Great Barrington tem menos de dez mil habitantes e foi apontada em 2012 a melhor cidade pequena dos Estados Unidos para se viver. Localizada no Estado de Massachusetts, famosa por seu cosmopolitismo e por seu exclusivo resort de inverno para esquiadores, é a segunda casa de várias famílias americanas endinheiradas.
Desconhecia a cidade até a última quinta-feira (7/10/2020), quando li uma matéria publicada que repercutia a divulgação de um documento assinado por 6 mil cientistas chamado Declaração de Great Barrington.
Os três principais acadêmicos signatários são professores reconhecidos que lecionam nas Universidades de Oxford (Sunetra Gupta), Harvard (Martin Kulldorff) e Stamford (Jay Bhattacharya). Outros trinta e cinco pesquisadores aparecem como coautores do manifesto, lançado oficialmente no dia 4 de outubro.
A Declaração enumera corretamente efeitos deletérios das longas quarentenas, principalmente sobre crianças e adolescentes, para embasar uma “nova” proposta de abordagem de enfrentamento do novo coronavírus que eles denominam de “Proteção Focalizada”.
Essa estratégia consistiria na abolição completa das restrições de circulação e a reabertura imediata de todas as atividades laborais, de lazer e das escolas para os grupos populacionais que não têm fatores de risco associados ao incremento de complicações ou morte pela Covid-19. Mais ou menos 80% da população, em estimativa conservadora.
Imaginei que, pelo número de pesquisadores signatários, poderia se tratar de uma tentativa inovadora de evitar sucessivos lockdowns em regiões afetadas duramente por uma primeira onda de casos, onde já haveria uma proporção importante da população imunizada pela infecção
O pressuposto central é de que contaminando-se gradualmente, ou mesmo vertiginosamente, e desenvolvendo, em sua maioria, quadros clínicos brandos ou permanecendo assintomáticos, a imunidade de rebanho seria alcançada mais rapidamente. A infecção desse grupo teria, portanto, mais benefícios do que custos.
Enquanto isso, idosos, portadores de comorbidades e demais indivíduos mais vulneráveis deveriam ser, pari-passu, rigorosamente protegidos e isolados até que o limiar de proteção coletiva (proporção de não suscetíveis) fosse alcançado naturalmente ou através de vacina.
Imaginei que, pelo número de pesquisadores signatários, poderia se tratar de uma tentativa inovadora de evitar sucessivos lockdowns em regiões afetadas duramente por uma primeira onda de casos, onde já haveria uma proporção importante da população imunizada pela infecção.
No entanto, a tal “Proteção Focalizada” pouco diferia do famigerado “Isolamento Vertical”, com os mesmos dilemas éticos que envolvem a exposição dolosa de alguns que não sabemos exatamente como responderão à doença. Adicionalmente, as sugestões sobre como proteger efetivamente os grupos de risco contidas no documento são superficiais e pueris, quando considerado nosso contexto. A Declaração de Great Barrington revela-se, na verdade, um libelo antilockdown, de contornos negacionistas, voltando a propostas já descartadas.
Mais uma vez, a insistência na recomendação de busca pela imunidade coletiva a qualquer custo (como se essa fosse uma estratégia a ser considerada na resposta a uma pandemia), sem levar em conta a situação epidemiológica das várias localidades e mesmo a potencial transitoriedade da proteção conferida pela infecção. Não há menção sequer a condutas diferentes em regiões onde nunca houve implantação de medidas de isolamento rígido, nem uma primeira onda consistente, áreas em que a imensa maioria da população estaria complemente suscetível ao SARS-CoV-2.
A Declaração omite, irresponsavelmente, as evidências acumuladas durante toda pandemia acerca da importância crucial que a interrupção do fluxo de pessoas teve para lentificar a progressão da doença. O supracitado achatamento da curva, que facilitou o acesso aos serviços de saúde e condutas mais adequadas, evitando milhares de mortes em algumas grandes cidades, é ignorado, como se não fosse um fato. Aí está o componente da negação.
O documento opõe-se às decisões da Organização Mundial de Saúde (OMS) no seu âmago, fazendo crer que a decretação de medidas rígidas de isolamento, com bloqueio da circulação de pessoas e fechamento de estabelecimentos, é a única alternativa que tem sido elaborada para conter os novos surtos. Nesta segunda-feira, o diretor-geral da OMS respondeu indiretamente afirmando que deixar o vírus circular livremente não é uma opção e que existem muitas outras ferramentas que podem barrar a transmissão, além do confinamento.
Dezenas de pesquisadores podem ter genuínas e aceitáveis ideias contrárias aos status quo. A heterodoxia dos métodos de brilhantes cientistas contribuiu, em inúmeros momentos da história, para reverter consensos errôneos que se mantiveram por décadas, às vezes séculos.
Mas, algo como milhares de cientistas se contrapondo subitamente, como por encantamento, às mais básicas recomendações, sem apresentar absolutamente nenhuma nova evidência científica sólida, parece estranho.
No caso da Declaração de Great Barrington, logo foram aparecendo as primeiras denúncias. Primeiramente, as assinaturas não eram verificadas. Personalidades mortas estavam entre os signatários. Os responsáveis pela divulgação eletrônica da declaração se defenderam, afirmando que não tinham se preparado para averiguar a veracidade dos dados das milhares de pessoas que queriam assinar. Corrigiriam.
Como disse muito bem a colunista Sonia Sodha, do jornal inglês Observer, “na melhor das hipóteses os três cientistas são politicamente ingênuos, mas presunçosos, com pouca ideia sobre como se envolver com o mundo real. De todo modo, prestaram um profundo desserviço à ciência.”
Segundo informações do site de jornalismo investigativo Bylines Times, repercutidas pelo jornal britânico The Guardian, o domínio do website que respondeu aos questionamentos pertence ao Instituto Americano de Pesquisa Econômica (AIER – American Institute for Economic Research). A organização libertária, entusiasta do livre mercado, de viés neoliberal, é majoritariamente financiada pela Fundação Koch, que por sua vez é grande doadora do Partido Republicano Americano.
A fundação também apoia, através de majestosas doações, o lobby dos seguros de saúde contrário à ampliação dos serviços de saúde públicos e das petroleiras que impedem maiores regulamentações ambientais, promovendo instituições que negam o aquecimento global e estimulam o uso de combustíveis fósseis.
No dia 3 de outubro, a AIER hospedou o encontro privado, no bonito resort, que congregou cientistas, economistas e jornalistas para discutir a resposta global à pandemia de Covid-19. Deste encontro, surgiria a Declaração de Great Barrington, rascunhada pelos três pesquisadores citados no início, que brindaram com champanhe, em vídeo, sua divulgação.
Como disse muito bem a colunista Sonia Sodha, do jornal inglês Observer, “na melhor das hipóteses os três cientistas são politicamente ingênuos, mas presunçosos, com pouca ideia sobre como se envolver com o mundo real. De todo modo, prestaram um profundo desserviço à ciência.”
Mesmo que amparados em suas convicções e com intenção de projetarem globalmente suas crenças, esses pesquisadores arriscam suas reputações. Quando divulgam uma carta que nada tem de novo, dias antes da eleição presidencial americana, que tem sido pautada por duras críticas à resposta de Donald Trump à pandemia (o governo americano sempre estimulou algo como a Proteção Focalizada), sob os auspícios de uma organização simpática à sua candidatura, aproximam-se perigosamente da propaganda.