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Flores na Holanda
Foto de Ana Miranda
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Escritora. Estreou como romancista em 1989, com Boca do Inferno (prêmio Jabuti de revelação). É autora de Dias & Dias (2002, prêmio Jabuti de romance e prêmio da Academia Brasileira de Letras)

Ana Miranda crônica

Flores na Holanda

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Tipo Crônica
2904anaMIRANDA (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 2904anaMIRANDA

Chegamos a Amsterdã em plena primavera. Nossa calçada e as margens dos canais estão forradas de flores amareladas, os olmos se despiram das florações e brotam folhas claras, são os pequenos milagres da natureza. Catei no chão uns ramos de galhos com florinhas um pouco murchas e desbotadas, mas bonitas, e fiz um arranjo para a mesa, sentindo a felicidade singela criada pela presença das flores.

Há flores por todo lado, sobretudo tulipas, em floreiras, janelas, canteiros, jarros grandes ou pequenos diante das casas, dos barcos, ao pé de escadas, flores brotam em jardins e praças, nos parques, em telhados. Trepadeiras se agarram nas fachadas, os galhos secos soltam rebentos e começam a derramar cachos em tons de rosa. Tudo foi plantado por moradores e pela municipalidade. Eles cultivam flores para representar o sentimento alegre de que o inverno terminou, celebrar o sol que chega, ainda pálido. Todo mundo sai para as ruas.

Agora está acontecendo em Keukenhof uma exposição com milhões de flores cultivadas durante o ano, que vicejam em fabulosos jardins compostos por tulipas de todas as cores, até mesmo verdes como se fossem folhas, tulipas híbridas exóticas, e jacintos, narcisos, orquídeas, frísias, gérberas, lisiantos, rosas... Essas paisagens comentam temas: tropical, mítico, romântico, zen, e outros. Milhares de visitantes vêm para o tempo das flores, a cidade está repleta de pessoas a flanar e tudo parece em paz, sem medos, ouvimos risadas, fazemos fotos das flores.

No entanto, o mundo existe, e entramos em uma igreja, a Niewe Kerk, onde todos os anos são expostas as mais significativas fotos de contestação, da imprensa mundial. E lá estavam imagens que vinham diretamente contra o sentimento de um mundo não conturbado. Na foto na entrada o horror da guerra: a ucraniana grávida sendo levada de maca, após o bombardeio da maternidade em Mariupol. Mulheres dementes em Gana aprisionadas como feiticeiras. O protesto de iranianas contra a morte de Masha por usar vestes que violavam regras da polícia de costumes. A moça que fugiu ao casamento forçado e teve o nariz e as orelhas decepados por talibãs. Fuga de venezuelanos, guerra contra drogas nas Filipinas. Desespero, opressão, crianças famintas, machucadas, separadas dos pais por polícias de fronteira. Gente ferida, ódio, conflitos religiosos, refugiados, o sofrimento feminino, dos trans, o acidente no Peru quando um petroleiro derramou óleo no mar. O extermínio de abelhas, de alpacas... e lá estavam as flores.

Em Villa Guerrero, Paraíso das Flores mexicano, Local de Sonhos, tapetes de mil cores, gérberas tintas de vermelho vivo, flores dedicadas ao amado Jesus, altares floridos, milhares delas para presentear as mães, à venda na carroceria de um carro... E os belos seres sendo fumigados por nuvens de pesticidas. Uma coleção de fotos mostrava pessoas que trabalham nos plantios da "beleza envenenada", contaminadas a ponto de sofrer deformidades. Era uma mostra de martírios criados pela própria humanidade. Saí dali tocada pelo contraste dos sentimentos. Bem dizia o pessimista Nietzsche, a felicidade é esquecimento.

Foto do Ana Miranda

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