Semana passada tivemos exemplo de uma das mais ignominiosas ações no campo da saúde pública de um chefe de governo contra seu próprio povo. O presidente Jair Bolsonaro recusou a potencial compra de uma vacina eficaz e segura - posto que deveria estar aprovada pelos órgãos de controle sanitário para que a aquisição se concretizasse - por razões ideológicas e políticas.
Seguiu-se a humilhação pública do ministro da Saúde Brasileiro. O pré-acordo que tinha firmado com os governadores para a compra de 46 milhões de doses da CoronaVac para que fossem disponibilizadas no Programa Nacional de Imunização (PNI) foi cancelado por rede social. Logo o ministro foi diagnosticado com covid-19, para dias depois se congratular com o chefe em vídeo, sem máscara, rindo constrangido e dizendo ao final que “é simples assim, um manda outro obedece”.
Em seguida, nesta segunda-feira (26/10/2020), Bolsonaro criticou a pressa por uma vacina, questionando se não seria mais barato investir na cura. Argumentação que não encontra sustentação alguma e que soa apenas como desatino.
De todo modo, mais uma vez, como no caso da cloroquina ou das propostas amalucadas de isolamento vertical, o governo conta com a parceria, vinda em forma de silêncio, das principais entidades médicas, Conselho Federal de Medicina (CFM) e Associação Médica Brasileira (AMB). Nada da fúria vista quando médicos cubanos, brasileiros e de outras nacionalidades, avalizados por um acordo com a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), vieram atender em regiões inóspitas, onde a população não tinha acesso à saúde. Aí sim, as entidades foram para o campo de batalha.
Aceitável, talvez imaginem seus dirigentes, por representarem entidades corporativas. Têm-se que sempre zelar pelos associados. O clube está satisfeito com as ações do presidente. Embora este despreze a ciência e seja apologista da tortura, ele até extinguiu o Mais Médicos, promessa de campanha, devem comentar pelos corredores depois das reuniões infindáveis. É possível que pensem que o fato de a população, eventualmente, vir a ser privada da vacinação contra um vírus que já matou quase cento e sessenta mil pessoas no Brasil seja um tema que extrapola as missões das associações e conselhos. O enredo deve ser mais ou menos esse, sem desconsiderar as vozes dissonantes que tentam apontar a nudez do rei. Mas estas, certamente, são minoritárias.
Quatro boas refeições diárias, moradia digna, trabalho, ruas pavimentadas, água, esgoto e escola. Saúde se produz a partir dessa base. E vacinas. Sempre.
Mas os ataques contra a saúde não se restringem à compra ou não de um imunobiológico ou às políticas de austeridade que, com cortes sistemáticos do orçamento, tentam inviabilizar o funcionamento regular do Sistema Único de Saúde (SUS). Não nos esqueçamos, a saúde não está nos hospitais. Lá estão pacientes doentes. Saúde é um conceito amplo, influenciado fortemente pelos chamados determinantes sociais.
A vacina é uma ação de prevenção primária que evita a infecção, emergencial neste momento. Outras estratégias atuam de forma menos específica e não só previnem a ocorrência de uma patologia como geram ganhos reais de qualidade de vida que transcendem a “ausência de doença”.
A destruição acelerada do meio-ambiente; a ausência de planos factíveis de diminuição do déficit habitacional ou de ampliação do saneamento básico; a inação frente ao desemprego galopante e à insegurança nutricional crescente de milhares de famílias; o retrocesso das políticas educacionais; e a agressão aos direitos humanos das minorias levadas a cabo pelo governo terão impactos de longo prazo sobre a saúde dos brasileiros, cuja compensação tomará décadas, com otimismo, se não forem freadas.
Em 1998, fiz uma visita técnica ao Canadá, para conhecer o sistema de saúde e mecanismos de gestão. Lembro bem de uma exposição em que um profissional de saúde apresentava um plano de redução de leitos após melhora importante dos indicadores. Dizia ele que enquanto os gigantescos hospitais estivessem erguidos, abertos, as internações aconteceriam com regularidade, independentemente da necessidade. Deveriam demoli-los ou transformá-los. Não negou as dificuldades de se administrar um sistema universal robusto, em que filas ainda existiam para algumas especialidades, e os desequilíbrios regionais que exigiam uma reforma do sistema. Mas ponderava que, se ele pudesse sugerir algo, seria que se trabalhasse cada vez mais para prevenir e promover saúde. Temos que fugir do paradigma que produz doença, concluiu.
Lá se vão vinte e dois anos e ainda precisamos de mais leitos no Ceará e no Brasil, os orçamentos minguam e sustentamos um modelo que despreza indicadores locais, e centra suas ações quase exclusivamente na assistência.
Embora nos coloque, em um aparente beco sem saída, temos que aceitar que não existe saúde sem justiça social. Caso não se reduzam as desigualdades, continuaremos construindo hospitais e farmácias ad aeternun.
Pelo menos, desde o “Relatório sobre as condições sanitárias da população trabalhadora da Grã-Bretanha” publicado pelo reformador social Edwin Chadwick em 1847, que culminou com a promulgação do Ato de Saúde Pública 1848 (Public Health Act 1848), quando o governo britânico pela primeira vez se responsabilizou pela saúde dos seus cidadãos, sabe-se, por exemplo, que acesso ao saneamento básico é um determinante central no processo saúde-doença.
Em 2020, um estudo da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes) apontou que quase metade dos brasileiros (47%) ainda não tinham acesso à rede de esgoto. Aproximadamente, 40 mil internações, apenas no primeiro trimestre deste ano, foram por doenças associadas à falta de saneamento adequado. Por enquanto, a cada estimativa como essa, a solução mágica sempre é privatizar. Como se a futura exclusão de milhares de pobres moradores de ocupações e demais assentamentos precários pelas concessionárias fosse algo imprevisível.
Quatro boas refeições diárias, moradia digna, trabalho, ruas pavimentadas, água, esgoto e escola. Saúde se produz a partir dessa base. E vacinas. Sempre.