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Os poucos felizes
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Escritora. Estreou como romancista em 1989, com Boca do Inferno (prêmio Jabuti de revelação). É autora de Dias & Dias (2002, prêmio Jabuti de romance e prêmio da Academia Brasileira de Letras)

Ana Miranda crônica

Os poucos felizes

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Tipo Crônica

Quando era adolescente, eu ouvia falarem de Shakespeare e tremia, ler seus escritos me parecia o mesmo que subir uma montanha alta, íngreme e pedregosa, até mesmo escrever seu nome soava como um desafio; mas, aos poucos fui tomando coragem e não apenas aprendi a escrever seu nome como escalei a cordilheira de seus dramas, sonetos, e lá do alto pude ver a mais dilatada paisagem que a mente humana poderia me oferecer, a mais rica e estonteante linguagem. Ele passou a fazer parte de mim como um amigo íntimo, um mestre que me ensinara tudo sobre a humanidade. Convivo com ele a cada vez que leio seus imortais arranjos de palavras e ainda fico sem ar, em suspenso com tanta grandeza, compreensão, bom humor. Aqui e ali ele me reaparece: Meu reino por um cavalo! Ótima escapatória para o ser humano, esse mestre da devassidão, culpar as estrelas por sua natureza de bode.

Há décadas escrevo a última crônica do ano com o mesmo tema: Nós, os poucos felizes, em que faço uma espécie de retrospectiva e agradecimento pelo que temos. Uma casa, um fogão, um travesseiro, um prato de feijão podem parecer pouco, ou nada, mas são uma bênção. O solilóquio da peça "Henrique V" é tido como uma das maiores passagens de obra de Shakespeare. Os poucos felizes são os soldados que vão lutar na batalha de Azincourt e ouvem o rei que, a cavalo, os conclama a lutar com toda a tenacidade, irmanando-os na coragem e no amor ao país: "Nós poucos, os poucos de nós felizes, somos um bando de irmãos. Pois aquele que derrama seu sangue junto comigo passa a ser meu irmão"... diz o rei Henrique V que nos vem à lembrança na majestosa figura de Laurence Olivier. No tempo em que os reis iam para o campo de batalha, e não como hoje, em que governantes manipulam seus soldados e ficam escondidos embaixo da mesa.

Nós, os que sabemos ler, que temos livros, sabemos quem foi Shakespeare, somos capazes de escrever seu nome e lemos suas obras; nós, que podemos votar e escolher nossos governantes; que somos soldados de uma batalha vencida com inteligência e estamos cheios de esperança; nós, que não nos escondemos quando perdemos uma luta; que não precisamos nem queremos mentir; nós, que acreditamos num novo tempo que trará mais justiça para o povo; que temos coração e amamos os vulneráveis, os moradores de rua, os que passam fome, os sem-terra, os que almoçam sem saber se vão comer amanhã, os órfãos da pandemia, os indígenas, os animais, as florestas, os habitantes das periferias, os poetas e a poesia; respeitamos idosos e crianças; nós, que sabemos perder com dignidade, aguentamos um embate contra forças maiores que nós e não naufragamos em nosso desespero e angústia; nós, que não nos sentimos como as figuras patéticas que se ajoelham na frente de tanques, de pneus e gritam, dia e noite, desejando ser governadas por tiranos; nós que não usamos armas de fogo, bombas nem granadas, mas lutamos com palavras; nós que somos respeitados nos encontros mundiais; nós, que temos voz, coragem, não tememos a justiça, sabemos escrever o que pensamos, nós que sonhamos, nós somos os poucos felizes.

Foto do Ana Miranda

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