Logo O POVO+
Sonho em Gaza
Foto de Ana Miranda
clique para exibir bio do colunista

Escritora. Estreou como romancista em 1989, com Boca do Inferno (prêmio Jabuti de revelação). É autora de Dias & Dias (2002, prêmio Jabuti de romance e prêmio da Academia Brasileira de Letras)

Ana Miranda crônica

Sonho em Gaza

0411 anaMIRANDA (Foto: Carlus Campos)
Foto: Carlus Campos 0411 anaMIRANDA

Sonhei que estava à noite diante de uma cidade, via luzes pequeninas piscando, a paisagem parecia tranquila, mas uma explosão vermelha incendiava o horizonte. Logo, outra explosão, e outra... No céu, pássaros pretos mergulhavam, mas eram bombas que caíam das nuvens e eu entendia que estava em Gaza. Eu podia voar, sentia-me atraída, não podia ir para a cidade, mas quanto mais eu não podia ir, mais eu me aproximava, até que me vi em uma rua escura, no meio de ruínas.

Mulheres, homens, crianças, corriam, choravam, homens carregavam crianças feridas, passavam pessoas ensanguentadas, cordeiros, cachorros, todos cobertos de um pó cinzento, e eu olhava minhas mãos, meus braços, cabelos, percebia que eu também estava coberta pelo mesmo pó frio. No chão, cacos de vidro cortavam meus pés descalços que doíam muito, sangravam, eu lembrava que podia voar, mas não conseguia, estava pesada, prisioneira, precisava correr, como todos. Pessoas viravam destroços. Caía uma bomba perto de mim, despedaçava uma criança de pedra, eu via o fogo, que ficava como um cogumelo azul. Um espírito vinha e me assustava, com seus olhos em brasa e dentes de bronze. O que você veio fazer aqui? Ele perguntava.

Tomou-me uma sensação de angústia enorme, eu sabia que ia morrer, via a morte se aproximando, onde estavam as pessoas que eu amava? Moradores da cidade passavam em meio à fumaça no escuro, como fantasmas cinzentos, esbarravam em mim, eu pensava que devia correr na mesma direção de todos, mas ia no sentido oposto, algo me guiava, até que entrei em um corredor e vi um menino sentado, lendo um livro, era meu neto, mas ele tinha as feições palestinas, o corpo magrinho, e eu falava: Você precisa fugir, ele não me ouvia, como se eu estivesse em outra dimensão, das páginas do livro saía uma música árabe formando correntes de luz, meninas bailavam flutuando com véus e me levavam por uma porta.

Eu me via agora em uma caverna ampla onde centenas de homens velhos conversavam, as bailarinas diziam que ali estavam todos os sábios da Palestina; um pouco atrás, uma orquestra tocava música erudita ocidental, os músicos vestiam ternos pretos e, ao gesto de um dos sábios, a música, as roupas dos músicos e os instrumentos se tornavam palestinos. Eu estava, de repente, em um deserto de pedras brancas, havia o casamento de um rapaz palestino, as mulheres vestiam roupas de suntuosos tecidos rebordados. A noiva me olhava, tinha os olhos de um azul tão claro que parecia água, eu a reconhecia, era a adolescente que estudava comigo e um dia me contou ser judia, foi quando ouvi essa palavra pela primeira vez. Ela chorava, dizia que não queria guerra, jogava-se no chão e se transformava em uma oliveira. Eu olhava em volta, todas as pessoas haviam se transformado em oliveiras, e acordei. Mesmo no meio da madrugada fui olhar imagens da cultura palestina, ler e saber quem é esse povo como alma e em estado de paz. As estrelas ainda brilhavam no céu em tons de roxo, desta praia cearense ao nascer do Sol. Os passarinhos voavam e não eram bombas. Senti uma melancolia imensa, da humanidade insana.

 

Foto do Ana Miranda

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?