Escritora. Estreou como romancista em 1989, com Boca do Inferno (prêmio Jabuti de revelação). É autora de Dias & Dias (2002, prêmio Jabuti de romance e prêmio da Academia Brasileira de Letras)
Escritora. Estreou como romancista em 1989, com Boca do Inferno (prêmio Jabuti de revelação). É autora de Dias & Dias (2002, prêmio Jabuti de romance e prêmio da Academia Brasileira de Letras)
Tenho visto, cada vez mais, mulheres descendentes de africanos a vestir cangas, panos da costa, turbantes, colares, brincos, pulseiras... Tudo lembrando as savanas, os bichos da África, o sentimento da geometria. Cada vez mais elas deixam seus cabelos naturais se expandir como copas de árvores frondosas, silhuetas em noites de luar. É forte, bonito, poético, é ideológico.
Ontem, mesmo, vi um vídeo em que a escritora Conceição Evaristo entra numa feira de livros, em suaves passos dançados, vestida com um tipo de túnica desenhada por folhas; usava colar, pulseiras com ar de selva africana. E era coroada por um tufo de cabelos grisalhos amarrados com uma faixa. Que sorriso, que altivez! Estava linda demais, representando ali muito além do que diziam cabelo, adereços, roupa: ela mostrava o orgulho de sua herança. Trazia nos gestos os sofrimentos por que passou, e os de seus antepassados; seus afetos, suas sabedorias ancestrais, as lágrimas insubmissas.
Adoro tecidos africanos, as estampas significam muito mais do que sol, penas de pavão, cascos de tartarugas, chifres de antílopes... Falam da diáspora, do sagrado; algumas têm significados políticos, ou homenageiam ícones como Mandela; e Niangoran-Bouah, da resistência africana. Gosto de me vestir com essas estampas, meu vestido favorito é um confortável caftan nigeriano. Tenho comprado capulanas na feira de Amsterdã. Trago para mim e para amigas.
Elas vêm com um selo de origem e metragem, em geral seis metros de longo, barrados nas beiradas. As estampas, esplendorosas, sobretudo se vistas em conjunto, são produzidas por uma companhia holandesa que, no tempo da revolução industrial, produzia panos de alta qualidade vendidos na Indonésia e na África. As estampas ganhavam nomes evocativos dados pelas comerciantes africanas: Eu ando mais rápido que você; Meu marido é forte; Seu pé, meu pé. Uma das mais apreciadas era a "olhos da minha rival", dos anos 1940, com losangos vermelhos sobre amarelo; o nome remetia às relações de coesposas, nos tempos da poligamia dominante. Cada capulana pode ter uma história: a que carregou o primeiro filho, a que casou a avó, a que levou a colheita do ano...
Por todo o continente africano, mulheres e homens se dedicam a produzir os mais belos panos. Arte intimamente tecida com o viver, os sonhos, as crenças, os rituais afros. Tingimentos de índigo ou mogno, fios de seda do mofo de caramujos, fios magenta levados pelo Saara, amarramentos com barbante, alinhavos, fibras de ráfia, colares que simbolizam divindades, penas, sementes, palhas, dentes, chifres, búzios, corais... A expressão dos povos da África se constrói com as mãos da tradição e da natureza. Os desenhos atuais se somam aos seculares, transmitidos por gerações, compondo um acervo com milhares de imagens, uma riqueza fabulosa.
Essas mulheres afro-brasileiras vestidas de roupas memoriais, os cabelos nativos, reconstroem seu rosto e alma, dão novos significados a sua realidade, marcam um lugar no mundo, seu modo de ser e sua essência, revertem a colonização feita pela vestimenta europeia, ampliam a voz dos oprimidos, tornam legítimo o que foi menosprezado... Ouço as palmas, os cantos a Xangô, e cá vem novamente a Conceição entrando na crônica, em sua dança da honradez, uma aparição de encanto que jamais esquecerei.
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