
Escritora. Estreou como romancista em 1989, com Boca do Inferno (prêmio Jabuti de revelação). É autora de Dias & Dias (2002, prêmio Jabuti de romance e prêmio da Academia Brasileira de Letras)
Escritora. Estreou como romancista em 1989, com Boca do Inferno (prêmio Jabuti de revelação). É autora de Dias & Dias (2002, prêmio Jabuti de romance e prêmio da Academia Brasileira de Letras)
Em uma reza a são José, o padre Lancellotti contou algo que ele sempre mantivera em segredo: Rita Lee lhe dava as roupas que não usava mais, para serem distribuídas entre os moradores das ruas de São Paulo. "E eles ficavam encantados ao receber as roupas da Rita Lee", disse o padre. "Todas as suas roupas cheias de brilho, cheias de espelhinhos, cheias de pedrinhas, cheias de colorido e num corte muito especial. E todo mundo queria as roupas de Rita Lee". Para mim foi uma confidência bonita, surpresa em tom de rosa choque.
Imaginei o padre na praça retirando as roupas de um caixote, um mágico a colher buquês de crepom da cartola, e as repartindo entre os moradores das marginais profundezas da rua, pessoas vulneráveis, com marcas de brutalidade, fome, frio, miséria, desamor. Os órfãos do capitalismo, filhos de desemprego, alcoolismo, drogas, violência familiar, que se dane, humilhação, males mentais, estupro, solidão. Nossos filhos. Aquelas também ovelhas negras. Marcas do abandono, a não ser por almas abnegadas, ou religiosos humanistas. Sopão, quentinha, cobertor... Um pouco de atenção, perto do fogo. Afora isso, há poucos programas, abrigos sujos em que são chamados por números. Marcas de medo, ignorância, desprezo, veneno cruel. Não são nem mesmo lixo.
E entressonho a fila dos moradores de rua, cada um recebe uma roupa, vejo-os vestindo sobre seus panos miseráveis as roupas de quimeras, de atenção, amor. E eles saem pela praça, pelas calçadas, pelos jardins da Babilônia, mutantes, em num momento raro de felicidade, este com um terno azul-prata, aquele com um cinturão de águia, outros com um chapéu de feiticeira, uma blusa psicodélica, um collant de onça, uma camisa de bananas, uma segunda pele com estrelas, um manto de plumas, uma peruca de pérolas, um vestido de noiva grávida, uma blusa de lamê dourado ou um simples moletom amarelo escrito: Rita Lee. Formam uma espécie de armada do sofrimento humano. As vítimas da maldade, do egoísmo. Filhos da erosão do passado humano. E eles cantam, Se Deus quiser, um dia acabo voando, tão banal assim como um pardal, meio de contrabando, desviar do estilingue, deixar que me xingue. E tomar banho de sol...
E me vem à mente o que cada um sentiu ao vestir uma roupa da estrela: um instante de luz, de amar a si mesmo, ser ele mesmo uma estrela. Talvez tenha sido mais crucial do que um tratamento de saúde, um emprego, uma visita à família. A cortina se abria e lhes dava a sensação de serem humanos, fazer parte do show. Voltaram a ter infância, seus desejos na cidade nua. Perto de um final feliz. O mundo cinzento se coloriu por um instante. Sua fome maior foi saciada, fome de respeito, de serem olhados por uma rainha, de terem o seu carinho, amor por telepatia.
O padre Lancellotti é um lutador presente, que conhece cada morador da rua pelo nome, convive com eles; e não vendeu as roupas nem fez um leilão, conforme lhe perguntaram, quando poderia arrecadar muito dinheiro. "Não foi para isso que ela mandou, ela mandou para dar para os irmãos de rua. E foi isso o que ela fez, e foi isso que foi feito".
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