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O vírus da violência letal
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Médico, Epidemiologista. Pós-doutor pela Universidade de Harvard (Harvard School of Public Health). Doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Mestre em Epidemiologia Ambiental e Políticas pela Universidade de Londres (London School of Hygiene & Tropical Medicine) e Residência em Medicina Preventiva e Social na Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz).

Antonio Lima Neto ciência e saúde

O vírus da violência letal

Tipo Opinião

Costuma-se dizer que uma condição qualquer deixa de ser um fator de risco associado a uma doença e passa a ser causa quando, na ausência deste fator, o paciente não será acometido pela patologia em questão. Esse é o paradigma clássico das doenças transmissíveis ou infecciosas. Se o indivíduo não se infectou pelo vírus SARS-CoV-2, por exemplo, ele não desenvolverá, em hipótese alguma, Covid-19. O mesmo raciocínio pode ser feito para a Zika, tétano ou leptospirose e seus agentes etiológicos. Tal pressuposto, no entanto, não pode ser aplicado à hipertensão, diabetes ou aos cânceres.

A instalação das doenças crônico-degenerativas, normalmente, é multifatorial. Estas têm modelos de determinação complexos que envolvem uma combinação de componentes demográficos, socioeconômicos, genéticos, comportamentais e ambientais, além de poderem estar relacionadas ao maior ou menor acesso a serviços de saúde de qualidade.

Uma pessoa completamente sedentária, por exemplo, tem um acréscimo do chamado risco cardiovascular. Porém, até os atletas podem desenvolver uma cardiopatia e ter um infarto agudo do miocárdio. Por não ser um fator causal, a anulação isolada do sedentarismo diminui, mas não elimina a possibilidade de ocorrência do agravo.

A violência letal é um dos mais graves problemas de saúde pública enfrentado pelas populações de grandes cidades latino americanas como Fortaleza. Se por um lado, de maneira similar às doenças não transmissíveis, sua gênese é multidimensional e muitas vezes relacionada a vetores locais, por outro se trata de um fenômeno classicamente social, sem uma expressão clínica orgânica. A diferença fundamental, pouco sublinhada, é que os “doentes” são vítimas de perpetradores, e não diretamente de micróbios ou do seu estilo de vida.

Apesar de no nosso meio não encontrarmos causas isoladas que possam explicar coletivamente as mortes por agressão – o determinante mais próximo do conceito de causalidade talvez seja o acesso ilimitado às armas de fogo, que é o meio responsável por 95% dos assassinatos –, os homicídios podem se propagar, eventualmente, como um vírus epidêmico.

Desde o fim de 2013, temos periodicamente nos ocupado em descrever e analisar a epidemiologia e a distribuição espacial dos homicídios na cidade de Fortaleza. Motivadas por um projeto proposto pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), as Secretarias de Saúde e Juventude de Fortaleza passaram a monitorar uma série de indicadores, junto com outras capitais, cuja evolução poderia apontar, eventualmente, para redução das desigualdades entre crianças e adolescentes no município.

Entre os indicadores selecionados para serem acompanhados pela Plataforma de Centro Urbanos (PCU) - iniciativa do Unicef atualmente na sua terceira edição - estava a evolução da taxa de mortalidade de adolescentes (grupo etário de 10 a 19 anos) vítimas de homicídio.

Decidimos que a primeira análise exploratória partiria do ano 2000. Utilizando dados do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), identificamos que, após um período de estabilidade no primeiro quatriênio da década, estabeleceu-se uma tendência consistente, por vezes de padrão exponencial, de aumento dos homicídios que se iniciou em 2005 e perdurou até 2013. Houve um salto particularmente expressivo no número de assassinatos em 2012 (ano da primeira paralisação da Polícia Militar) e mínima diminuição em 2014.

Em Fortaleza, tristemente, os homicídios tinham figurado como a principal causa de morte isolada entre 2012 e 2014, com mais de 6 mil pessoas assassinadas no período, apresentando uma taxa de mortalidade média de 80 mortes por 100 mil habitantes.

Essa taxa posicionava a cidade na época como uma das três metrópoles mais violentas das Américas. 30% dos mortos ainda não tinham completado vinte anos. A imensa maioria de jovens negros, do sexo masculino, moradores de comunidades periféricas, de baixa renda familiar, mortos à bala e que, recentemente, tinham abandonado a escola.

