetam indígenas e toda a vida que existe na mata. Ali acabo de ler a história de borboletas que mimetizam as cores de suas asas convertendo-as em cinzentas, para sobreviver nas matas incendiadas; e a do macaco zogue-zogue, recentemente identificado por cientistas, porém já em perigo de extinção. Na Sumaúma li um belo texto sobre as vozes dos animais.

Decerto, os animais têm voz, se expressam por sons. Não apenas os que aprendemos desde crianças: cantam pássaros, arrulham os pombos, relincham os cavalos, leões rugem, uivam os lobos, ladram os cães, miam os gatos, dão urros os elefantes, galinhas cacarejam, zunem os mosquitos; mas todos aqueles animais que vivem nas florestas têm suas vozes. E os indígenas as conhecem, sabem ouvi-las, e as inseminam em suas línguas na criação de uma maravilhosa interlíngua - termo que me foi ensinado pelo poeta Marco Lucchesi. Dialoguei com essas vozes imaginariamente quando escrevi Yuxin, romance passado em uma Amazônia literária, no qual os seres da floresta são narradores. Ali há a fala de animais, o restolhar de folhas que sussurram, a voz úmida dos rios... Vozes encantadoras, belas, misteriosas, profundas, por vezes irritantes, assustadoras... Indígenas não se sentem, como nós, seres separados da natureza, até mesmo separados da alma, ensina Ailton Krenak. Eles são a própria natureza, sua existência é entrelaçada à de todos os animais, minerais, vegetais que ali habitam, e também aos rios, mares, à Lua, ao Sol, às estrelas... Não se julgam, como nós, o centro do mundo. Eles se alimentam de animais e se ornam com suas penas; mas não se creem superiores.

Assim, ouvem e compreendem as vozes de seus partícipes, como se elas ecoassem de dentro de si mesmos. Entendem o que dizem os peixes quando murmuram, ou o gemido das libélulas, o silvo de caramujos sob a pedra, o mover da língua das serpentes... Indígenas, animais, plantas, ventanias, pedras, águas doces e salgadas, vapores, nuvens, todos têm uma voz que ecoa na floresta, assim como os sons da sumaúma. Devemos ouvi-la.

Foto do Ana Miranda

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