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A leveza do acaso
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Escritora. Estreou como romancista em 1989, com Boca do Inferno (prêmio Jabuti de revelação). É autora de Dias & Dias (2002, prêmio Jabuti de romance e prêmio da Academia Brasileira de Letras)

Ana Miranda crônica

A leveza do acaso

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Tipo Crônica
ana miranda 22 07 (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos ana miranda 22 07

Pensei muito se devo contar esta história, porque é imodesta para mim, mas é tão bonita, uma bênção do inesperado, fez-me tão bem, e me levou a matutar tanto em tantas coisas... Aconteceu com uma amiga, ela estava em um quiosque à beira do rio Sena, turistando em Paris. Olhava livros velhos, de segunda mão, quando viu meu romance Boca do Inferno ali entre tantos, traduzido como Bouche d'Enfer. A capa negra trazia a imagem da face de um apóstolo, um rosto tosco, quase feio, esculpido por nosso maior artista do barroco, Aleijadinho. Ela quis pegar o livro, quando veio um senhor idoso, magro, e o tomou nas mãos.

Não lembro como a amiga me descreveu a cena, mas imagino que o homem deve ter lido as palavras sobre o livro na última capa, depois abriu-o, talvez tenha lido a primeira página, ou as duas da abertura que termina dizendo: a cidade tinha a imagem do paraíso, mas era onde os demônios iam aliciar as almas destinadas a povoar o inferno. Imagino a cena, ele com um chapéu preto, casacão, ela com os cabelos curtos e olhos amarelos, uma manhã fria, as águas cinzentas do rio, vultos atravessando a leve neblina, talvez um acordeon distante... momentos de hesitação, contemplação...

Quando o silêncio já durava muito, ela se aproximou e disse ao senhor que tinha lido o romance, era amiga daquela escritora brasileira, e travaram um diálogo creio que breve, talvez ele tenha dito que os escritores não inventam romances, mas os tiram das sombras, todos os romances estão em algum lugar do passado, e que o romance seria enterrado em nome da justiça histórica, assim como a miséria, as classes dominantes, os velhos modelos de carros e as cartolas. A imensa força do Barroco, disse, deu à Europa, região de fronteiras movediças e indefiníveis, uma certa unidade cultural... E que tinha horror a ouvir as batidas do seu coração lembrando que o tempo da vida é contado... E que "a história é tão leve quanto a vida do indivíduo, insustentavelmente leve, leve como uma pluma, como uma poeira que voa, como uma coisa que vai desaparecer amanhã"...

Mas, afinal o homem apresentou-se, era escritor, fora tcheco, agora era francês, e ela perguntou seu nome, ele disse, seu nome era Milan Kundera. Ele pagou o livro e o levou. Deixando minha amiga paralisada, como num sonho, acho que foi assim, ao menos aos olhos da romancista. Não sei se esse poético encontro mudou minha vida, nem o quanto me revolveu. Decerto que um escritor influenciado por Nietzsche, amante de Kafka, Beckett, Novalis, com a alma feita de luz, mas em região de sombras, haveria de se interessar por um romance com a palavra Inferno.

Não sei se ele o jogou em uma cesta de livros para ler mais tarde e o esqueceu, se o deixou na mesinha de cabeceira e leu um pouco, adormeceu, ou se lá pelas tantas decidiu que não gostava do livro, ou se o leu até o fim cheio de críticas, ou se sentiu prazer e realizou a magia da comunhão entre leitor e escritor e abraçou minha alma, mas, seja como for, ter o livro nas apaixonadas mãos de um de meus deuses da literatura e sob o olhar de uma amiga foi um presente do acaso.

Foto do Ana Miranda

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