A situação era, portanto, ainda mais dramática entre os adolescentes (taxa de mortalidade em 2013 atingiu 141 mortes por 100 mil habitantes na faixa etária entre 10 a 19 anos). Como suportar que 2 mil vidas de quase crianças tivessem sido interrompidas intencionalmente em apenas três anos. Cidades em guerra civil registravam quadros menos dramáticos. Era o ápice do movimento de deslocamento das facções criminosas ligadas ao tráfico de drogas do Sudeste para o Nordeste.

Ao georreferenciarmos o endereço das vítimas, víamos algo parecido com a introdução de um vírus novo nas comunidades a cada intervalo temporal. Os aglomerados de mortes por agressão em algumas áreas definidas como assentamentos precários (ocupações, cortiços, zonas de favela) se deslocavam para outras no ano seguinte como se por necessidade. Como se nas regiões inicialmente afetadas tivesse havido um esgotamento dos suscetíveis. O vírus da violência tinha varrido o território e precisava se movimentar.

Também se identificavam alguns núcleos populacionais que não seguiam a tendência do município como um todo. Estas zonas urbanas pareciam imunes naquele momento aos determinantes principais dos óbitos.
Os arrabaldes estavam conflagrados, a matança era cotidiana, mas ninguém tinha nos avisado. Só intuíamos que algo não ia bem quando episodicamente a vítima era bem nascida e logo as redes sociais se cobriam de mãos ensanguentadas convidando para as manifestações na Praça Portugal. Pelas ruas dos Meireles e do Guararapes, apareciam aos montes os carros blindados e nas portas das escolas privadas avistavam-se os seguranças à paisana, do outro lado da rua, com suas pistolas escondidas pelas camisas largas.

O inconformismo de algumas instituições, organizações da sociedade civil e autoridades levou à constituição do Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência (CCPHA) em 2015. O CCPHA, que continua atuante, é uma parceria da Assembleia Legislativa e do Unicef e conta com a participação de diversas entidades, organizações não-governamentais e academia.

O monitoramento dos dados e as pesquisas realizadas pelo CCPHA, Universidades e por outras instituições tem sido, desde então, fundamental para compreender os determinantes e fenômenos sociais associados à violência letal em Fortaleza. Recentemente, por exemplo, publicações do CCPHA tem alertado para uma crescente “infantilização” e “feminilização” dos assassinatos. Até nos períodos em que há diminuição da mortalidade, os homicídios de adolescentes da faixa etária inicial de 10 a 14 anos e de jovens do sexo feminino vem aumentando sistematicamente.

Mesmo mortes violentas causadas por acidentes de trânsito ou suicídios tendem, desde que não influenciadas por acontecimentos imprevisíveis e agudos, a discretas flutuações anuais e à consolidação lenta de tendências. A partir de 2014 o padrão de ocorrência dos homicídios em Fortaleza torna-se “errático”, apresentando elevações e quedas súbitas nos índices, difícil de analisar, sem compreender os fatores contextuais ao longo do tempo.

Aproxima-se de uma doença transmissível, contagiosa, que induz uma imunidade apenas transitória. Vem em ondas epidêmicas como a de 2017, tendo como determinante central o rompimento de pactos de não-agressão entre as principais facções criminosas, e a de 2020, que se inicia com o motim dos policiais.

Para que possa ser mitigada com êxito e sustentabilidade, estratégias de prevenção e controle da violência, não só dos homicídios que vem a ser o desfecho mais grave e mensurável, devem ser contextualizadas e baseadas nas experiências bem-sucedidas pelo mundo afora.

Particularizando, os assassinatos nas metrópoles brasileiras têm uma gama de condições clássicas que se associam à sua incidência, entrançadas em uma teia cujos nós centrais são ocupados pela exclusão habitacional, preconceito racial, pobreza extrema e baixa escolaridade.

Sobre essas populações marginalizadas, operam os fatores contextuais que modulam a magnitude do evento. Aqui se encontram o terror estabelecido pelas facções associadas ao tráfico de drogas; a ocupação dos territórios pelas milícias formadas em sua maioria por criminosos que foram agentes públicos; a cultura da violência contra os pobres, motins, ineficiência e omissão do aparato repressor de segurança; e a corrupção, lentidão ou leniência de setores do judiciário, que se expressam na sensação devastadora de impunidade.

Se como na experiência pioneira de Chicago encarássemos a violência como uma doença contagiosa teríamos que quebrar várias cadeias de transmissão. Muitas mais do que a experiência exitosa coordenada pelo médico Gary Slutkin teve que desfazer naquela cidade americana na década de 1990.

Que tal começarmos aceitando a falência da política de guerra às drogas, rejeitando o encarceramento em massa e tendo no juízo que, sem redução das desigualdades sociais, jamais teremos paz que não seja a ilusória?

Foto do Antonio Lima Neto

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