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Pandemia em bola de cristal
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Médico, Epidemiologista. Pós-doutor pela Universidade de Harvard (Harvard School of Public Health). Doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Mestre em Epidemiologia Ambiental e Políticas pela Universidade de Londres (London School of Hygiene & Tropical Medicine) e Residência em Medicina Preventiva e Social na Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz).

Antonio Lima Neto ciência e saúde

Pandemia em bola de cristal

Tipo Opinião

Até os bem aventurados que, dizem, enxergam o futuro nas cartas, nas mãos, nos astros ou nos búzios fazem suas previsões, quase sempre, a partir de alguma informação prévia que seus clientes ou amigos lhes dão, para que possam sentir, ver, intuir ou fabricar as respostas às indagações que lhes são lançadas. Minha avó paterna, por um longo tempo, buscou suas cartomantes preferidas quando queria antecipar o resultado de questões cruciais, ou nem tanto, da vida dela e de toda família.

Fosse para saber se um dos netos ou netas seria aprovado no vestibular, se um dos parentes se curaria de um mal de saúde ou se uma mudança para outra cidade faria bem ao filho. Sempre imaginei que, em geral, as adivinhações eram certeiras, caso contrário ela teria desistido. Hoje não tenho muita certeza. Aqueles encontros talvez dissessem mais sobre o presente que sobre o futuro.

A pandemia do novo coronavírus, como nenhum outro evento de saúde pública até aqui, trouxe para o dia a dia dos tomadores de decisão as simulações e modelos matemáticos e bioestatísticos de predição de cenários epidemiológicos. Em muitos casos, como exemplarmente na Grã-Bretanha, as projeções determinaram as medidas de enfrentamento à COVID-19.

Alguns atributos como fração da população suscetível, número de casos notificados, curados e mortes, estimativa dos não-documentados (subnotificação), taxas de isolamento da população ou índices de mobilidade humana em determinada região, entre outras variáveis, podem ser utilizados para as inferências, de acordo com a complexidade do modelo.

Particularmente, as simulações foram muito valiosas quando, ainda no início da escalada da doença em várias regiões do mundo, projetaram um crescimento exponencial de casos e mortes que colapsaria os sistemas de saúde se medidas de isolamento social mais rígidas não fossem adotadas.

O primeiro-ministro do Reino Unido, que em março ainda negava e fazia piada com a gravidade da doença, à semelhança dos seus colegas brasileiro e americano, foi convencido por estudo do Grupo de Assessores Científicos para Emergências que apontou 260 mil britânicos mortos por Covid-19 e por outras causas, caso o governo insistisse em medidas pontuais de distanciamento. Assim Boris Johnson terminou decidindo por um lockdown nos moldes de outros países europeus.

Outro uso corrente de modelos matemáticos é tentar estimar em que momento determinadas cidades, estados ou países vão alcançar o chamado “platô” da transmissão, sendo este um ponto de virada para uma tendência consistente de redução da força de propagação do SARS-CoV-2, espelhada na queda do índice de reprodução ou taxa de contágio R(t), para um valor menor do 1,0.

Em tese, este marco temporal poderia determinar, junto com a melhoria de indicadores epidemiológicos e assistenciais, o início de um processo de flexibilização das medidas restritivas, nos locais onde estas estavam em vigor.

O leitor deve ter se deparado com as mais variadas estimativas de quando o platô, em nível nacional, vai ocorrer, desde o início da epidemia no Brasil. Pode, então, ter se perguntado por que alguns modelos tem se mostrado imprecisos, normalmente antecipando o pico de casos.

Além das dificuldades inerentes às previsões em um País de dimensões continentais, que vive epidemias em estágios temporais diferentes (ainda em franca ascensão em algumas grandes cidades e declínio consistente em outras), as razões para o fracasso dessas simulações estão, principalmente, no presente.

Muitos esquecem que as modelagens são feitas com base em retratos do presente. Se os dados forem de má qualidade, se a testagem for limitada e heterogênea, a subnotificação for demasiadamente alta e a elucidação etiológica dos óbitos suspeitos baixa, evidentemente as projeções falharão.

Existe uma expressão inglesa que resume a situação. Garbage in, garbage out (“lixo entra, lixo sai”) significa, trazendo para este exemplo, que se utilizamos informações enviesadas nos modelos, estes de quase nada valerão, como ferramentas de predição.

Atualmente a epidemia se interioriza e se desloca regionalmente para os estados brasileiros do Centro-Oeste e Sul, além de Minas Gerais. Mais do que nunca precisaríamos de uma eficiente coordenação nacional de resposta à pandemia que dispusesse de dados transparentes meticulosamente analisados, monitorasse com rigor a testagem em todos os Estados e estimulasse a investigação dos óbitos por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), aumentando a confiabilidade das informações de mortalidade por COVID-19.

Só assim poderíamos tentar ver o futuro com mais nitidez. Por enquanto, nos resta conhecer o presente até que as bolas de cristal se acendam.

Foto do Antonio Lima Neto

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