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Eventos superdisseminadores da covid-19
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Médico, Epidemiologista. Pós-doutor pela Universidade de Harvard (Harvard School of Public Health). Doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Mestre em Epidemiologia Ambiental e Políticas pela Universidade de Londres (London School of Hygiene & Tropical Medicine) e Residência em Medicina Preventiva e Social na Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz).

Antonio Lima Neto ciência e saúde

Eventos superdisseminadores da covid-19

Tipo Opinião

Felizmente, como em outras doenças transmissíveis, uma proporção importante dos infectados pelo SARS-CoV-2, agente causador da covid-19, não transmite o vírus para ninguém. Por outro lado, alguns indivíduos, por razões não completamente elucidadas, tem altíssima capacidade de contaminar dezenas de pessoas, às vezes simultaneamente em uma única ocasião. Hoje, acredita-se que bloquear as oportunidades que esses indivíduos, que não conhecemos de antemão, espalhem o vírus, em um evento que se denominará “superdisseminador” (superspreading event), seja uma estratégia chave na contenção da pandemia.

Matéria publicada na Science Magazine (30/10/20) enfatiza a relevância epidemiológica dos pacientes com elevado poder de espalhar o vírus, principalmente, quando estes frequentam eventos com alto potencial de transmissão. A farta produção de casos novos entre participantes de um casamento, de uma conferência, de uma cerimônia no Supremo Tribunal Federal ou de uma rave, por exemplo, implica na contaminação de pessoas que vivem em diversas áreas de uma cidade ou de mais de uma. Em várias partes do mundo, eventos superdisseminadores foram determinantes centrais do modo de dispersão (incluindo a velocidade de propagação) do vírus.

Modelos estimaram que cerca de 80% dos casos secundários são gerados por apenas 10% dos indivíduos acometidos inicialmente. Estudo recente realizado em dois estados da Índia corrobora a estimativa, mostrando que sete em cada dez indivíduos portadores do vírus não foram capazes de transmiti-lo e, mais impressionante, que apenas 8% dos infectados foram responsáveis por aproximadamente 60% dos casos secundários rastreados e confirmados por teste laboratorial.

Os significativos diferenciais na capacidade de transmissão das pessoas trazem ainda mais incerteza ao se implementar medidas de prevenção e controle, como o rastreamento de contatos que, em tese, para ser eficiente em nível ótimo, deveria ser quase universal (rastrear os contatos de todos os casos).
Quando pensamos em um cenário hipotético onde o fator de reprodução R da covid-19 é igual a 2 – duas pessoas são infectadas em média por um indivíduo doente -, automaticamente tendemos a imaginar que cada paciente contamina dois novos casos. O problema é que, de acordo com as evidências produzidas até agora, na vida real não é nem um pouco assim.

Considerando R=2, de dez portadores(as) do SARS-CoV-2, teoricamente, sete podem não transmitir para ninguém, um deles para sua esposa e filho, outro apenas para sua avó e um terceiro para dezessete outras pessoas. Este último indivíduo se “aproveitará” de momentos propícios. Como os japoneses definem, a transmissão ocorrerá em locais que tenham, prioritariamente, como atributo os três Cs, que designam na língua inglesa espaços fechados com ventilação precária (closed spaces), que permitem grandes aglomerações (crowds) e, por conseguinte, contato próximo entre os participantes (close contact). Se houver uso limitado ou nenhum de máscara, e gente cantando ou gritando ou vaiando, expelindo milhões de partículas virais, estamos diante da “tempestade perfeita”.

Um bem documentado surto de covid-19 iniciado na conferência anual do Laboratório Farmacêutico Biogen foi um dos estopins que estão na origem de dezenas de milhares de casos da doença apenas na região de Boston. Era fevereiro, início da epidemia nos Estados Unidos. Uma das duzentas atendentes da conferência carreava o vírus que foi transmitido para quase uma centena de pessoas. A partir dali, com focos em várias áreas, a transmissão tornou-se sustentada, ganhando força e se propagando rapidamente.

