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A violência que circula, uma interrupção
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Cientista política, professora e pesquisadora. Doutoranda em Ciência Política na Universidade de Brasília, mestra em Ciência Política pela Universidade Federal do Piauí, pesquisa políticas públicas. Faz parte da Red de Politólogas e da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas. Escreve sobre política, literatura e psicanálise

A violência que circula, uma interrupção

Talvez na literatura seja como Édouard Louis pensa. Os melhores livros que conheci não retratam agressores e agredidos, mas, personagens complexos o suficiente para ocupar qualquer um desses lugares
DESTAQUE na Flip, Édouard Louis é autor de
Foto: Todavia/Divulgação DESTAQUE na Flip, Édouard Louis é autor de "Quem matou meu pai"

O escritor francês Édouard Louis, cujos livros não gostei tanto, falou algo que me interessou na Flip do ano passado, "a violência que permeou a minha infância acontecia como uma corrente elétrica, um ciclo em que não havia violentadores e violentados, mas sim um fluxo que circulava entre os corpos". Desde então, tenho perguntado se a violência, que a mim parecia uma escolha, tem mesmo essa característica amorfa de algo que se transmite e retorna, para além da vontade humana.

No tempo em que vivo ela segue fluxos unidirecionais, com raras exceções de retorno. Basta que alguém se levante e interrompa seu curso, para que discursos reivindiquem um suposto direito de um em violentar alguns outros. Por exemplo, dias atrás testemunhei uma pessoa em posição de poder institucional agredir verbalmente alguém, não fiquei surpresa que houvesse quem argumentasse pelo suposto direito da primeira em agir assim.

Talvez na literatura seja como Édouard Louis pensou. Os melhores livros que conheci não retratam agressores e agredidos, mas, personagens complexos o suficiente para ocupar qualquer um desses lugares. Mas, no mundo real, onde inventamos ficções políticas para não matarmos uns aos outros e, ainda assim, muitos são mortos por alguns, há de se colocar limite para a circulação da violência.

Há quase dois anos tenho pesquisado gênero, liderança e burocracia. Ouvindo dezenas de servidoras públicas federais para entender como e por que mulheres ocupam ou não posições de chefia, aprendi que a violência está muitas vezes em jogo. Nas instituições há quem está autorizado a violentar e há quem pode ser violentado.

Não por acaso, o fluxo da violência circula a partir dos corpos e seus lugares, por isso, já não me impressiono quando uma mulher se utiliza da função que ocupa para atormentar colegas, num roteiro digno de Kafka. Em geral, ela é branca. Porque, outra coisa que aprendi estudando burocracia, é que as instituições são generificadas, racializadas e organizadas também por classe, quer as chefias queiram ou não.

As perguntas que faço são semelhantes para muitos fenômenos: quem ganha com a violência fluindo de uns contra muitos outros? Quem ganha com a dominação através dela? Quem lucra com o sofrimento de quem é violentado? Quem assiste o circo de pequenos poderes? E como boa cientista política não acredito em conspirações, as instituições se organizam assim porque lhes é permitido.

Ao que parece, a mudança institucional só acontece quando há um limite ultrapassado. O problema, com o avançar do neofascismo, é justamente o malabarismo retórico que denega o limite. São tempos difíceis para quem não recua de nomear a violência e interromper sua circulação.

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