Junto com o alto fluxo de viajantes, principalmente, da Europa, dois eventos superdisseminadores ocorridos no início de março, embora não suficientemente descritos academicamente, parecem estar no cerne da precoce introdução e explicam a força inicial de propagação do SARS-CoV-2 em Fortaleza. Na ocasião, logo ficou clara a perspectiva de uma epidemia de larga escala, com os casos se multiplicando nos bairros de alto IDH da região central e litorânea.

 

No início de outubro, no entanto, foi percebida a ocorrência de cadeias de transmissão, que se expressavam em microssurtos, entre jovens moradores das áreas mais ricas da cidade. A maioria dos casos de curso clínico mais brando, mas em seguida já com impacto sobre a rede privada, com deslocamento de faixa etária (acometimento dos mais velhos)

 

O primeiro decreto que implementava as medidas de distanciamento social, determinando fechamento do comércio, recesso escolar e proibindo as aglomerações passou a vigorar já no dia 19 de março, antes da primeira morte em decorrência da doença. O impacto foi imediato, houve arrefecimento da transmissão momentâneo, mas aos poucos foi percebido gradual aumento da mobilidade humana, em especial, nas áreas periféricas mais afetadas naquele momento, e dispersão rápida e agressiva do vírus.

O isolamento social rígido, nos moldes do lockdown europeu, durou quase todo mês de maio. Indicadores epidemiológicos e assistenciais melhoraram substancialmente no período e, em junho, um protocolo de flexibilização das atividades por fases passou a ser implementado rigorosamente. Desde então, por quatro meses consecutivos, a transmissão caiu sistematicamente até agosto, quando se tornou residual (muito baixa), como demonstrada pelos inquéritos soroepidemiológicos.

No início de outubro, no entanto, foi percebida a ocorrência de cadeias de transmissão, que se expressavam em micro-surtos, entre jovens moradores das áreas mais ricas da cidade. A maioria dos casos de curso clínico mais brando, mas em seguida já com impacto sobre a rede privada, com deslocamento de faixa etária (acometimento dos mais velhos).

Por enquanto, não é apropriado falar em segunda onda. Os casos ainda crescem linearmente e estão muito concentrados no espaço (não houve dispersão para as regiões mais atingidas na primeira fase, onde a barreira imunológica supostamente é maior). Também não foi detectado ainda impacto sobre a curva de mortalidade. A média móvel de óbitos continuava até a última sexta-feira (6/11/20) excepcionalmente baixa.

Dito isso, além das viagens mais frequentes, tendo em vista o perfil etário e socioeconômico dos acometidos e os sucessivos registros de aglomerações, deve se investigar a associação entre o aumento da transmissão recente e eventos potencialmente superdisseminadores. Estes tem ocorrido no município de Fortaleza ou em balneários turísticos do Estado, onde há a presença de participantes vindos de regiões com diferentes padrões de circulação viral.

Na véspera do feriado de finados, acompanhei a interdição de um dos maiores hotéis da cidade, além de multa ao estabelecimento, que promoveu um show onde se identificou indiscutível aglomeração entre “hóspedes”. Vídeos estarrecedores pareciam negar a existência da pandemia. Rumores de festa de Halloween com mais de 300 pessoas em uma praia do litoral oeste também me chegaram. Difícil acreditar que as fantasias todas incluíssem máscara. Ao mesmo tempo, os comícios, carreatas e outros eventos eleitorais foram vetados, pelo risco indiscutível de estarem relacionados ao eventual recrudescimento de casos.

Atualmente alguns pesquisadores recomendam que se faça “rastreamento de contato reverso” (backward contact tracing). Que se dê mais importância ao onde ocorreu o contato do que propriamente ao trabalho de detetive de descobrir quem infectou um determinado paciente.

Cada vez mais deve-se olhar para os eventos superdisseminadores e partir deles para se identificar e isolar o maior número de contatos de casos confirmados, com a máxima celeridade. O ideal é evitar a realização destes se ainda houver circulação viral relevante, senão adotar protocolos rígidos que permitam não só maior segurança, como também a possibilidade de rastreamento digital de todos os participantes.

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